São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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+ futebol

Morto no dia 24 de janeiro, o jogador Leônidas da Silva foi reverenciado por autores como Gilberto Freyre, Décio de Almeida Prado e Nelson Rodrigues

OS DIAMANTES SÃO ETERNOS

Túlio Velho Barreto
especial para a Folha

Como diria Nelson Rodrigues, "15 minutos antes de tudo" já estava escrito que o futebol brasileiro daria ao mundo três grandes craques e que eles reinariam, cada um em sua época, nos templos sagrados do futebol, aqui e alhures: primeiro foi Friedenreich ou Fried, "el Tigre", que teria marcado mais gols do que Pelé; depois, Leônidas da Silva, "o Diamante Negro", que teria feito um gol descalço na Copa de 1938, na França, quando foi o artilheiro; para só então aparecer o maior de todos, "o rei" Pelé. É a mais absoluta verdade. Por assim dizer, Leônidas da Silva foi o Pelé do futebol nas décadas de 1930 e 40, embora não tenha havido as Copas do Mundo de 1942 e 46, o que impediu seu coroamento. Mas isso não evitou que ele virasse marca de cigarro, que não mais existe, e de chocolate, o perene "Diamante Negro", criado em sua homenagem. Desde então, até a mais desavisada criança já entrou em contato com uma das maiores lendas do futebol em todo o mundo e de todos os tempos. E a admiração despertada por ele foi tanta que ultrapassou em muito os limites das quatro linhas e mesmo dos estádios de futebol, em especial para aqueles que o viram jogar e não apenas ouviram falar dele.

Dionisíaco
Pois bem. Contemporâneo de outros dois gênios do futebol, o "divino" Domingos da Guia e "a maravilha negra" Fausto, com eles formou uma espinha dorsal (Domingos era zagueiro; Fausto, volante; e Leônidas, atacante), campeã e quase imbatível nos anos de 1930, em especial no Vasco de 34 e no Flamengo de 36. Para o sociólogo Gilberto Freyre, Leônidas foi o paradigma do jogador brasileiro, isto é, de estilo e caráter "dionisíaco". Por isso, Leônidas mereceu citação não só em "Sobrados e Mucambos", em que foi chamado de "bailarino da bola", mas em quase todos os seus escritos sobre futebol a partir de "Foot-ball Mulato", publicado ainda em 1938. Pela mesma razão, o crítico teatral e literário Décio de Almeida Prado escreveu um ensaio, "Recordação de Leônidas", para dizer que "a partida que consolidou o prestígio de Leônidas em São Paulo foi espetacular, digna do mito". Foi no Pacaembu, em um "derby" contra o Palmeiras, em 1942, quando este ainda se chamava Palestra Itália. O São Paulo perdeu de 2 a 1, mas Leônidas fez "o milagre esperado pela multidão de fiéis: impusera à partida a sua marca de fábrica. O selo da jogada prodigiosa, jamais vista, nascida da fertilidade do seu cérebro e da elasticidade de suas pernas". Ou seja, inventara a "bicicleta", a mesma jogada que impressionou o escritor Eduardo Galeano, que a chama de "chilena". O uruguaio lembra que "os gols de Leônidas eram tão lindos que até o goleiro vencido se levantava para felicitá-lo". Já no premiado livro "Em Liberdade", o escritor Silviano Santiago descreve o que seria o diário de Graciliano Ramos após deixar os porões do Estado Novo. É uma ficção construída a partir de extensa pesquisa sobre a vida de Graciliano Ramos na casa de seu amigo José Lins do Rego, que o acolhera, no Rio de Janeiro. Zelins, que "era Flamengo doente", tinha "enorme interesse pelo futebol", o que fazia com que, naquela casa, "Leônidas fosse um ídolo maior do que Dostoiévski. É "Diamante Negro" a qualquer momento da conversa", impacientava-se o autor de "Vidas Secas", mais preocupado em escrever suas memórias do cárcere.

Mágica
Mas os craques da crônica esportiva, os irmãos Mario Filho e Nelson Rodrigues, também viram Leônidas jogar e encantar. Para Mario Filho, ele era esse tipo de jogador: "Quando a gente estava arregalando os olhos para ver se via, a mágica estava feita"; para Nelson Rodrigues: "Um jogador rigorosamente brasileiro, da cabeça aos sapatos. Tinha a fantasia, a improvisação, a molecagem, a sensualidade do nosso craque típico".
Leônidas -que naquele tempo era tão assediado quanto os maiores cantores e ídolos da Rádio Nacional- nasceu no dia 6 de setembro de 1913 e, dizem, morreu no último dia 24, o que parece absolutamente despropositado, pois até aquela personagem de Nelson Rodrigues que costuma perguntar "quem é a bola?" sabe que os diamantes são eternos.


Túlio Velho Barreto é cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.



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