São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2007

Texto Anterior |Próximo Texto | Índice

Roteiro

Agito no presépio

Aula de arquitetura colonial, a Ouro Preto dos mocotós e jacubas é brindada na "rua da Lama" quando cai a noite

por Guiomar de Grammont

Em 1820, ao visitar Ouro Preto, o naturalista francês Saint-Hilaire (1779-1853) comentou que tinha a sensação de que era observado por toda a população por trás das gelosias, aquelas janelas de influência árabe, típicas da época, feitas de madeiras trançadas. Mas ele mesmo não via ninguém. Ouro Preto ainda é assim: uma cidade que, por mais visitada que seja, ainda se guarda ao olhar externo.

O passado vive no presente: as irmandades, corporações religiosas de irmãos leigos, que se rivalizavam na construção das 17 igrejas e capelas, ainda regem a vida dos nativos. Hoje, as regras de filiação por critérios raciais praticamente desapareceram, mas a população ainda professa a devoção com festas e rituais religiosos e enterra seus mortos nas igrejas votadas a seus santos preferidos.

Um passeio por Ouro Preto deveria começar na Igrejinha do Padre Faria, a primeira a ser construída, no atual centro histórico.

A visita a Ouro Preto começa quando dobramos a serra e a cidade se descortina, súbita, com sua aparência de presépio. É como se uma mão tivesse "desarrumado", com cuidado estético, as casas, monumentos e ruas coloniais que serpenteam graciosamente as montanhas mineiras.

Na antiga Vila Rica, o morro de Santa Quitéria, onde fica hoje a praça Tiradentes, separava a cidade em dois grandes bairros, regidos por duas paróquias: o da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, onde ficariam os mocotós, e o de Nossa Senhora da Conceição, onde moravam os jacubas. A palavra "mocotó" parece vir de "macota", que significa gente importante ou presunçosa e "jacuba" seria "comedores de farinha". De fato, o bairro do Pilar é aquele onde ficavam as camadas mais favorecidas da população, enquanto no Antônio Dias se concentravam os mais pobres e descendentes de escravos. Essas diferenças ainda são visíveis, embora a população tenha se misturado com o tempo.

No passado, a vida quotidiana era regida pelos sinos, o oráculo da cidade, pêndulo que marcava a a passagem das horas, as festas e lutos, o nascimento e a morte. A comunicação de significados, em sua linguagem telegráfica, dava-se através do rítmo das badaladas. Não vou esquecer nunca o olhar perscutador de meus avós, a ler, na voz dos sinos, o sexo e a idade dos mortos. Hoje, esse conhecimento ainda é transmitido nas gerações de sineiros, mas poucos sabem interpretar suas mensagens.

Um passeio por Ouro Preto deveria começar na Igrejinha do Padre Faria, a primeira a ser construída, no atual centro histórico. Em seguida, pode-se apreciar o ousado chafariz encimado por um busto de mulher, antes de visitar, pouco acima, a Igreja de Santa Efigênia, irmandade de pretos, com elementos africanos incrustados em seus altares.

Ao descer a ladeira, a casa de Marília, musa do poeta Tomás Antônio Gonzaga, bem como a ponte onde o inconfidente ficava, segundo a lenda, a suspirar por ela. Na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, nessa praça, encontram-se, não apenas o túmulo do Aleijadinho, mas peças como os extraordinários Leões de Essa, no museu que abriga parte das obras do escultor.

Ouro Preto é uma aula dos diversos estilos que atravessaram a arquitetura colonial. O traçado da Igreja de São Francisco de Assis, com o magnífico teto de Ataíde e obras de Aleijadinho, e da Nossa Senhora do Rosário, com suas formas circulares, surpreende os estudiosos por não ter similar em Portugal. Essas formas parecem ter vindo de livros ou figuras que reproduziam as igrejas italianas. Em frente está a casa do ouvidor Tomás Antônio Gonzaga. Quanto ao Museu da Inconfidência, passou por uma reestruturação completa recentemente, e a exposição exuberante, com jogos de luz e sombra, surpreende até quem já o conhece.

Descendo a rua Direita e a rua São José pode-se comprar presentes e comer boa comida mineira. Além da feijoada e do frango ao molho pardo, o tutu e o feijão tropeiro são pratos muito apreciados, mas, nos pequenos botecos da cidade, é possível encontrar iguarias mais pitorescas, como as rabadas e a costelinha com "ora pro nobis". Diversos alambiques espalhados na região produzem cachaças com aromas e sabores diferenciados.

Se você for à rua Direita à noite, irá deparar com a chamada "rua da Lama": uma turba confusa de jovens que perambulam por ali. Pode ser, talvez, um bom lugar para travar relações com habitantes da cidade, desde que o álcool não seja um problema. Porém, para ter uma idéia das pessoas que realmente vivem nas casas tão inacessíveis aos visitantes de hoje, quanto no tempo de Saint-Hilaire, o melhor momento é a missa, religiosamente celebrada nas duas matrizes.

Talvez porque seus fantasmas induzam à loucura, Ouro Preto é uma cidade de personagens que, muitas vezes, integram-se à paisagem como monumentos vivos. A mais famosa dessas figuras foi a Sinhá Olímpia, senhora que caminhava pelas ruas, com roupas antigas, a contar histórias onde o passado e o presente se confundiam. Mas lá estão o Valdir do Rádio, com seu sorriso; a Maria do Papel, a escrever recados febris deixados nas portas dos desavisados; e o Angu, que pode ser visto fazendo discursos inflamados, sob os aplausos dos estudantes.

Ouro Preto está viva, é cidade onde as pessoas trabalham, constroem suas experiências e sofrem pelo futuro de seus descendentes. São mundos em que se sobrepõem uma balbúrdia de vozes de tempos diversos: interesses e angústias, expectativas e inquietações. Por isso, muitas vezes, a paisagem sofre, torna-se híbrida, perde identidade. A cidade que, muitas vezes, acorda envolta pelas brumas nos faz indagar a esse mundo de valores fugazes em que vivemos hoje, quem somos, qual a nossa origem e nosso destino.

Guiomar de Grammont é escritora, autora de "Sudário", entre outros livros.

SERVIÇO

Hotéis

Pousada do Mondego
Largo de Coimbra, 38
Tel: (0/xx/31) 3551-2040
www.mondego.com.br
Ao lado da igreja São Francisco de Assis. Diária a partir de R$ 198 por casal.

Grande Hotel de Ouro Preto
Rua das Flores, 164
Tel: (0/xx/31) 3551-1488
www.hotelouropreto.com.br
Projetado por Oscar Niemeyer às margens do rio Trupuí.
Diária a partir de R$ 162 por casal.

Pousada Arcádia Mineira
Rua Xavier da Veiga, 125
Tel: (0/xx/31) 3551-2227
Acolhida muito simpática.
Diárias a partir de R$ 90,00 por casal.

Restaurantes

Bené da Flauta
Rua São Francisco de Assis, 32
Fone: (0/xx/31) 3551-1036
www.benedaflauta.com.br
Ossobuco de vitela com risoto milanês e língua com molho madeira e purê de batatas são algumas das iguarias da casa.

Casa do Ouvidor
Rua Conde de Bobadela, 42
Tel: (0/xx/31) 3551-2141
www.casadoouvidor.com.br
Serve pratos típicos como feijão tropeiro, tutu à mineira, frango ao molho pardo e frango com quiabo.

Texto Anterior: Rota Alternativa: Cairo mameluco
Próximo Texto: Fronteira: Espaço à pampa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.