São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

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Um apelo à libertação


Substitua "burguesia" por "globalização" e eis o mundo atual descrito por Marx


ALAIN TOURAINE
especial para a Folha

Releia o "Manifesto Comunista", de 1848, e você ficará surpreso ao perceber o quanto é atual. Substitua, desde as primeiras páginas, "burguesia" por "globalização" e você reencontrará imediatamente o entusiasmo dos negociantes e financistas de hoje e o poder aparentemente ilimitado das forças econômicas vitoriosas, que destruíram todas as experiências particulares de vida, de cultura, de profissão.
Antes de prosseguir, vamos nos deter por um momento nessas páginas espantosas, frequentemente vistas como um hino à burguesia e que preparam -na verdade, para Marx, tornam necessário- o apelo ao proletariado. Sim, um ciclo histórico chega ao fim. Em 1848 começa a espalhar-se uma revolução capitalista, ou seja, a economia rejeita todas as formas de controle social e político anteriores e recusa qualquer outro critério de avaliação que não o lucro. Após essa fase, qualificada por Charles Morazé como a dos burgueses conquistadores e que é também a da mais brutal proletarização e exploração, duas correntes opostas se formaram.
A primeira, inaugurada por Bismarck, reorientada pela idéia inglesa da democracia industrial, depois pelos regimes social-democratas e finalmente pelo "Welfare State", limitou as injustiças, pelo menos em parte, mas transformou-se pouco a pouco num sistema de proteção dos interesses dos mais bem organizados e também em um controle exercido em benefício do Estado, mais do que das categorias mais dominadas ou mais carentes.
A segunda corrente foi a corrente revolucionária, que cresceu sobretudo nos países que saíam de uma sociedade e de um sistema de autoridade tradicionais e ingressavam brutalmente na sociedade capitalista. Mais de três quartos de século depois da revolução soviética, quase todos esses regimes inspirados pela revolução desapareceram, deixando em sua esteira uma imensa mancha de sangue e o buraco negro da decomposição econômica. Hoje, isto é, depois da mundialização da economia que se impôs a partir dos anos 70, nos vemos diante de uma segunda revolução capitalista, à qual se dá o nome de globalização para ocultar sua natureza, como Marx dizia que o reinado da mercadoria era, na realidade, o reinado do capitalismo.
A economia é poderosa outra vez. Fala-se por toda parte de enfraquecimento dos Estados nacionais, no desabamento dos movimentos sociais excessivamente integrados ao poder ou excessivamente marginalizados, na destruição das culturas particulares ou de seu fechamento voluntário numa defesa obsessiva de sua identidade. O cenário social e político aparenta estar vazio. Não se fala em outra coisa senão na economia mundial, tão poderosa, tão onipresente, que ela parece estar fora do alcance dos esforços liliputianos daqueles que ainda tentam controlá-la. Nenhum texto define melhor a situação atual que a primeira parte do "Manifesto Comunista".
Isso nos leva diretamente à pergunta que cada um se coloca. Essa primeira parte se chama "Burguesia e Proletariado". Percebe-se claramente onde está a burguesia, mas e os proletários, onde se encontram? Alguns respondem imediatamente que sua presença é visível por toda parte: desempregados, assalariados precários, emigrados expulsos de seus países pela falta de trabalho, refugiados ao mesmo tempo políticos e econômicos que fogem dos novos regimes autoritários. Marx falava em relações sociais de dominação e exploração; nós enxergamos, mais do que isso, exclusão, marginalização, desenraizamento.
O raciocínio de Marx não rejeita, de maneira nenhuma, o triunfo da economia moderna; pelo contrário, ele pensava, seguindo o pensamento de Hegel, que o proletariado iria atingir o progresso ao encontrar sua racionalidade e eliminar o lucro capitalista. Hoje, ao contrário, as forças que tentam transformar a miséria em ação ou procuram criar uma contracultura ou se limitam a um economismo elementar. Mas é aqui que é preciso retornar a Marx e a Engels, pois a parte mais longa de seu texto é dedicada à crítica dos caminhos falsos seguidos pelo comunismo nascente. Não é difícil encontrar equivalentes contemporâneos às ideologias de meados do século 19 que Marx critica e condena. Entretanto, uma vez feito esse trabalho crítico, ergue-se diante de nós o problema central: qual é a força positiva que pode suscitar a ação coletiva e a reconstrução da vida social e cultural devastadas pela busca exclusiva do lucro?
É verdade que o pensamento de Marx pertence a seu tempo, mas podemos refletir sobre esse pensamento para encontrar uma resposta aos problemas de hoje. O domínio absoluto da burguesia só pode ser rompido, segundo Marx, pela união de dois processos. O primeiro é o agravamento natural das contradições do capitalismo, a crescente bipolarização da sociedade, as crises de superprodução e de subconsumo. O segundo é o apelo a uma força que não é propriamente social, porque conduz à libertação do ser concreto, do valor de uso, das necessidades. Não se trata apenas de restabelecer o bem-estar ou a justiça; o que é preciso realizar é uma liberação. Porque o domínio da burguesia e o reinado da mercadoria se tornaram totais, é preciso, para superá-los, apelar ao mesmo tempo a uma necessidade histórica, que traduz bem a idéia de uma crescente contradição interna do capitalismo, e a uma força que não é nem social nem natural, que é da mesma natureza que a idéia do progresso: a força de realização do espírito, descrita por Hegel, ou mesmo aquela do triunfo da razão, defendida pela filosofia das luzes. Assim, é ao mesmo tempo por cima e por baixo que a sociedade, reduzida à economia, pode ser reconstruída de modo a que a atividade econômica se reconcilie ao mesmo tempo com a racionalidade e com um princípio absoluto de liberação.
O pensamento de Marx está muito distante daquele da Revolução Francesa, mas é da mesma natureza que este. Enquanto 1789 colocou no centro da sociedade construir a figura do cidadão, Marx pôs a do trabalhador, que não é apenas um ator econômico, mas uma figura humana feita tanto de necessidades quanto de energia. Hoje, enquanto a vida econômica é cada vez mais dominada pelas indústrias da informação e da comunicação, que produzem bens mais culturais do que materiais, o domínio do mundo dirigente se tornou tão completo que a existência humana, a liberdade do sujeito humano, os direitos humanos, é que são ameaçados diretamente e, após uma libertação política e depois econômica, precisamos hoje de uma libertação cultural que se traduza diretamente pelos limites que a ética procura impor ao reinado do lucro.
É fácil e necessário marcar as distâncias que separam 1848 de 1998, mas ainda mais necessário identificar a continuidade de um processo teórico e prático que se desenrola desde o "Manifesto Comunista" até hoje. Em cada uma dessas datas, tão distantes umas das outras, é também preciso descobrir as contradições internas de um sistema de dominação e um princípio de libertação que opõem um direito fundamental, imprescritível, ao poder da economia e de suas proteções jurídicas e políticas.


Alain Touraine é sociólogo e cientista político francês. Dirige a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). Publicou no Brasil, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (Vozes). Ele escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores" do Mais!.
Tradução de Clara Allain.



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