São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Era uma vez na América

O CONTROVERTIDO CINEASTA DINAMARQUÊS CONVERSA COM O DIRETOR DE "MAGNÓLIA" E "BOOGIE NIGHTS" SOBRE "DOGVILLE", O EGO DOS ATORES, A VIDA NOS EUA E OS SEUS FILMES FAVORITOS

Lars Von Trier/Paul Thomas Anderson

da "Black Book"

Ok, vamos direto ao assunto: Uma conversa com Lars von Trier e Paul Thomas Anderson é o sonho lascivo de qualquer cinéfilo. Como dois dos mais importantes diretores de cinema, eles criaram algumas das experiências cinematográficas mais marcantes na memória recente. Apesar de abordagens totalmente diferentes, ambos estão ligados por uma preocupação com o "outsider" na sociedade: os corações solitários de "Magnólia" e "Embriagados de Amor", de Anderson, encontram correspondentes na América provinciana de "Dançando no Escuro", de Von Trier, e no novo "Dogville".
Ambos dão a seus filmes uma disciplina precisa e enfocada, que deixa pouco ao acaso. Von Trier, particularmente, criou reputação pelo relacionamento combativo com seus atores, notadamente com Björk durante a realização de "Dançando no Escuro", mas sua abordagem severa geralmente resulta em atuações que definem carreiras. Anderson também extraiu brilhantismo de suas produções coletivas, especialmente de Philip Seymour Hoffman, que trabalhou em todos os seus filmes, e de Adam Sandler, cuja atuação complexa e atormentada em "Embriagados de Amor" foi uma das grandes surpresas do ano passado. Os dois diretores se encontraram no estúdio de filmagem de Von Trier, Zentropa, nos arredores de Copenhague, para fofocar sobre atores, trocar opiniões sobre os Estados Unidos e falar de alguns de seus filmes favoritos.

Lars von Trier - Eu gostaria de falar sobre esse negócio de atores, porque gostei muito de "Magnólia" e achei que havia uma espécie de sensação familiar nos resultados que você consegue dos atores, e você me disse que é porque os ama.
Paul Thomas Anderson - Hum-hum.
Von Trier - Isso foi um choque. Se você os ama - digamos que seja verdade-, como trabalha com eles?
Anderson - Bem, eles dizem as falas. Então...
Von Trier - ...você diz: pronto?
Anderson - Vai.
Von Trier - Vai? E então eles dizem as falas?
Anderson - Bem, o negócio é o seguinte. Quando escrevi "Magnólia", estava escrevendo para os atores, então podia ouvir na minha cabeça como eles poderiam falar, escrevia com essa vantagem. Mas os atores não me assustam. Sabe o que me assusta? Os maus atores. Um bom ator é como um grande músico, mas um mau ator me aterroriza, porque significa que eu terei de encontrar alguma coisa para dizer ou fazer. E isso é realmente frustrante, porque você quer estar concentrado em tudo, e em vez disso se vê atrapalhado ajudando alguém a decorar as falas ou a não bater nos móveis, e aí você quer estrangulá-los. Eu realmente tive sorte, porque o primeiro ator de verdade com quem trabalhei foi Philip Baker Hall. Foi como encontrar alguém que, instantaneamente, está ali para você, que quer trabalhar com você e não contra você. Por isso acho que fiquei com uma idéia corrompida de que é assim que tem de ser, então fico chocado quando Burt Reynolds aparece, ou alguém do tipo... acho que secretamente você ama os atores.


OS ATORES SÃO A ÚNICA COISA QUE EXISTE ENTRE VOCÊ E UM BOM FILME, MAS ESTAMOS FALANDO DE CONTROLE; É COMO FILMAR ANIMAIS, SÃO INCONTROLÁVEIS


Von Trier - [risos] Eu tento não fazer isso, mas os atores são a única coisa que existe entre você e um bom filme. Essa é a verdade. Mas estamos falando de controle. É um pouco como filmar animais -eles são incontroláveis.
Anderson - Nem todos.
Von Trier - Não, e deveriam ser incontroláveis. Se você quer tirar algo de uma pessoa, precisa lhe dar um pouco de confiança, é claro, e é por isso que faço da coisa toda mais um jogo do que direção. Mas há atores e atores. Stellan [Skarsgärd, que trabalhou em "Dogville", "Dançando no Escuro" e "Ondas do Destino"] não é um ator.
Anderson - Mas eu sinto a mesma coisa sobre Philip [Seymour Hoffman] ou John C. Reilly: eles não são atores -são minha família.
Von Trier - Sim, mas como são da família você também sabe o que eles podem ou não podem fazer. É como seu tio -você sabe no que ele é bom e no que não é. É claro que eles podem ser tão familiares que você não dá uma oportunidade ao seu tio, o que também é injusto.
Anderson - O relacionamento que você tem com seu diretor-assistente, editor, fotógrafo ou figurinista é algo parecido, em que você pode confiar mais do que pode confiar num ator?
Von Trier - Neste momento estou filmando em cinemascope, por isso estou andando por aí com essa câmera enorme e ridícula, com equipamento de som, equipamento de luz, você sabe. E depois há cem pessoas à minha volta que de certo modo apenas dizem "boa sorte" e vão embora, e ficamos sozinhos durante quatro horas, os atores e eu. Então realmente todos os meus temores estão nessa técnica, porque tenho muita claustrofobia. Se eu não fizer nada, nada acontece. Vou lhe contar, nos últimos quatro meses estou passando pela pior baixa de toda a minha vida e minha saúde psíquica está extremamente frágil neste momento.
Anderson - Por quê? É uma coisa que acontece quando você termina um filme ou depois do lançamento? Existe um padrão ou você reconhece o motivo?
Von Trier - Bem, existe um padrão, é claro. Quando você produz um filme, toda a sua força vai para ele, então você não pode usar sua força para imaginar constantemente que está morrendo. E também você tem esse tipo de sensação de Baden-Powell [fundador do escotismo] de que simplesmente precisa continuar marchando durante oito ou dez semanas, ou o tempo que for, o que é bom, é claro, a sensação masoquista de que você simplesmente tem de ir em frente e se ferir, e se você se ferir o suficiente não importa - você morre por um motivo.
Anderson - Mas você consegue evitar essa sensação quando está escrevendo? Está escrevendo agora?
Von Trier - Não, não. Acho que o motivo pelo qual estou realmente amortecido agora é essa espera por Nicole [Kidman]. Porque normalmente eu escrevo um roteiro, e faço rarará, mas, como estou esperando por ela há um ano e meio, a coisa empacou, sinto-me podre, terrível. Não em relação ao filme - se você tem medo de morrer, não se importa a mínima com um filme ou como ele é recebido ou quem trabalha nele, mas é apenas o fato de que trabalhar num filme é uma maneira de entrar num humor positivo e tirar um monte de coisas do seu sistema. Nicole e eu decidimos há muito tempo que devíamos fazer mais filmes juntos, mas acontece que isso não foi possível depois de um ano e meio de sofrimento [esperando por uma brecha na agenda de Nicole], e não posso fazer outros filmes no intervalo. É uma trilogia que escrevi com a mesma personagem principal.
Anderson - Quando você pensou nisso, quando estava escrevendo "Dogville"? Você sabia que ia ser...
Von Trier - Não, eu o terminei e gostei muito do projeto, e gostei muito de Nicole, quer dizer, gostei da personagem dela, Grace, muito mesmo, porque ela é um pouco mais agressiva, um pouco mais humana do que os outros personagens em que trabalhei.
Anderson - Espere, é porque ela é uma personagem mais humana ou uma atriz mais humana?
Von Trier - [longa pausa] É porque é uma personagem mais humana e uma atriz menos humana, mas a mistura de Nicole e Grace foi muito boa, e gostei disso, então subitamente vi que tinha a obrigação de continuar com Grace, continuar essa maneira de filmar, porque é muito fácil inventar coisas novas o tempo todo, mas não é muito maduro, eu acho.
Se eu realmente queria dizer alguma coisa com esse filme, achava que devia reforçá-lo continuando nessa linha. Porque, na minha opinião, existem dois tipos de diretor: aqueles que a cada vez definem um novo padrão, como Kubrick. Depois há os diretores que continuam fazendo sempre a mesma coisa, repetindo-se. É claro que existem misturas entre esses dois tipos, mas de alguma forma o maduro é aquele que faz sempre a mesma coisa.
Anderson - Você dirá algo diferente daqui a alguns anos.
Von Trier - Deixe-me voltar ao... eu gosto da natureza desumana de Nicole. Não sei se "desumana" é a palavra correta: sei que soa negativo, mas não é realmente o que quero dizer. Ela é desse tipo de estrela maior que a vida, que tem uma disciplina e uma técnica notáveis. Pegar esse tipo de tamanho e obrigá-lo a se quebrar um pouco foi uma coisa muito boa de fazer... mas também pegar sua capacidade, seu profissionalismo e sua disposição para trabalhar, que são coisas muito positivas, e tentar quebrá-los um pouco em benefício do produto, o que ela ficou muito contente de fazer, e também se vê. Então tive a idéia de continuar e fazer três filmes, mas três filmes que se passam nos Estados Unidos... [a atriz decidiu posteriormente que não atuará nos outros dois filmes]
Anderson - Lars, o que preciso fazer para que você venha para os Estados Unidos?
Von Trier - Precisa destruir toda a Europa. [risos]
Anderson - Está bem, vou fazer isso. Farei qualquer coisa.
Von Trier - Mas, escute, eu sou americano.
Anderson - O que você quer dizer?
Von Trier - Eu já estou lá. Estou participando da vida americana.
Anderson - [risos] Está?
Von Trier - Sei exatamente como é. É como o tédio, mais ou menos, mas você sabe, os americanos costumavam ser europeus, ou aqueles com quem eu posso me relacionar facilmente, e talvez não sejam os... não, não vou dizer isso.
Anderson - Diga! Diga! Continue.
Von Trier - Os que foram para a América não foram os mais inteligentes [ambos riem]. Não, escute, por favor apague isso. Não, mas há muitas histórias sobre pessoas que foram para a América porque estavam passando fome. E na sociedade liberal você vai para onde não se passa fome -essa é a idéia-, mas as pessoas não têm mais permissão para fazer isso, por algum motivo estranho. Não se considera mais uma boa idéia ir para onde há comida. A América também está fechando suas fronteiras, certo? O que era uma grande qualidade, eu sempre achei, da idéia americana como a vejo: deixar todo mundo entrar. Na Escandinávia a integração é uma grande coisa, a qualquer momento eles lhe dizem: "Você vai se tornar dinamarquês?". "Sim, sim, sim", eles dizem, "é claro", mas alguém está atirando neles pelas costas, certo? Integrar-se, então, é muito importante, aprender a língua, aprender os costumes, não matar seus animais de maneira dolorosa, tudo isso. Dizer que você só pode vir nos visitar se souber a língua, se fizer isso, se fizesse aquilo... Ora! Esse é um modelo escandinavo, porque eles querem integrá-los à sociedade para poderem... educá-los. Mas isso é tão arrogante! E, como nunca estive em Nova York, adoro a idéia de Chinatown e todas essas coisas, isso é fantástico. Realmente acho uma idéia maravilhosa. Tenho certeza de que a América não é assim. Mas, de alguma forma, acho que faz parte da idéia.


NÃO TENHO A SENSAÇÃO DO ORGULHO AMERICANO; APENAS TENHO UMA SENSAÇÃO DE QUE TODO MUNDO ESTÁ ALI, BATALHANDO PELA MESMA COISA


Anderson - Sabe, Lars, quando assisti a "Dogville" não me pareceu sobre a América. Era sobre qualquer cidade pequena, de mentalidade estreita, não era sobre a América até o fundo.
Von Trier - Não. Concordo totalmente. A única coisa que fiz sobre a América, ou que deveria se relacionar à América, é uma espécie de sentimento positivo que tento criar, algumas coisas que lembro de Steinbeck ou de Mark Twain -sentimentos ou ambientes...
Anderson - Espere, não posso acreditar nisso, porque Steinbeck foi uma obsessão minha nesse último ano. Você o leu muito?
Von Trier - Quando eu era jovem, sim.
Anderson - Existe uma coletânea de contos chamada "A América e os Americanos" que é incrível, eu queria dá-la a você. Tem uma parte dela que parece exatamente "Dogville", que significou muito para mim durante o ano passado, porque ele lutou na Segunda Guerra Mundial, ele escreveu sobre o Vietnã, escreveu sobre os interrogatórios de McCarthy e viu tudo isso. Ele foi realmente um grande romancista, mas também foi jornalista, e um dos grandes escritores americanos.
Von Trier - Eu não li tanto, mas a narrativa do filme, que eu achava muito americana, mais tarde me disseram que não era, absolutamente.
Anderson - A narrativa? É muito britânica!
Von Trier - Não é britânica. Eu falei com John Hurt sobre isso, e ele disse: "Isso não é britânico". Então é meio dinamarquesa-britânica, tentando ser americana.
Anderson - Mas, você sabe, se eu não o conhecesse não teria idéia de onde diabos veio esse filme, ou muitos de seus filmes.
Von Trier - Acho isso muito bom, porque é quase como David Bowie, você sabe, nós tínhamos certeza de que ele realmente era de Marte.
Anderson - Como você teve a idéia de terminar "Dogville" com "Young Americans"?
Von Trier - Paul Bettany [ator que interpreta o intelectual da aldeia, Tom] e eu fomos grandes fãs de David Bowie e, a certa altura, quando o moral estava muito baixo no set, o tocamos pelos alto-falantes para todo mundo dançar. Eu sempre adorei essa melodia, mas não compreendia a letra. Ainda não a compreendo. [A conversa é interrompida por um telefonema para Paul, avisando-o de que tem um vôo marcado para Nova York.]
Von Trier - Não se preocupe.
Anderson - Não estou preocupado. Pareço preocupado? Lars, estou aqui sentado com você... você é meu herói. Não posso me preocupar.
Von Trier - É como sentar-se com Bush, você não pode se preocupar?
Anderson - Se Bush o convidasse para a Casa Branca, você iria?
Von Trier - Isso não faria ser mais fácil para mim sentar num avião.
Anderson - Mas nós o dopamos, lhe damos umas pílulas, tudo se apaga, o levamos em cadeira de rodas até o carro.
Von Trier - Tenho certeza de que Bush tem o poder de me levar à Casa Branca, se realmente quiser.
Anderson - Mas, se Bush ligasse para você e dissesse: "Quero que você venha até a Casa Branca conversar comigo sobre o que está dizendo". Você iria?
Von Trier - Ah, não [risos]. E você?
Anderson - De jeito nenhum. Ouvi falar que Clinton adorou "Boogie Nights" e isso me deixou entusiasmado, me fez gostar muito dele. E depois eles realmente pediram uma cópia de "Magnólia".
Von Trier - Nós mandamos "Ondas do Destino", eu acho.
Anderson - Para a Casa Branca?
Von Trier - Para Clinton ou sua filha, não sei. Eles simplesmente não podem ir até uma locadora de vídeos, é impossível -longe demais da Casa Branca.
Anderson - Não sei. Clinton costumava gostar de sair bastante da Casa Branca. Fazia excursões noturnas ao McDonald's, coisas desse tipo. Acho que ele queria sair de casa.
Von Trier - Comparado a Bush, Clinton parecia um bom sujeito, não? Tocava saxofone...
Anderson - Tocava saxofone, corria atrás de mulheres, quer dizer, é o tipo de presidente de que a gente gosta... Eu cresci na Califórnia e amo a Califórnia, e durante muito tempo ela realmente teve um sentido próprio, até recentemente, com Arnold Schwarzenegger. E Nova York é notável nesse sentido, quando desço do avião, a primeira coisa que percebo é... sim, como todo mundo é gordo, mas também percebo que todo mundo está lá, todo mundo está lá.
Von Trier - E o que isso quer dizer?
Anderson - É uma sensação excitante e tranqüilizadora. Não tenho a sensação do orgulho americano. Apenas tenho uma sensação de que todo mundo está ali, batalhando pela mesma coisa, que no mundo inteiro todo mundo está atrás da mesma coisa: apenas um pouco de felicidade a cada dia.
Von Trier - Não podemos discordar disso, é claro, é assim que as coisas são.
Anderson - Eu estive na Croácia, onde eles têm gostam de dizer que "existe um governo diferente em cada rua aqui, existem 87 partidos políticos". Sinto a mesma coisa sobre a América. Eu me rebelo contra os poderes e principados. Sempre me rebelarei.
Von Trier - Eu estou representando todas as boas coisas que a América deveria ser. Mas dizer que eu sei que seu país poderia ser um lugar melhor, como uma pessoa que não é americana, é a coisa mais provocante que se pode dizer, e por quê? Não tem muito a ver com nacionalismo ou fronteiras; tem a ver com política e sua idéia básica do que se deve fazer com os seres humanos.
Anderson - De onde você tirou o título "Dogville"?
Von Trier - Eu conversei com [o diretor de "Festa de Família"] Thomas Winterberg, na verdade com um de seus colegas, e estávamos falando sobre campos de concentração, então tornou-se América, diretamente [eles riem]. Não, estávamos falando sobre como eles conseguiam manter a disciplina e a vida no campo de concentração, e a teoria dele, na qual acredito, é que eles transformavam as pessoas em animais. Quando são animais, são muito mais fáceis de controlar. É muito fácil transformar seres humanos em animais: deixe-os ser cruéis, deixe-os ser qualquer coisa -é uma linha tão tênue-, e isso foi parte da estratégia nos campos de concentração. Então falamos sobre cães, e eu disse que o filme tinha de se chamar "alguma coisa-ville".
Anderson - Então há algumas coisas...
Von Trier - [risos] Na verdade, muitas coisas. Mas o mais estranho é que, na minha situação - em que você não pode se colocar-, eu conheça tanto sobre a América. Oitenta por cento da minha mídia, a mídia que eu vejo, têm a ver com a América, 80% do jornal têm a ver com a América de uma maneira ou de outra, 80% da televisão. Pode imaginar isso?
Anderson - Não é assim na maior parte do mundo?
Von Trier - Sim, é, mas isso me coloca numa situação em que a América também faz parte de mim, quer eu queira, quer não, ou quer você queira, quer não: faz parte de mim. E é por isso que eu tenho todo o direito de dizer qualquer coisa que eu queira, porque já ouvi falar mais sobre a América do que sobre a Dinamarca, pelo amor de Deus!
Anderson - Lindo.
Von Trier - Na verdade eu assisti a "Magnólia" para elencar meu próprio filme - mas gostei muito. Era meio europeu, embora hoje eu também não goste de filmes europeus, porque são americanos demais. É muito uma questão de gosto, mas é muito satisfatório quando alguém ousa fazer o que acha mais interessante, e acredito que foi o que aconteceu com "Magnólia". Acho extremamente importante agradar a si mesmo.


"ONDAS DO DESTINO" FOI FEITO COM BOAS INTENÇÕES, MAS EU NÃO O CHAMARIA DE UM FILME HONESTO


Anderson - Posso contar em uma mão, talvez nas duas mãos, as pessoas em quem confio e acho que, se faço um filme, faço para mim mesmo, absolutamente em primeiro lugar. Mas há pessoas para as quais eu quero mostrá-lo, que eu quero que gostem dele, mas não faz mal se elas não gostarem, porque elas vão me dizer por quê, e como, e quais são os motivos. E isso é bom: não é de modo algum debilitante ou doloroso, mas, se você puder colocá-los na palma da mão...
Von Trier - Para mim foi muito importante mostrar meu primeiro filme para Andrei Tarkóvski, e ele o detestou. Ele achou uma porcaria. O filme era "Element of Crime". Ele detestou, veja só... Foi um pouco como crescer. Mas eu não o respeitaria se ele dissesse qualquer outra coisa. O problema em assistir a filmes é que você tem alguns diretores muito bons que você admira, mas todo mundo esgota seu talento, todo mundo. Ou morre. Ou ambos.
Anderson - Você lembra bem de filmes? Eu nunca lembro bem dos filmes, mas lembro daqueles de que eu gosto, que significaram alguma coisa para mim, e lembro de "Ondas do Destino". Eu estava no meio da edição de "Boogie Nights", sozinho num domingo à noite, e, quando o vi, foi realmente como se as nuvens se abrissem -de repente o sol começou a brilhar, por mais cinzento que fosse o filme. Mas não lembro de detalhes dele.
Von Trier - Isso é porque o que você gosta e o que eu gosto num filme não é do todo. Nós vemos filmes de maneira diferente da maioria das pessoas, e é por isso que não lembramos direito da coisa toda. Mas eu gosto muito de alguns filmes de que não gostei quando assisti pela primeira vez.
Anderson - Quais, por exemplo?
Von Trier - "Barry Lyndon" [de Kubrick] ainda é um dos meus filmes favoritos, sabe? É um filme muito estranho, mas ainda é monumental.
Anderson - Quando eu o vi, achei muito sério e depois vi pela segunda vez e disse: "É incrivelmente hilariante!" Na verdade me senti assim sobre "Dogville", você sabe: "Que comédia incrível, louca!" Mas foi quase aquela espécie de relação bizarra com um filme, quando você absolutamente não o entende no início.
Von Trier - Eu estava falando com Nicole [Kidman], que tinha conversado com Kubrick sobre ele, e ele não gostava nada de "Barry Lyndon". É claro. Ele lhe disse que era longo demais. Quer dizer, a última cena, em que ela escreve o nome num papel, leva quase meia hora, certo? Para escrever o nome... Então, se ele achava o filme longo demais, eu poderia indicar um ou dois quadros para serem cortados.
Anderson - Você chegou a conhecê-lo? Pergunto isso porque eu o conheci. Na verdade foi quando conheci Nicole. Ele realmente não gostou muito de mim, até que percebeu que eu tinha escrito o filme que eu dirigi. Foi então que decidiu: está bem, agora vou ser simpático com você. Assim como: se você é um diretor, vá para o inferno, mas se você é um escritor...
Von Trier - Outro filme de que gosto muito é "O Franco-Atirador" [de Michael Cimino].
Anderson - Quando você o assistiu? Quando foi lançado?
Von Trier - Assisti dez vezes.
Anderson - Mesmo? E quais são os outros?
Von Trier - Muitos filmes antigos italianos. Pasolini, Antonioni, é claro. Tudo depende de quando você toma consciência do cinema. Eu fiquei pronto mais ou menos na época desse período alemão, com Werner Herzog e Wim Wenders, mas demorei muito para me fascinar pela nouvelle vague. É muito interessante essa questão de quando você está aberto para esse... acho que não são muitos anos, cinco anos mais ou menos.
Anderson - Para mim, a primeira coisa que vem à mente é "Tubarão".
Von Trier - "Tubarão"! Nunca assisti.
Anderson - "Tubarão" foi uma coisa muito muito muito grande para mim. Meu pai trabalhava na televisão em Los Angeles -ele fazia dublagem e era amigo de muita gente da técnica e, quando foi possível ter uma máquina de vídeo em casa, ele gravou "O Mágico de Oz", "Monty Python" e o "Santo Graal". Havia também uma cópia pirata de "Tubarão". Esses foram os filmes a que eu pude assistir várias vezes. E o vídeo era grande como esta sala, parecia um tanque, e a fita era do tamanho de um caminhão - e eu chegava em casa e assistia toda noite, todo dia, a "Tubarão", "Monty Python" e "O Mágico de Oz". Mais tarde aconteceram coisas aqui e ali -como eu disse, quando assisti "Ondas do Destino". Foi interessante, porque eu me senti confiante o suficiente de que não queria copiar "Ondas do Destino". Apenas achei: "Puxa, eu posso fazer isso". Foi quase como se percebesse que podia ser tão honesto.
Von Trier - Você acha que "Ondas do Destino" era honesto?
Anderson - Não me diga isso! Não preciso saber isso. Não quero saber isso!
Von Trier - Não, ele foi feito com boas intenções, mas eu não o chamaria de honesto. Para mim a história é muito complicada, porque todos aqueles temas com que estou trabalhando na verdade são temas... proibidos em minha casa, todas as coisas que eram consideradas de mau gosto.
Anderson - O que era proibido na sua casa?
Von Trier - Toda essa coisa sobre religião e milagres e blablablá... foi um surto de liberdade ser capaz de escrever essa coisa. Mas eu achei que era um filme muito americano. Eu sempre acho.
Anderson - Foi por isso que gostei dele. Lars, você terminou de escrever esse filme?
Von Trier - Sim, foi escrito há muito tempo.
Anderson - Quanto tempo você leva para escrever?
Von Trier - Três semanas.
Anderson - Eu levo três anos.
Von Trier - Sim, mas eu simplesmente não olho para trás. Se você quiser ler o roteiro, seja bem-vindo. Se for montar o elenco, acho que deve ler. Porque você ama atores e tem um relacionamento melhor com eles, talvez.
Anderson - Acho que secretamente você ama os atores.

A entrevista acima e as duas seguintes foram publicadas originalmente na revista "Black Book".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: + futebol: Os diamantes são eternos
Próximo Texto: Gritos e sussurros
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.