Fronteira

Espaço à pampa

Gaúchos de pilcha circulam pelas lombas da Porto Alegre cantada por Mario Quintana

por Cíntia Moscovich

Quem visita Porto Alegre se depara com uma terra que vive de disputas: entre colorados e gremistas, entre vegetarianos e churrasqueiros, entre bebedores de vinho e de cerveja. Estado fronteiro do Uruguai e da Argentina, o Rio Grande do Sul compartilha com esses vizinhos o mítico espaço do Pampa -local de todas as impossibilidades. O gaúcho dá um boi para não entrar numa briga, e uma boiada para não sair dela. O porto-alegrense vive de oscilar entre o refinamento da civilização e certa nostalgia selvagem.

Ouvidos apurados (o porto-alegrês é um sotaque cantado, que suaviza as vogais fortes da região de fronteira e come os plurais), sugere-se ao visitante caminhar pelo centro de Porto Alegre, que tem por patrono o poeta Mario Quintana, que festejou em versos as ruas por onde andava. Numa região com algumas ladeiras (em porto-alegrês, "lombas"), dividida entre uma parte alta e uma baixa, o visitante pode começar, lá em baixo, pelo Chalé da Praça Quinze, restaurante em estilo bávaro, cuja estrutura de aço veio todinha da Inglaterra. Um mar de gente, até gaúchos de pilcha -bota, bombacha e chapéu de barbicacho- circula no largo Glênio Peres, antigo terminal de bondes e de ônibus. É cuidar dos batedores de carteira e, ali em frente, está o Mercado Público, com suas especiarias, artesanato, fiambrerias como a da Banca do Holandês e restaurantes tradicionais como o Gambrinus e o Naval. Embora o cheiro de peixe e ervas seja forte, às vezes muito, o gaúcho é forte e aprecia o sorvete da Banca 40.

Saindo do Mercado, encontra-se a estação do Trensurb, o metrô de superfície, e também o Muro da Mauá, que protege a cidade da possível repetição da terrível enchente de 1941. Procure-se o prédio da prefeitura e a Fonte Talavera, presente da colônia espanhola à cidade e que vive entre grades para não ser depredada.

Terra de autores como Erico Verissimo, Luis Fernando Verissimo, Caio Fernando Abreu, Lya Luft e Moacyr Scliar, Porto Alegre sedia, há 53 anos, entre os jacarandás da Praça da Alfândega, a maior feira de livros a céu aberto da América Latina. A Feira do Livro se inicia na última sexta-feira de outubro e dura duas semanas. Na praça, um último fotógrafo lambe-lambe trabalha junto ao monumento, bronze feito por Xico Stockinger, que representa Carlos Drummond de Andrade lendo um livro para Mario Quintana. O livro, não se sabe como, foi roubado e teve de ser recolocado com soldas reforçadas.

No entorno da praça, que fora da época da feira atrai desocupados, pode ser visitado o conjunto de prédios projetados no século 19 pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (antiga sede da Delegacia Fiscal), o Memorial do Rio Grande do Sul (antiga sede dos Correios e Telégrafos) e a sede original do Banco da Província, hoje Santander Cultural. Indo pela Andradas, está a Casa de Cultura Mario Quintana, ex-Hotel Majestic, onde o poeta morou por anos.

Subindo pela Borges de Medeiros, rumo à parte alta da cidade, olhe-se ao fundo o viaduto, marco da modernidade porto-alegrense e que hoje está meio esquecido. Dobre-se na Riachuelo, em direção ao Theatro São Pedro, prédio de 1858, restaurado e mantido graças à iniciativa de dona Eva Sopher. Na Praça da Matriz, elevam-se a catedral e o Palácio Piratini, sede do governo do estado.

Na Cidade Baixa, que virou o bairro da boemia, sucedendo o Bom Fim (onde ainda se concentra a maioria da comunidade judaica), está a Travessa dos Venezianos, um conjunto de 15 casas do início do século 20 que hoje abriga associações diversas, como a Chico Lisboa, dos artistas plásticos.

Se o visitante chega no inverno, aconselha-se roupa pesada. Pode estar soprando o minuano, vento que vem do Pampa. Um almoço numa das tantas galeterias da cidade -rodízios de massas e galetos ao primo canto assados- forram bem o estômago. Para quem está com um pouco mais de pressa, as pedidas mais saborosas são o bauru do Trianon e o cachorro-quente da carrocinha que fica em frente ao colégio Rosário, na praça São Sebastião.

Dos passeios imperdíveis, destaca-se o bairro Moinhos de Vento. Não pela sofisticação dos cafés, restaurantes e lojas de grife: o foco das atenções são os jardins das casas que resistiram às ofertas das imobiliárias. Uma visita à rua Padre Chagas ajuda a compreender por que o bairro é comparado à Recoleta de Buenos Aires.

De volta ao centro, hora da janta, o mais tradicional é a churrascaria Barranco, na subida da Protásio Alves. É mandar baixar chope e costela gorda. Ou vinho e picanha. Ou, então, se aventurar por um dos muitos espetos corridos da cidade. O costelão do Na Brasa é dos mais perfeitos do mundo.

Aos domingos, o porto-alegrense sai de casa a bordo de garrafa térmica e cuia de chimarrão com destino aos parques. Pelas manhãs, o ponto de encontro é o Brique do Parque da Redenção. Se é dia de jogo, no Olímpico ou no Beira-Rio, a cidade se agita: ou as pessoas se trancam em casa ou vão pela rua festejando. Outros pontos para os quais convergem os porto-alegrenses são o Parque Moinhos de Vento, o Parcão, e o Parque da Harmonia, na beira do Guaíba. Ao lado da Usina do Gasômetro, todos se sentam para ver o pôr-do-sol que, dizem alguns, é o mais belo do mundo. Há, claro, os que discordem.

Cíntia Moscovich é escritora, autora de "Por que Sou Gorda, Mamãe?", entre outros livros.

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