São Paulo, sábado, 29 de dezembro de 2007

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Brasil carioca

Mistura humana

O Rio por trás do cartão-postal, além do esbanjamento da Zona Sul

por Carlito Azevedo

Meu Rio de Janeiro cabe numa estrela bastante assimétrica que abrange essencialmente o centro da cidade, à exceção de uma das pontas da estrela, que se estende um pouco mais, como um raio ou como a cauda luminosa da estrela, e vai incluir a Glória, o Largo do Machado e as Laranjeiras.

1. A primeira ponta da estrela é a Praça Tiradentes, com seus 20 sebos empoeirados e barateiros. Boa parte da minha biblioteca veio dali. A diferença principal entre os sebos e as livrarias é a possibilidade de surpresa. Além disso, naqueles arredores você pode se perder tanto por ruas e ruelas reconstruídas e restauradas quanto por outras que às vezes vão lembrar a Berlim de depois da guerra. Toda ruína se parece. Também os brechós e antiquários mais loucos estão ali.

O restaurante onde restaurar-se desse passeio é, quase obrigatoriamente, o centenário Nova Capela, na rua Mem de Sá, 96. Fica aberto até às cinco da manhã. A comida é boa e os quadros na parede são horríveis. Não foi Proust que escreveu que pior que os quadros dos restaurantes só a comida dos museus?

2. A segunda ponta da estrela é a avenida Rio Branco. O ideal é cruzá-la desde o número 1, a pós-modernosa construção que pertence à quarta geração de prédios da avenida. Um bom exercício é tentar identificar a que geração pertence cada prédio ali.

A nascente da Rio Branco fica ali naquele quarteirão que dá para o cais do porto, para as boates-inferninho, como a Escandinávia, e a Polícia Federal. A avenida vai oferecer, entre outras coisas, a mais bela Livraria da Travessa da série de Livrarias da Travessa (Rio Branco, 44). A de Ipanema é mais badalada, a do Leblon é maior, mas a da Rio Branco se situa num prédio privilegiado, com vitrinões enormes, do tempo em que a Rio Branco ainda era avenida Central.

Ande mais um pouco e vai chegar à Leiteria Mineira, que só por um acaso e 20 metros não fica na Rio Branco. Explico melhor: ela fica numa das menores ruas do centro, a rua d'Ajuda (nº 35), um desviozinho que a Rio Branco faz na direção da praça Quinze. Tanto que sentado em qualquer uma de suas mesas, entre coalhadas búlgaras, mingaus, cremes, chás, cafés, torradas petrópolis, o que se vê, pelas portas de vidro, é a agitação da Rio Branco. E isso no maior silêncio, uma bolha de silêncio no centro do burburinho. Como se a vida real fosse apenas um filme que vemos passar, como vemos passar o tempo... que isso é o melhor que fazemos quando estamos em um café. Não hesite em preferir a Leiteria Mineira à clássica confeitaria Colombo que, a duas ou três ruas dali, na rua Gonçalves Dias, está sempre cheia de turistas falando alto e batendo fotos.

Na mesma calçada da Leiteria Mineira, dando uns 50 passos na direção da Cinelândia, é fundamental descer a espiral do edifício Marquês do Herval e se perder entre os livros da Leonardo da Vinci e do sebo Berinjela. Na Leonardo da Vinci a diferença são os importados. Na frente, há o café Gioconda, rigor e qualidade paulistas em ambiente carioquésimo.

3. A terceira ponta da estrela é a praça Quinze. O dia ideal é sábado pela manhã, onde uma feira tradicionalíssima apresenta e vende as mais insólitas peças ao gosto dos mais loucos compradores. Num sábado de novembro havia em algumas das barracas que percorri uniformes originais de soldados russos, coleções completas dos anúncios americanos de Coca-cola, isqueiros alemães que tocam música, cadeados vietnamitas, estatuetas, baralhos, tudo do tempo do onça, caixas de caixas de fósforo japonesas que são as coisas mais lindas do mundo, máquinas de escrever americanas espetacularmente velhas e funcionando, armações de óculos dos anos 30, cartões-postais de um tempo em que você até duvidaria que já existiam cartões-postais, com letrinhas tremidas dizendo, nas mais diversas línguas, que a saudade, o amor e a distância, que tudo isso que é a vida vai bem obrigado, foi embora, já passou, e que valeu.

Quando estiver esgotada sua capacidade de assimilar objetos esquisitos não hesite, se embrenhe ali pelo Arco do Teles para comer alguma coisa. Eu sugiro a açorda de bacalhau do restaurante Casual (fica na esquina de rua do Ouvidor com travessa do Mercado, entre as mais belas restaurações de casario do centro), e o Café do Al-Farabi, um sebo que nos sábados serve uma feijoada, um vatapá, umas tapiocas e uns escondidinhos de carne seca que minha nossa senhora, meu senhor são José.

4. A quarta é pegar um bondinho e subir para Santa Teresa. Quando cruzar os arcos da Lapa você já vai ter uma visão bem bacana. Ao chegar, o melhor é se perder olhando para as casas e vendo a vista, como diz o poeta Chacal. Você vai bater no Museu Chacára do Céu, no café Jasmim-Manga, no restaurante Arnaldo, no caro e delicioso restaurante Aprazível, a melhor vista do Rio, no Mike's House, com uma comida alemã sensacional... mas o principal vai ser mesmo o lugar, Largo dos Guimarães, Silvestre, Largo das Neves. As pessoas que circulam por ali às vezes parecem saídas dos anos 70, mas em nenhum lugar vejo gente tão feliz como ali. Parece que estão sempre comemorando o fato de viverem ali. Dou razão.

5. A quinta ponta da estrela, ou cauda luminosa, como já dissemos, é uma fuga do centro propriamente dito, mas para uma região que também não chega a ser a Zona Sul em seu aspecto mais folclórico e turístico, é a Zona Sul sem praia. A sugestão é começar pela Glória, pelo Outeiro da Glória, seguir pela rua do Catete com uma parada no Museu da República e um passeio por seu lindo jardim cheio de crianças e mães e babás, ali se matou Getúlio Vargas, pra não dizer que não falei de história. Depois siga até o Largo do Machado, antigo Campo das Pitangueiras, cruze a praça com suas palmeiras imperiais e dê de cara com a bela Igreja da Matriz de Nossa Senhora da Glória, com seu campanário de 12 sinos. Talvez já seja novamente momento de restaurar-se: a Rotisseria Sírio-Libanesa existe há 35 anos e quase a tanto tempo todo o mundo a conhece como "o árabe do Largo do Machado" e não por seu nome chique. É comer uma esfiha, uma kafta, um kibe, pão e grão de bico, um doce e querer voltar sempre.

O que há de especial nessa estrela é a mistura humana. Dali para o subúrbio há menos mistura, para a Zona Sul também. Com predominância de carência no subúrbio, com predominância de esbanjamento na Zona Sul. A mistura perfeita para mim é dentro da minha estrela.

Carlito Azevedo é poeta, autor de "Sublunar", entre outros livros.

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