São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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Ensaísta analisa "O Mito do Estado", do filósofo alemão Ernst Cassirer

A SECULARIZAÇÃO RAPSÓDICA DO OCIDENTE

Maria Sylvia Carvalho Franco
especial para a Folha

É vital a publicação de "O Mito do Estado" no momento em que o mundo tende ao autoritarismo e sua maior potência recupera as lendas (teologia do armagedon, espectros do bem e do mal, do amigo e inimigo, domínio de um só país, ingente etnocentrismo e intensa propaganda) e as práticas de um Estado contrário aos direitos civis e internacionais, adepto da censura e da caça ao pensamento.
O livro em pauta situa-se no debate sobre o desencanto do mundo, reatiçado na virada dos séculos 19 e 20. Na época, Max Weber repensou a polêmica travada no romantismo: para ele, nas formações sociais regidas em princípio por valores, como nos tipos religiosos em essência alheios ao racional, entranham-se atividades racionalizadoras, fonte do controle capitalista, científico e tecnológico. Esse movimento ruma para seu contrário, a extrema irracionalidade que, gerando a "Igreja Máquina", o "Estado Empresa" e o "Mercado Onipotente", estiola a política, reforça o mecanismo e prepara o poder burocrático.
Uma chave para a saga dessas posições é dada por alunos de Weber, G. Lukács e C. Schmitt, porta-vozes de respostas antagônicas à agonia da política. De início partilham com o mestre a herança do idealismo transcendental, para depois recusá-la por demasiado formalista e enfrentar, por vias opostas, o dilema do ato consciente e livre diante do poder técnico e burocrático: Lukács aposta na revolução e adere ao comunismo; Schmitt empenha-se no mito e no carisma nazistas (1).
Conforme Weber, as máximas formais colhem indicações para o juízo prático; mas os indivíduos, imersos na rotina, "elidem a escolha entre "Deus e o demônio'"(2) e sucumbem à letargia. Nesse léxico teológico-político retinem outras ofensivas aos pólos técnica-mito. Nietzsche combateu a razão iluminista, a ciência que "pesa, calcula, conta, vê, toca", correlatas ao mundo vazio de sentido. A igualdade abstrata e acedia modernas prendem-se à moral cristã, que demoniza a natureza, comete "crimes" contra a vida e a cultura: em oposição, ergue-se o anticristo.
Schmitt transpõe a fala de Nietzsche. A tecnicidade encarna o anticristo; a técnica, matriz da indiferença axiológica, impossibilita distinguir entre Deus e o demônio (3). As teses de Weber subsistem e mudam: o cristianismo continua fundante, mas não a prosaica Reforma; a graça encontra-se na Igreja Católica, fonte de mitos: "Os conceitos mais férteis da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados". Contra as luzes e o liberalismo define-se o Estado de exceção, "que tem, na jurisprudência, sentido análogo ao milagre na teologia" (4).
Enquadra-se aí a satanização do inimigo, o conflito como a priori da política, a recusa da paz universal. Schmitt projeta na URSS, essencialmente tecnicista, o inimigo, ameaça demoníaca ao Ocidente exaurido pela supressão do político (5). As elites ativas devem romper sua impotência e urdir valores para o domínio das massas sensíveis à idolatria (divina ou técnica): apresta-se o mito como avatar da racionalidade mecânica. "Ad infinitum", o controle social, a propaganda, a desfaçatez do poder reproduzem esse ideário e essa política.
Supondo Marx, Weber e Nietzsche, Adorno e Hokheimer assumem ser "a razão mito, e o mito, razão". Já na "Odisséia", apontam a dialética entre mitologia e racionalidade, elidindo o corte e o progresso de uma à outra. Em consonância, enlaçam forma e conteúdo na epopéia, nela estabelecem a embricação poema-mito-prosa e a aproximam do romance. Esse olhar colhe, na aventura de Ulisses, o saber engenhoso que constitui o "Eu" íntegro e o conduz em seu retorno. Esse processo individualizador permeia o amálgama sagrado e laico implícito na dádiva: a troca representa a forma profana do sacrifício, e este, o modelo mágico da "troca racional".
Insere-se aí a astúcia -atributo de Ulisses e módulo do sacrifício-, que funda a dominação: iludir a divindade e, por sua mediação, a natureza, sujeitando-as aos fins humanos. Nessa teia, Ulisses eleva "o dolo inerente ao sacrifício ao nível da consciência de si". Contra a leitura que atribui ao "grego" simples exterioridade e contra a teoria que vincula o sacrifício ao coletivo, os autores deslindam, na "Odisséia", a gênese do sujeito e da razão instrumental. Opõem-se, pois, a Kant e sua filosofia, vasto modelo subjacente à produção do mito na política totalitária ou liberal, tal como no circuito -da percepção aos juízos- que a "arte das massas" perfaz como fábrica de persuasão (6).
Esse campo foi demarcado por intelectuais que enfrentaram o dilema discutido por Cassirer, cujas fortes presenças no século 20 foram obliteradas em "O Mito do Estado", embora seus traços possam ser nele reconhecidos. Elisão compreensível, dado o peso de Kant em seu autor. Já de início, a "Crítica da Razão Pura" dá-lhe o cânone para ordenar os saberes antropológicos sobre o mito segundo "princípios reguladores" conexos a interesses da razão, alheios à natureza das coisas (7).
Desse prisma, a querela da alteridade cognitiva entre primitivos e civilizados (Cassirer examina Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl) não se define como "ontológica ou factual, mas metodológica". Formalizando, abolindo os conteúdos culturais, ambas as teses se conjugam. Mente primitiva e civilizada divergem e coincidem: o selvagem carrega, "in nuce", o poder analítico e sintetizador próprios à dialética, vale-se de categorias gerais e de um hipertrofiado "instinto de classificação". As formas rudimentares de inteligência se aperfeiçoam até a completude especulativa e científica: garante-se o continuum formal do conhecimento e projeta-se o sujeito transcendental, mas, ao mesmo tempo, os campos da consciência são desdobrados para além das distinções enunciadas por Kant no sistema das três "Críticas".
Partindo da "Crítica do Juízo", ampliando a força da imaginação produtiva e da atividade simbólica, Cassirer diversifica as ciências da cultura (filosofia da linguagem, religião, mito, arte) e visa a acompanhar nelas o movimento do espírito, recolhendo a "fenomenologia" hegeliana, mas buscando evitar sua confluência necessária para a "lógica" (8). Essa sorte de historicização das categorias e objetivações na cultura levam-no ao elogio de Durkheim. Cassirer sustenta largo espectro de estudos que, até hoje, nas ciências humanas, ordenam "etapas", segundo um princípio interno que se efetiva até se completar. Nesse campo situa-se a busca das "mentalidades", encadeadas na linha do atraso-avanço.
Nesse rumo, Cassirer abstrai, em teorias irredutíveis (Tylor, Frazer, M. Muller, H. Spencer), uma só premissa -o mito referido a idéias-, opondo-as àquelas que o reportam às emoções, ao inconsciente, à precedência do ritual (Robertson-Smith, J. Harrison, Freud), para finalmente inclui-lo nas formas simbólicas, "aplicáveis a quaisquer objetos". Etapas "primitivas" e "superiores" travejam sua tese sobre a religião como fundamento do social; supõe a universalidade do dionisismo para desentranhar a força emotiva na gênese do mito (9) e sublinha a expressão desse sentimento convertido em imagem: a consciência reflexiva produz formas de modo tal que "a crítica da razão se transforma em crítica da cultura", em sincretismo com teses evolutivas. Desse prisma, examina a secularização no Ocidente de modo rapsódico: Grécia Antiga, Europa medieval e moderna. Discute os românticos com o insólito argumento de que sua "concepção totalitária" era "cultural e não política"; logo, valorizaram o mito, mas fugiram à apologia do Estado. Também Carlyle, encomiasta do mito e do herói, escapa ao ideário nazi: seu lema, "o poder é direito", reporta-se à "força moral e não física". Em Gobineau, o racismo fora "de boa mente"; ele recusaria a idéia moderna de Estado totalitário, embora, de modo indireto, indicasse a via para sua invenção. De modo análogo, a fórmula hegeliana -a verdade reside no poder- implica "claro e brutal programa do fascismo jamais proposto por qualquer escrito de filosofia política", mas Hegel não pode responder pelos avatares de sua teoria, cujos princípios foram invertidos. Suas lições diferenciam-se das modernas doutrinas totalitárias, pois, a seu juízo, os bens culturais não podem ser instrumentos para os fins do Estado. Spengler, cuja obra foi "pioneira do nacional-socialismo", era apenas um "apologista dos velhos ideais prussianos", imune ao programa dos "homens novos".

Milagre
O paradoxo na mitologia política moderna -boa intenção dos autores, resultados maléficos- resolve-se pelo despontar, na crise pós Primeira Guerra, de nova técnica de controle, nutrida pela catástrofe alemã. Cassirer evoca a cisão de Malinówski entre as áreas secular-racional e mágico-religiosa da cultura, vinculando a última a contextos tensos. O lapso da razão é sanado pelo milagre. Mas, se a face deletéria do mito no século 20 vem da inquietude social, qual o substrato de seu viso criador, pintado por Cassirer, no romantismo: calma social, ausência de distúrbios políticos, repressão ou censura, na era das revoluções (1848-1860)?
Ao fim, Cassirer resgata o início do livro: a função da magia e do mito entre "primitivos" vale para "estágios evoluídos". Nos grupos primevos vigoram regras míticas jamais questionadas e, a esta ordem estática, se contrapõe, "mais tarde", a vida política, "terreno vulcânico". Quando a razão se estiola no combate ao mito deletério, este "regressa". Nessa oposição mentalidade primitiva-civilizada, sendo o mito concebido como "desejo coletivo personificado", o recurso ao "todo" inocenta as consciências particulares, no caso, a produção teórica, mas no mundo imediato reina a tendência emotiva, projetada no líder, cuja vontade é lei suprema.
Primitivos e civilizados partilham os impulsos subjacentes ao mito, mas os últimos não podem excluir por completo a racionalidade. O progresso percorre etapas, o mágico transforma-se no técnico, o político moderno sintetiza suas atividades: a crença é produzida artificialmente e disseminada em processos metódicos de planificação. A usina simbólica equipara-se à indústria bélica. A vida política regride a formas esquecidas.
A teoria separa-se de sua fortuna e é absolvida. Fica inexplicada, com esse corte, a emergência da tecnologia política: como a razão instrumental se inscreve no mito moderno? Sua fonte seria uma "consciência coletiva", difusa na sociedade civilizada, colhida pelo político engenhoso e posta a seu próprio serviço?


Notas:
1. Questões discutidas por J.P. McCormick, in: "Carl Schmitt's Critique of Liberalism" (Cambridge University Press, 1997).
2. "O Sentido da Neutralidade Axiológica nas Ciências Sociológicas e Econômicas", in: "Methodologische Schriften" (S. Fischer Verlag, 1968, pág. 247).
3. Schmitt, citado por McCormick, op. cit. pág.140.
4. Schmitt, C. : "Teologia Política", in: Carl Schmitt, "Le Categorie del Politico" (Bologna, Il Mulino, 1972, pág. 61).
5. McCormick, op. cit.
6. Cf. Adorno, Th. e Hokheimer, M. "La Dialectique de la Raison" (Paris, Gallimard, 1974). Lembre-se que essa crítica não supõe irracionalismo: seus autores julgam que "a liberdade é inseparável do pensamento esclarecido" (pág. 15).
7. Cassirer, E, "O Mito do Estado", pág. 23 ss.
8. "A Filosofia das Formas Simbólicas" define e justifica esse projeto.
9. Cassirer atenta para os antecedentes históricos de Freud, focalizando sobretudo Schopenhauer; entretanto, reportando-se a Jane J. Harrison, no estudo sobre o dionisismo e o aparecimento, na Grécia, de "duas forças opostas" (pág. 61), silencia sobre o peso de Nietzsche nesse tema e em sua inserção nos estudos antropológicos, sobretudo em J. Harrison e Malinówski.


Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autora de, entre outros, de "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (editora Unesp).

O Mito do Estado
344 págs., R$ 42 de Ernst Cassirer. Trad. Álvaro Cabral. Editora Códex (al. Ministro Rocha Azevedo, 456, 9º andar,cj. 91, SP, CEP 01410-000, tel. 0/xx/11/ 3061-3563).



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