São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Jacques Rancière

Filósofo comenta exposição que contesta idéia de ruptura associada ao movimento

A abstração revisitada

Divulgação
"Homenagem a Blériot" (1914), aquarela sobre papel do artista francês Robert Delaunay (1885-1941)


A exposição intitulada "Nas Origens da Abstração", atualmente apresentada no Museu d'Orsay, em Paris, nada tem de revolucionária em si. Sua concepção, em troca, marca uma mudança significativa na maneira de apresentar e de pensar a arte do século 20. Durante décadas, o advento da pintura abstrata foi pensado sob o signo da ruptura radical entre o antigo e o novo. O antigo era a arte figurativa, aquela que, segundo as frases irônicas de Kandinski, passava do retrato do conselheiro "N" ou da baronesa "Y" à representação de uma revoada de patos ou de bezerros repousando à sombra. O novo era uma arte sem outra referência senão a si mesma, uma arte que explorava os recursos próprios da pintura: a superfície bidimensional e a matéria colorida.
A pintura abstrata emblematizava assim uma idéia simples da modernidade artística: a modernidade como conquista por cada arte de sua autonomia, autonomia fundada sobre os recursos próprios de sua materialidade. À autonomia da pintura abstrata fazia-se corresponder uma autonomia da literatura, opondo a intransitividade de sua palavra à linguagem comunicativa, ou uma autonomia da música baseada na linguagem de 12 sons, separada de toda tradição expressiva. Mas, ao mesmo tempo, a abstração pictórica tinha uma evidência privilegiada. Não é muito fácil distinguir uma frase intransitiva de uma frase comunicativa, como tampouco uma música pura de uma música expressiva.
Em troca, distingue-se facilmente o que separa um quadrado branco sobre fundo branco de um repouso de bezerros à sombra. Acrescente-se a isso que a pintura, como arte do visível, é a arte que emblematiza a arte em geral. O quadrado branco sobre fundo branco e algumas telas do mesmo gênero puderam ser assim as hóstias que testemunhavam a presença visível da modernidade artística em toda a sua pureza.
Sem dúvida, essa pureza foi fortemente questionada desde os anos 1960. Mas o questionamento da pureza da "grande arte" em nome das formas da iconografia popular ou da estética publicitária não punha em causa o paradigma teórico dessa arte. Artistas pop, artistas conceituais ou artistas pós-modernos declararam caduca a pureza abstrata cantada pelos teóricos do modernismo. Mas, ao declararem passada sua época, eles validavam retrospectivamente a interpretação modernista da revolução estética, como autonomia de cada arte, como concentração de cada uma em seus materiais e formas próprios. Uma verdadeira crítica da teoria modernista seria mostrar não que o sonho de autonomia da pintura abstrata acabou, mas que essa pintura nunca correspondeu ao sonho ao qual quiseram identificá-la. Ela nunca significou um rompimento da pintura nem com a preocupação de representar o mundo exterior nem com as formas de expressão das outras artes.
É exatamente essa revisão que aparece na exposição "Nas Origens da Abstração" e que é simbolizada pelos títulos de suas duas seções: "O Olho Solar" e "O Olho Músico". A primeira seção põe em evidência a continuidade da pintura abstrata com um século de pesquisas sobre o visível, iniciadas na época do romantismo. O espectador que entra na primeira sala da exposição acredita ver ao longe colagens abstratas. Ao se aproximar, descobre que se trata das telas óticas utilizadas por Goethe para as experiências que resultaram em sua teoria das cores.
Discos de Newton, desenhos de Turner representando experiências de refração das cores de um líquido, círculos cromáticos e outros artefatos da experiência científica parecem a todo momento antecipar os discos coloridos "órficos" de Robert e Sonia Delaunay, as "compenetrações iridescentes" de Giacomo Balla ou as "linhas irradiantes" de Larionov. Mas, entre os discos da ciência e os da pintura abstrata, o caminho passa por todos os efeitos de sol, nascente ou poente, glorioso ou rasteiro, que a época impressionista, neo-impressionista ou simbolista buscou incansavelmente surpreender ou simbolizar.


Se a arte devia consistir em formas, vibrações e dinamismos, não era certamente para afirmar sua oposição em relação à imitação das formas naturais ou em relação ao comércio e aos divertimentos sociais


A abstração nasce das pesquisas de um século dedicado não a substituir realidades concretas por formas abstratas, mas a penetrar mais profundamente o interior dessas formas concretas, a se colocar no ponto em que elas se dissolvem na luz solar ou então se transformam em ondulações coloridas. De Turner ou Friedrich a Whistler, Munch ou Kupka, trata-se não de negar o visível, mas de passar, de certo modo, para o outro lado do visível, trata-se de colocar o olho do pintor na gênese mesma da luz que faz existir as formas sensíveis. Sabe-se que essa pesquisa ligou ao mesmo tempo a pintura a duas formas de pensamento amiúde opostas, mas que a época romântica atou duradouramente uma à outra: a ciência física e o devaneio místico. A pintura abstrata aparece como a realização do sonho secular de uma arte que exprime o que Schelling, cem anos antes de Kandinski, havia chamado o "mundo interior dos sentidos".
Na era da eletricidade e das teorias da energia, esse sonho se mostrava enfim ao alcance das mãos. Se a arte devia consistir em formas, vibrações e dinamismos, não era certamente para afirmar sua oposição em relação à imitação das formas naturais ou em relação ao comércio e aos divertimentos sociais. É porque, ao contrário, a própria natureza havia mudado.
Reduzida cientificamente a essas ondas, vibrações e dinamismos cujo sonho o romantismo expressara, a natureza como que se transformava em seu próprio interior. E, também porque os lugares comerciais e os divertimentos da sociedade, por seu turno, tornavam-se, cada vez mais, templos ou cerimônias dedicados à religião da eletricidade ou do néon. Ao pintar seu "Noturno", Whistler declarava ter querido designar por esse termo um puro "agenciamento de linhas, de formas e de cores", livre de toda significação "anedótica". Contudo é difícil não pensar que a possibilidade de se livrar da "anedota" do tema representado era oferecida pelo próprio tema: no caso, a "roda-de-fogo" de uma das novas festas dedicadas aos prestígios da luz. O fogo de artifício é também uma das grandes metáforas por meio das quais o amigo de Whistler, Mallarmé, representava de bom grado a pureza do poema.
O fogo de artifício era igualmente o modelo que inspirava uma artista celebrada por Mallarmé e por todos os inovadores de seu tempo, Loïe Fuller, inventora de uma nova espécie de dança: um turbilhão de véus irisado pela luz colorida dos projetores. Dois pequenos filmes de época consagrados à sua "dança serpentina" nos lembram a segunda grande "impureza" constitutiva da pretensa pureza da arte abstrata. Esta, longe de ser a conquista pela pintura de sua superfície e de seu material próprios, situa-se na culminação de um século de pesquisas destinadas a efetuar a fusão das artes num sensório comum, a reduzir as pinceladas da pintura, as melodias musicais e os gestos da dança às mesmas vibrações de uma matéria espiritualizada, devolvida a seu dinamismo essencial.
Caspar David Friedrich já havia tentado a realização de um diorama consagrado à alegoria da música, no qual o impulso das linhas esculturais representadas prolongava o alinhamento das cordas da harpa e se harmonizava com o som cristalino da harmônica de vidro. A exposição reconstitui essa busca obstinada da fusão das artes e dos sentidos de que resultou a arte abstrata, o que na maioria das vezes é suprimido de sua história. A correspondência da pintura e da música adquire um aspecto sintomático em alguns pintores. Pensamos, é claro, num quadro de Kupka em que as teclas de um piano visto em anamorfose escapam do teclado e se tornam linhas de luz transformadas, por sua vez, em personagens que passeiam junto a um lago.
Encontramos a analogia perseguida sistematicamente nas "fugas" ou "sonatas" visuais de Ciurlionis, em que pinheiros, velas, mastros ou lampadários esposam o movimento de uma melodia imaginária das formas, tomando às vezes diretamente o aspecto de notas musicais. Mas a encontramos também inconscientemente realizada numa tela de Signac, em que barcos pesqueiros vistos ao horizonte num mar pontilhista parecem desenhar duplos anzóis.
É costume opor a pureza ascética da arte abstrata aos sonhos wagnerianos ou simbolistas da obra de arte total. No entanto, quando se restitui a abstração pictórica a seu tempo, à efervescência de pensamento e à multiplicidade de pesquisas de que ela resultou, vê-se que a obra de arte total e o quadro abstrato pertencem a um mesmo movimento. Eles pertencem ao sonho de uma arte que seria moderna porque harmonizada à ciência de uma matéria e de uma sociedade reduzidas a um mesmo dinamismo fundamental: matéria espiritualizada em energia vibratória, sociedade reduzida à sua essência, a força do trabalho comum. A arte das formas puras podia então ser igualmente o princípio da construção de formas de vida novas. Esses sonhos podem estar distantes de nosso presente. No entanto, importa lembrar como eles tornaram possível essa pintura que alguns quiseram reduzir a uma pura afirmação de si.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Acaba de publicar na França "Le Destin des Images" (La Fabrique). Escreve na seção "Autores".
Tradução de Paulo Neves.


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