São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

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Fogos retóricos e o sublime


Texto combina linguagem de versículo com ironia e sarcasmo


ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"A doutrina marxista é onipotente porque ela é verdade", dizia Lenin, três anos antes da Revolução Russa. Essa frase, nesses lábios, soa hoje sinistra, ou cômica, ou as duas coisas, dependendo do humor de quem lê. Mas o principal trabalho de exortação política do marxismo, o "Manifesto Comunista" de Marx e Engels, de 1848, continua a ser "a plataforma comum, reconhecida por milhões de trabalhadores da Sibéria à Califórnia", como escreveu Engels, noutra frase involuntariamente irônica, à luz da história da Sibéria e da Califórnia. Ironias à parte, o "Manifesto" é um exemplo inigualado em tempos modernos da força imprevisível que um texto pode ter sobre a realidade. Que seus efeitos sejam contrários a suas intenções é só mais uma volta no parafuso que gira entre a forma e o conteúdo, tema que preocupava Marx de maneira especial.
"A forma não tem valor se não for a forma do conteúdo", já afirmava ele em 1842; e toda a sua doutrina, da "Ideologia Alemã", de 1846, e a elaboração da teoria do trabalho até "O Capital", 20 anos mais tarde, vai centrar-se sobre uma imagem da humanidade emancipada das divisões entre forma e substância que são a característica do sistema de circulação de valores no capitalismo. Contra a separação entre a força de trabalho dos indivíduos e o seu universo simbólico e libidinal, Marx imagina uma "humanidade socializada", em que a produtividade torna-se expressão constante da natureza humana do homem. O trabalho, liberado das estruturas de opressão, passa a ser um fim em si e transcende a sua instrumentalização. A sociedade, neste momento, atinge um plano semelhante ao da obra de arte, em que, idealmente, forma e conteúdo são uma coisa só.
Forma e conteúdo estrategicamente não são uma coisa só no "Manifesto", redigido com fogos retóricos muito distantes da linguagem sem adorno do "Capital". "Um espectro assombra a Europa...", "tudo o que é sólido desmancha no ar...", "a sociedade burguesa é como um feiticeiro que não é mais capaz de controlar os poderes do outro mundo que ele conjurou...": Shakespeare e Goethe dão-se as mãos nesse texto que, ao menos nisso, realiza o ideal de emergência de uma "literatura mundial" citado na primeira parte. Não seria justo fazer uma leitura literária de um instrumento de militância, nem é razoável ler Marx como poeta (ou como filósofo apenas, o que é mais comum); mas não seria justo, também, deixar de apontar o controle retórico desse discurso erudito, redigido para uso popular.
Estamos aqui no domínio da fala política, uma entre outras em Marx e Engels, como ensinou Maurice Blanchot ("La Fin de la Philosophie", 1959). Sua única medida é o excesso e seu único tempo, o presente; ou melhor, a iminência de um presente. A teoria marxista não é exatamente uma forma de messianismo; mas isto não impede o "Manifesto" de se valer de um registro apocalíptico, em que a esperança é transformada em certeza: "A luta de classes beira a sua hora decisiva", "a supremacia do proletariado levará a este fim ainda mais rapidamente". Bordões encantatórios contribuem para a aceleração do significado: "A burguesia, historicamente, teve um papel extremamente revolucionário./ A burguesia desnudou de sua auréola toda ocupação até agora honrada.../ A burguesia arrancou da família o seu véu sentimental.../ A burguesia revelou.../ A burguesia não pode existir sem revolucionar, constantemente, os meios de produção".
O que distingue o registro do "Manifesto" é a combinação dessa linguagem de versículo, alternada com explicações "históricas" e "científicas", com uma outra fala, de ironia e sarcasmo crescentes, que faz pensar mais em Baudelaire do que no profeta Jeremias: "Mercado livre: para benefício da classe trabalhadora. Taxas protetoras: para benefício da classe trabalhadora... O burguês é um burguês para benefício da classe trabalhadora". Nisto se mostra a aliança de Marx e Engels com certa poesia provocativa de seus predecessores franceses e alemães; e a construção de um estilo marginal, depois muito rebaixado, sem dúvida, mas que preserva, até hoje, sua carga de terror. "Que a classe dominante trema diante da revolução..."
Há mais na mistura de falas do "Manifesto" do que uma simples reciclagem retórica. Jean-François Lyotard fala de um "sublime marxista", como ponto de fuga da "elaboração absoluta das potencialidades criativas" do homem descrita nos "Grundrisse" e em outros trabalhos. O sublime, na tradição kantiana, é aquele significado intuído, mas que fica além da nossa capacidade de conceitualização (muito embora possa ser imaginado precisamente como tal). Num certo sentido, então, reconhecido pelo próprio Marx, a realização da sociedade comunista fica nesse domínio, de algo que excede todas as formas: é irrepresentável e "extrai sua poesia do futuro", como diz no "Dezoito Brumário de Louis Bonaparte". A forma tem de vir de dentro, permitindo que se constitua plenamente o potencial humano livre de coerção. Na incapacidade de representá-la pelo discurso, a multiplicação das figuras serve, no mínimo, a um propósito sugestivo; como se, do choque das linguagens, uma nova idéia pudesse se formar.
"O socialismo burguês alcança expressão adequada quando e somente quando torna-se uma mera figura de linguagem", lê-se na parte 3.2 do "Manifesto". É uma sentença que precisa ser lida em contraponto com outras, no início: "As conclusões teóricas dos comunistas não estão baseadas de modo algum em idéias ou princípios que foram inventados, ou descobertos... Elas expressam simplesmente, em termos genéricos, relações reais... acontecendo sob nossos próprios olhos". Que as relações "reais" sejam uma invenção ou descoberta da própria doutrina que está sendo divulgada não vem ao caso aqui; um manifesto não é um tratado de lógica. O que chama a atenção é o esforço repetido para transformar a linguagem figurada em literal, como se fosse possível, enfim, construir um discurso direto, uma linguagem das coisas e dos homens, sem passar pelo estorvo das palavras (uma linguagem "onipotente, porque ela é verdade", como escreveu Lenin).
A obra posterior de Marx é sutil no que toca à heterogeneidade entre matéria e consciência; e uma externalidade irredutível serve, ali, de alavanca para uma crítica à própria idéia do humano. No "Manifesto" há uma censura aos socialistas alemães, herdeiros do idealismo, que falam do "homem, em geral, que não pertence a uma classe, não tem realidade, que existe somente no meio enevoado da fantasia filosófica".
Mas nem em 1848, nem depois, será possível abdicar politicamente desse ideal, que é o ponto de fechamento do sistema, e é onde Marx e Engels estão mais próximos do idealismo, em outros pontos tão criticado. Que a liberação do "potencial humano" tenha se manifestado historicamente como liberação da selvageria e da estupidez parece previsível em retrospecto, mas só em retrospecto. O "Manifesto" é pré-nietzscheano e pré-freudiano e não põe em questão as quebras de continuidade entre a linguagem e o homem.
Entre outras lições que a história da leitura do "Manifesto Comunista" nos ensina está a demonstração de que a unidade entre forma e conteúdo não se dá jamais num campo livre das contingências da própria leitura. O ideal de emancipação marxista depende de uma ausência de ambiguidade na interpretação de textos calculadamente retóricos como o "Manifesto". Mas não há falta de ambiguidades na transformação dessas 30 e poucas laudas de texto em um século e meio de história. Os efeitos da leitura do "Manifesto" só são comparáveis, de fato, aos dos maiores textos literários e religiosos. O que é a história da nossa cultura se não a história de interpretação desses textos? O senso comum tem por certo que a história controla a leitura; mas as duas coisas parecem muito mais imbricadas uma na outra, quando se pensa na recepção de escritos como os de Marx e Engels.
Uma aproximação à leitura do "Manifesto" teria de ser feita a partir desse núcleo, em que se cruzam as idéias filosóficas da forma com a teoria política da emancipação do trabalho e as dificuldades e distorções na interpretação do texto na esfera "real". A história recente sugere prudência, no mínimo, ao se aproximar desse documento, que da nossa perspectiva é muito mais de barbárie do que de cultura. Haverá no futuro, quem sabe, uma outra ocasião para a sua releitura em outras bases, tendo às costas, entre outras coisas, a memória de tudo o que ele foi capaz, e não foi capaz, de fazer acontecer.


Arthur Nestrovski é professor de literatura na pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), autor de "Ironias da Modernidade" (Atica), entre outros.



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