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Ensaísta analisa "O Mito do Estado",
do filósofo alemão Ernst Cassirer
A SECULARIZAÇÃO RAPSÓDICA DO OCIDENTE
Maria Sylvia Carvalho Franco
especial para a Folha
É vital a publicação de "O Mito do
Estado" no momento em que o
mundo tende ao autoritarismo e
sua maior potência recupera as
lendas (teologia do armagedon, espectros do bem e do mal, do amigo e inimigo, domínio de um só país, ingente etnocentrismo e intensa propaganda) e as
práticas de um Estado contrário aos direitos civis e internacionais, adepto da
censura e da caça ao pensamento.
O livro em pauta situa-se no debate sobre o desencanto do mundo, reatiçado
na virada dos séculos 19 e 20. Na época,
Max Weber repensou a polêmica travada no romantismo: para ele, nas formações sociais regidas em princípio por valores, como nos tipos religiosos em essência alheios ao racional, entranham-se
atividades racionalizadoras, fonte do
controle capitalista, científico e tecnológico. Esse movimento ruma para seu
contrário, a extrema irracionalidade que,
gerando a "Igreja Máquina", o "Estado
Empresa" e o "Mercado Onipotente", estiola a política, reforça o mecanismo e
prepara o poder burocrático.
Uma chave para a saga dessas posições
é dada por alunos de Weber, G. Lukács e
C. Schmitt, porta-vozes de respostas antagônicas à agonia da política. De início
partilham com o mestre a herança do
idealismo transcendental, para depois
recusá-la por demasiado formalista e enfrentar, por vias opostas, o dilema do ato
consciente e livre diante do poder técnico e burocrático: Lukács aposta na revolução e adere ao comunismo; Schmitt
empenha-se no mito e no carisma
nazistas (1).
Conforme Weber, as máximas formais
colhem indicações para o juízo prático;
mas os indivíduos, imersos na rotina,
"elidem a escolha entre "Deus e o demônio'"(2) e sucumbem à letargia. Nesse léxico teológico-político retinem outras
ofensivas aos pólos técnica-mito. Nietzsche combateu a razão iluminista, a ciência que "pesa, calcula, conta, vê, toca",
correlatas ao mundo vazio de sentido. A
igualdade abstrata e acedia modernas
prendem-se à moral cristã, que demoniza a natureza, comete "crimes" contra a
vida e a cultura: em oposição, ergue-se o
anticristo.
Schmitt transpõe a fala de Nietzsche. A
tecnicidade encarna o anticristo; a técnica, matriz da indiferença axiológica, impossibilita distinguir entre Deus e o demônio (3). As teses de Weber subsistem
e mudam: o cristianismo continua fundante, mas não a prosaica Reforma; a
graça encontra-se na Igreja Católica,
fonte de mitos: "Os conceitos mais férteis da moderna doutrina do Estado são
conceitos teológicos secularizados".
Contra as luzes e o liberalismo define-se
o Estado de exceção, "que tem, na jurisprudência, sentido análogo ao milagre
na teologia" (4).
Enquadra-se aí a satanização do inimigo, o conflito como a priori da política, a
recusa da paz universal. Schmitt projeta
na URSS, essencialmente tecnicista, o
inimigo, ameaça demoníaca ao Ocidente
exaurido pela supressão do político (5).
As elites ativas devem romper sua impotência e urdir valores para o domínio das
massas sensíveis à idolatria (divina ou
técnica): apresta-se o mito como avatar
da racionalidade mecânica. "Ad infinitum", o controle social, a propaganda, a
desfaçatez do poder reproduzem esse
ideário e essa política.
Supondo Marx, Weber e Nietzsche,
Adorno e Hokheimer assumem ser "a
razão mito, e o mito, razão". Já na "Odisséia", apontam a dialética entre mitologia e racionalidade, elidindo o corte e o
progresso de uma à outra. Em consonância, enlaçam forma e conteúdo na
epopéia, nela estabelecem a embricação
poema-mito-prosa e a aproximam do
romance. Esse olhar colhe, na aventura
de Ulisses, o saber engenhoso que constitui o "Eu" íntegro e o conduz em seu
retorno. Esse processo individualizador
permeia o amálgama sagrado e laico implícito na dádiva: a troca representa a
forma profana do sacrifício, e este, o modelo mágico da "troca racional".
Insere-se aí a astúcia -atributo de
Ulisses e módulo do sacrifício-, que
funda a dominação: iludir a divindade e,
por sua mediação, a natureza, sujeitando-as aos fins humanos. Nessa teia, Ulisses eleva "o dolo inerente ao sacrifício ao
nível da consciência de si". Contra a leitura que atribui ao "grego" simples exterioridade e contra a teoria que vincula o
sacrifício ao coletivo, os autores deslindam, na "Odisséia", a gênese do sujeito e
da razão instrumental. Opõem-se, pois, a
Kant e sua filosofia, vasto modelo subjacente à produção do mito na política totalitária ou liberal, tal como no circuito
-da percepção aos juízos- que a "arte
das massas" perfaz como fábrica de persuasão (6).
Esse campo foi demarcado por intelectuais que enfrentaram o dilema discutido por Cassirer, cujas fortes presenças
no século 20 foram obliteradas em "O
Mito do Estado", embora seus traços
possam ser nele reconhecidos. Elisão
compreensível, dado o peso de Kant em
seu autor. Já de início, a "Crítica da Razão Pura" dá-lhe o cânone para ordenar
os saberes antropológicos sobre o mito
segundo "princípios reguladores" conexos a interesses da razão, alheios à natureza das coisas (7).
Desse prisma, a querela da alteridade
cognitiva entre primitivos e civilizados
(Cassirer examina Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl) não se define como "ontológica
ou factual, mas metodológica". Formalizando, abolindo os conteúdos culturais,
ambas as teses se conjugam. Mente primitiva e civilizada divergem e coincidem: o selvagem carrega, "in nuce", o
poder analítico e sintetizador próprios à
dialética, vale-se de categorias gerais e de
um hipertrofiado "instinto de classificação". As formas rudimentares de inteligência se aperfeiçoam até a completude
especulativa e científica: garante-se o
continuum formal do conhecimento e
projeta-se o sujeito transcendental, mas,
ao mesmo tempo, os campos da consciência são desdobrados para além das
distinções enunciadas por Kant no sistema das três "Críticas".
Partindo da "Crítica do Juízo", ampliando a força da imaginação produtiva
e da atividade simbólica, Cassirer diversifica as ciências da cultura (filosofia da
linguagem, religião, mito, arte) e visa a
acompanhar nelas o movimento do espírito, recolhendo a "fenomenologia" hegeliana, mas buscando evitar sua confluência necessária para a "lógica" (8).
Essa sorte de historicização das categorias e objetivações na cultura levam-no
ao elogio de Durkheim. Cassirer sustenta
largo espectro de estudos que, até hoje,
nas ciências humanas, ordenam "etapas", segundo um princípio interno que
se efetiva até se completar. Nesse campo
situa-se a busca das "mentalidades", encadeadas na linha do atraso-avanço.
Nesse rumo, Cassirer abstrai, em teorias irredutíveis (Tylor, Frazer, M. Muller, H. Spencer), uma só premissa -o
mito referido a idéias-, opondo-as
àquelas que o reportam às emoções, ao
inconsciente, à precedência do ritual (Robertson-Smith, J. Harrison, Freud),
para finalmente inclui-lo nas formas
simbólicas, "aplicáveis a quaisquer objetos". Etapas "primitivas" e "superiores"
travejam sua tese sobre a religião como
fundamento do social; supõe a universalidade do dionisismo para desentranhar
a força emotiva na gênese do mito (9) e
sublinha a expressão desse sentimento
convertido em imagem: a consciência reflexiva produz formas de modo tal que "a
crítica da razão se transforma em crítica
da cultura", em sincretismo com teses
evolutivas.
Desse prisma, examina a secularização
no Ocidente de modo rapsódico: Grécia
Antiga, Europa medieval e moderna.
Discute os românticos com o insólito argumento de que sua "concepção totalitária" era "cultural e não política"; logo, valorizaram o mito, mas fugiram à apologia do Estado. Também Carlyle, encomiasta do mito e do herói, escapa ao
ideário nazi: seu lema, "o poder é direito", reporta-se à "força moral e não física". Em Gobineau, o racismo fora "de
boa mente"; ele recusaria a idéia moderna de Estado totalitário, embora, de modo indireto, indicasse a via para sua invenção. De modo análogo, a fórmula hegeliana -a verdade reside no poder-
implica "claro e brutal programa do fascismo jamais proposto por qualquer escrito de filosofia política", mas Hegel não
pode responder pelos avatares de sua
teoria, cujos princípios foram invertidos.
Suas lições diferenciam-se das modernas
doutrinas totalitárias, pois, a seu juízo, os
bens culturais não podem ser instrumentos para os fins do Estado. Spengler,
cuja obra foi "pioneira do nacional-socialismo", era apenas um "apologista
dos velhos ideais prussianos", imune ao
programa dos "homens novos".
Milagre
O paradoxo na mitologia
política moderna -boa intenção dos
autores, resultados maléficos- resolve-se pelo despontar, na crise pós Primeira
Guerra, de nova técnica de controle, nutrida pela catástrofe alemã. Cassirer evoca a cisão de Malinówski entre as áreas
secular-racional e mágico-religiosa da
cultura, vinculando a última a contextos
tensos. O lapso da razão é sanado pelo
milagre. Mas, se a face deletéria do mito
no século 20 vem da inquietude social,
qual o substrato de seu viso criador, pintado por Cassirer, no romantismo: calma social, ausência de distúrbios políticos, repressão ou censura, na era das revoluções (1848-1860)?
Ao fim, Cassirer resgata o início do livro: a função da magia e do mito entre
"primitivos" vale para "estágios evoluídos". Nos grupos primevos vigoram regras míticas jamais questionadas e, a esta
ordem estática, se contrapõe, "mais tarde", a vida política, "terreno vulcânico".
Quando a razão se estiola no combate ao
mito deletério, este "regressa". Nessa
oposição mentalidade primitiva-civilizada, sendo o mito concebido como "desejo coletivo personificado", o recurso ao
"todo" inocenta as consciências particulares, no caso, a produção teórica, mas
no mundo imediato reina a tendência
emotiva, projetada no líder, cuja vontade
é lei suprema.
Primitivos e civilizados partilham os
impulsos subjacentes ao mito, mas os últimos não podem excluir por completo a
racionalidade. O progresso percorre etapas, o mágico transforma-se no técnico,
o político moderno sintetiza suas atividades: a crença é produzida artificialmente e disseminada em processos metódicos de planificação. A usina simbólica equipara-se à indústria bélica. A vida
política regride a formas esquecidas.
A teoria separa-se de sua fortuna e é
absolvida. Fica inexplicada, com esse
corte, a emergência da tecnologia política: como a razão instrumental se inscreve no mito moderno? Sua fonte seria
uma "consciência coletiva", difusa na sociedade civilizada, colhida pelo político
engenhoso e posta a seu próprio serviço?
Notas:
1. Questões discutidas por J.P. McCormick, in:
"Carl Schmitt's Critique of Liberalism" (Cambridge
University Press, 1997).
2. "O Sentido da Neutralidade Axiológica nas
Ciências Sociológicas e Econômicas", in: "Methodologische Schriften" (S. Fischer Verlag, 1968,
pág. 247).
3. Schmitt, citado por McCormick, op. cit.
pág.140.
4. Schmitt, C. : "Teologia Política", in: Carl Schmitt,
"Le Categorie del Politico" (Bologna, Il Mulino,
1972, pág. 61).
5. McCormick, op. cit.
6. Cf. Adorno, Th. e Hokheimer, M. "La Dialectique
de la Raison" (Paris, Gallimard, 1974). Lembre-se
que essa crítica não supõe irracionalismo: seus
autores julgam que "a liberdade é inseparável do
pensamento esclarecido" (pág. 15).
7. Cassirer, E, "O Mito do Estado", pág. 23 ss.
8. "A Filosofia das Formas Simbólicas" define e
justifica esse projeto.
9. Cassirer atenta para os antecedentes históricos
de Freud, focalizando sobretudo Schopenhauer;
entretanto, reportando-se a Jane J. Harrison, no
estudo sobre o dionisismo e o aparecimento, na
Grécia, de "duas forças opostas" (pág. 61), silencia
sobre o peso de Nietzsche nesse tema e em sua inserção nos estudos antropológicos, sobretudo em
J. Harrison e Malinówski.
Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular de filosofia da USP e da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). É autora de, entre outros,
de "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (editora Unesp).
O Mito do Estado
344 págs., R$ 42
de Ernst Cassirer. Trad. Álvaro Cabral. Editora Códex (al. Ministro Rocha Azevedo, 456, 9º andar,cj.
91, SP, CEP 01410-000, tel. 0/xx/11/ 3061-3563).
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