São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2007

Texto Anterior |Próximo Texto | Índice

Rota Alternativa

Cairo mameluco

Cafés a céu aberto e danceterias à beira do Nilo, num excitante roteiro que passa ao largo das pirâmides

por Mamede Mustafa Jarouche

Antes de conhecer o Cairo, eu estranhava, na maneira como alguns egípcios o descreviam para mim, os barulhos que faziam com a boca, e que sugeriam um insólito rugido de helicópteros, acompanhados de gestos angustiantes. Somente ao conhecê-lo consegui compreender: a sensação de caos, de torvelinho, o movimento diuturno, incessante, feérico, e todos os demais lugares-comuns que ocorrerem ao leitor. Talvez muitas metrópoles modernas também apresentem tais características, mas loucuras também têm lá a sua especificidade, e o Cairo não deixa de ter as suas. Na opinião insuspeita do poeta sírio Adonis, acusado de não gostar do Egito, o Cairo é a "única grande cidade árabe". Evidente exagero cometido numa de suas concorridas conferências com recital e adolescentes suspirosas.

Uma coisa é inegável: quem visitar essa cidade imbuído de propósitos meramente turísticos -aquela predação material e espiritual- decerto vai detestá-la. E no entanto está tudo lá furiosamente exposto, em camadas históricas impressionantes para a nossa leveza brasileira.

Deixem-se de lado as pirâmides, que na verdade se situam numa cidade de subúrbio, Guiza, um tédio mortal. Mas, além de resquícios do Cairo fatímida, o que excita é o Cairo mameluco. O conjunto é chamado de Cairo islâmico, uma redundância, a meu ver. A região de al-Hussein, cujo nome se deve à mesquita, em cujas fundações, diz-se, estaria a cabeça desse neto do profeta Maomé. É ali, para tomar emprestada uma expressão de Borges, que descortinamos, de modo difuso, o "Oriente", com suas balbúrdias e algaravias, seus odores e temperos, sua humanidade destemperada, sua exasperante vontade de viver.

Nas proximidades, no bairro de al-Gamaliyya, ergue-se a Wikálat al-Ghuri, construída pelo sultão mameluco Al-Ghuri no início do século 16, soberbo prédio governamental que hoje abriga vários ateliês de artistas, preservadíssimo com a sua curiosa repartição em inúmeros cômodos muita vez estreitos, ele faz cismar sobre o que seria a privacidade naquele tempo. As próprias ruas apertadas do entorno reforçam a idéia de um compartilhamento quase total da vida. No prédio desse longínquo sultão, em cujos cômodos se apertavam várias famílias agregadas ao poder, o controle de ações e pensamentos devia ser fácil, bem como a exigência de fidelidade absoluta.

Passeia-se com prazer, sempre, por esse Cairo antigo, onde se compram vidrinhos coloridos às mancheias, pechincha-se, discutem-se preços e políticas, sorvem-se gigalitros de chá forte fumando narguile (no Egito o aparelho se chama "xixa"). Fiz tudo isso, mas morei e pesquisei no Cairo inglês. A Azbakiyya, com seus sebos organizados. A Biblioteca Nacional, na Corniche, longa avenida que margeia o Nilo, com sua vista esplêndida e seus funcionários nem sempre competentes ou prestativos.

Morei no centro da cidade, em frente ao Superior Tribunal, um edifício de ares vetustos que sempre aparece em filmes egípcios. Rua Champollion, que logo me acostumei a pronunciar "Chembilyún", pois meus amigos egípcios deram para chacotear com a minha pronúncia "correta". Um dos pontos mais barulhentos do Cairo. Depois, mudei-me para um bairro simpático, Garden City, cujo nome dispensa as origens. Ao seu lado, outro bairro, mais simpático ainda: Sayyida Zaynab. Movimento febricitante de fazer perder a noção do tempo.

Quando estava sozinho, comia no restaurante Fuad Bacha, na rua Talaat Harb. Boa comida, barato, bem localizado, limpo e quase vazio. No centro da cidade há ainda o Felfela, bom fast-food de alta rotatividade, e freqüentado por turistas.

Ter cuidado com os táxis no Cairo é um bom conselho. Os taxímetros estão ali para turista ver. Em geral não funcionam, o que em todo caso não importa, pois nem sequer os ligam. Preço? Combine antes. Os taxistas egípcios são simpaticões e insinuam que o levariam de graça até a fronteira com o Sudão, se necessário. Quando chega ao destino, você oferece a paga: dez guinéus. Eles dizem: "Puxa, mas o senhor é bem melhor do que isto!". E você vai amargamente aumentando o preço até deixar uma bela grana com o malandro e perder boa parte da sua fé na humanidade.

O estádio da cidade é grande. Maior que o Pacaembu, menor que o Morumbi. Al-Zamálik e Al-Ahli são os times principais. Logo passei a torcer pelo primeiro, cujo uniforme lembra o do São Paulo e cujo bairro, do mesmo nome, é uma espécie de Morumbi local. Mas, devido à possibilidade de ataques terroristas, o acesso ao estádio é cheio de bloqueios que impedem a eventual circulação de veículos-bomba.

Os cafés da cidade merecem menção à parte, tantos e tão variados são. Quando estive na cidade pela primeira vez, o mais freqüentado pelos artistas e intelectuais era o Le Grillon, no centro da cidade, rua Qasr al-Nil. "Um ambiente conspiratório", segundo me observaram. Conspirações de fancaria, diga-se, e luta pelas tais "bolsas-criatividade" instituídas pelo governo para artistas e intelectuais. Mas hoje o Le Grillon está murcho, e as preferências se aboletaram no Clube Grego, ali nas proximidades. Em ambos pode-se saborear a cerveja egípcia, Stela, passável. E jamais, em hipótese alguma, tome os destilados egípcios.

São os cafés populares a céu aberto, disseminados por todo canto, o que há de mais típico no Cairo. Muito chá, café forte, conversas a não mais poder; xixa com fumo sabor maçã e mel, tradicionais, ou um monte de outros sabores, tudo novidade. É onde tradicionalmente se marcam encontros à noite. Presença masculina preponderante, para variar. À beira do Nilo, danceterias diversas.

No coração da cidade localiza-se o Midan al-Tahrir, "Praça da Libertação", com o Hilton Hotel, o Museu do Cairo e a Liga dos Estados Árabes, entre outros. Era agradável passear por ali, espairecer. Era. Com o recrudescimento do fundamentalismo, instalaram enormes obstáculos que impedem não somente a caminhada pelo lugar, mas também a simples visão do conjunto. Restringiram a movimentação de transeuntes por medo de atentados contra a Liga ou o Museu. Foi o meu maior desgosto na última vez que estive lá, no começo deste ano. Todos, creio, pensamos nossa localização geográfica a partir de algum ponto do qual dizemos "à direita", "à esquerda" etc., e eu por algum motivo elegera, no Cairo, essa praça. Não poder circular livremente por ela me deixou sem norte nessa cidade que amo por tantos motivos, e na qual, conforme dizem os egípcios, as pessoas mais se perdem que se encontram. E, sim, onde o "Livro das Mil e uma Noites" tomou a sua forma definitiva.

Mamede Mustafa Jarouche é o tradutor do "Livro das Mil e uma Noites", cujo terceiro volume chega às livrarias neste mês.

SERVIÇO

Hotéis

Le Meridien Heliopolis
El Orouba, 51
Tel: (0/xx/20/2) 2290-5055
www.starwoodhotels.com/lemeridien
Diária mínima de US$ 120 por casal.

Nile Hilton Hotel
Corniche El Nil, 1113
Tel: (0/xx/20/2) 2578-0444
www.hilton.com
Localização central.
Diárias a partir de US$ 165 por casal.

Sonesta Cairo Hotel And Casino
El Tayaran, 3
Tel: (0/xx/20/2) 2262-8111
www.sonesta.com/cairo
O cinco estrelas reúne 257 espaçosos quartos e suites, muitas com varanda. Diárias a partir de US$ 155 por casal.

Ambassador
26 de Julho, 31A
Tel: (0/xx/20/2) 5743-354/263
O três estrelas oferece alojamentos básicos e confortáveis.
Diárias a partir de US$ 41 por casal.

Restaurantes

Felfela
Hoda Shaarawy, 15
Tel: (0/xx/20/2) 392 2833
Possui mais duas lojas de fast food localizadas na rua Talaat Harb, 15 e na rua 26 de Julho. Serve típica comida norte-africana e do Oriente Médio. Muito procurado na região. Recomenda-se reservar.

La Chesa
Adly, 21
Tel: (0/xx/20/2) 393-9360
www.swissrest.com/home.htm
Restaurante suíço que tem no cardápio o famoso prato suíço Assiet Montagnard (carne seca com queijo suíço)

Le Grillon
Qasr el-Nil, 8
Tel: (0/xx/20/2) 574-3114
Clássica cozinha francesa em luxuoso jardim árabe.

Naguib Mahfouz
El Badistan Lane, 5
Tel: (0/xx/20/2) 5903-788
Localizado em Khan el Khalili, grande mercado central. Excelente opção para o almoço em dia de compras. Experimente o "azbakeya labaneya" (cubos de carne cozida no iogurte, temperados com alho e hortelã).

Texto Anterior: Memória: Evocação da Polônia
Próximo Texto: Roteiro: Agito no presépio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.