São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

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Esboço de história universal


Obra realiza primeira exposição pública do materialismo dialético


RICARDO MUSSE
especial para a Folha

No "Manifesto Comunista", Marx e Engels apresentam, pela primeira vez, o mundo burguês como uma unidade contraditória entre fatores dinâmicos e invariância estática. O paradoxo de uma sociedade que não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, com eles, o conjunto das relações sociais é próprio do mundo moderno. Enquanto os antigos modos de produção assentavam-se, à maneira de uma tradição, na manutenção e conservação de relações fixas e cristalizadas, a sociedade burguesa se reproduz, mantendo-se idêntica, apenas ao preço de uma contínua transformação que, acarretando a obsolescência e uma incontrolável destruição de toda estrutura de produção existente em um determinado momento, subverte de forma incessante inclusive o cenário histórico e político.
Por razões conjunturais, Marx e Engels privilegiaram, nesse entrelaçamento, o aspecto dinâmico, a constância da transitoriedade, materializados na frase-emblema: "Tudo que é sólido desmancha no ar". Muito do interesse e parte da recepção do "Manifesto" explicam-se por essa ênfase. Em períodos de estabilização e consolidação do capital, seja entre 1850 e 1870 ou no quase meio século que se estende de 1950 a 1989, o marxismo volta-se para a compreensão da estática imanente à dinâmica social, concebendo a sociedade como uma segunda natureza e debruçando-se sobre o sempre-igual de fenômenos como o fetichismo da mercadoria. Hoje, no entanto, quando, por uma conjunção de fatores -conflito entre blocos e Guerra Fria, estabelecimento nos países centrais de um Estado do Bem-Estar Social, predomínio incontestável da hegemonia norte-americana- o engessamento do capitalismo parece ter chegado ao fim, muito do que se diz no "Manifesto" volta a ter uma inesperada atualidade.
Revolução iminente
O texto do "Manifesto" constitui-se pela combinação, quase sempre inextrincável, de uma exposição concisa que se propõe a apresentar abertamente, "opondo-se à lenda do espectro", a teoria do comunismo com o detalhamento de uma plataforma política do proletariado para uma revolução que Marx e Engels julgavam iminente e que de fato se desencadeou pouco menos de um mês após sua redação.
Essa conjunção de doutrina e programa, a simbiose entre conceito e história, a unidade de teoria e prática realizam, novamente pela primeira vez (impossível não destacar repetidamente o caráter inaugurador do texto), o projeto mais ambicioso da filosofia do idealismo alemão, enunciado por Fichte como a junção entre o a priori, o desdobramento lógico, e o a posteriori, a experiência do mundo real, e que Hegel, na "Fenomenologia do Espírito" -conforme a voz corrente na filosofia da época, dos jovens hegelianos a Schopenhauer- apenas conseguira alcançar, retrospectivamente, para as formas do passado.
Mas não é só no terreno da filosofia, ao efetivar a exigência, reiterada no debate intelectual da década de 1840, de dar conta do presente histórico, que o "Manifesto" significa um passo adiante. Além de contribuições no campo da sociologia (a teoria das classes sociais) e da economia (embora aqui ainda esteja ausente um ponto central do arcabouço - a teoria marxista do valor), o "Manifesto" inaugura ainda, de acordo com a opinião insuspeita de Schumpeter, a interpretação econômica da história e a teoria moderna da política.
O gesto inaugural ou a introdução de avanços em disciplinas aparentemente tão díspares -que dificilmente poderá, por conta da superespecialização hoje vigente no trabalho intelectual, ser repetido por um outro livro- explica-se facilmente por um círculo virtuoso. Marx renovou a história porque conhecia bem economia, revolucionou a política porque conhecia a história como poucos, reinterpretou criticamente a economia graças aos seus conhecimentos de política e de história etc.
Não se pode dizer o mesmo, porém, do processo de disseminação que tornou o marxismo um fenômeno mundial a partir da última década do século 19. Como a divulgação se fez prioritariamente pela via da esquematização, a difusão acarretou o empobrecimento tanto do conteúdo quanto do método. Não foi só o retalhamento do legado de Marx e Engels em partes e disciplinas estanques por obra do anseio enciclopédico da época e pela posterior incorporação, em separado, de algumas descobertas do marxismo pelo mundo acadêmico burguês. O próprio Engels, apenas cinco anos depois da morte de Marx, acrescentou ao "Manifesto", na edição inglesa de 1888 e depois na edição alemã, uma série de notas explicativas, presentes em todas as edições e traduções posteriores, que dissociam conceito e história.
A primeira nota, por exemplo, adendo ao título da primeira parte, "Burgueses e Proletários", define logicamente estas duas classes por sua posição em relação à propriedade dos meios de produção. Já o texto do "Manifesto" expõe esses conceitos por meio de uma síntese da história moderna que destaca o processo de formação de cada classe e a conexão entre elas, o antagonismo que as envolve numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta.
em Poder de síntese
A súmula do mundo moderno, pequeno esboço de história universal, que o "Manifesto" apresenta em poucas páginas, dotada de um impressionante poder de compreensão e síntese, constitui a primeira aplicação, e exposição pública, da concepção materialista que Marx e Engels haviam desenvolvido num manuscrito, "A Ideologia Alemã", até 1932 abandonado à "crítica roedora dos ratos". O "Manifesto", além de retomar, sob a forma de drásticos resumos, passagens inteiras desse manuscrito, concretiza a idéia, ali apenas enunciada, de uma história que não separa nem distingue os aspectos econômicos, sociais ou políticos.
Essa teoria da história se propõe a combater o ponto de vista de um "assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano" pela observação das relações materiais. Seu fio condutor foi posteriormente condensado por Marx nos seguintes termos: "O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência" (prefácio à "Contribuição à Crítica da Economia Política").
O travamento no desenvolvimento das forças produtivas (a ausência de crescimento), a contradição entre relações sociais existentes manifestam-se sob a forma de crises. As relações burguesas tornaram-se estreitas demais para conter a riqueza colossal que a própria burguesia despertou no seio do trabalho social por meio da exploração do mercado mundial. As medidas protelatórias, segundo Marx e Engels, apenas preparam crises mais gerais e violentas.
A partir desse cenário o "Manifesto" fez uma dupla aposta. Primeiro, sustentou a hipótese, que se revelou verdadeira, de que a crise levaria a uma revolução social que varreria do mapa europeu os velhos regimes. Equivocou-se, porém, na previsão de que o desenvolvimento do capitalismo avançara a ponto de tornar possível uma vitória definitiva do proletariado. Em 1850, Marx e Engels reconhecem, no último artigo de "As Lutas de Classes na França", que a perspectiva de uma continuação do processo revolucionário estava inviabilizada pela retomada, após a crise de 1847, da prosperidade industrial.
O desfecho das revoluções de 1848 -na França marcado pelo golpe de Estado de Luís Bonaparte em 1851-, que levou Marx a se exilar na Inglaterra e a se dedicar por longos anos apenas à redação de "Capital", modificou profundamente a visão de Marx e Engels sobre o papel da burguesia. Sua capacidade em se acomodar, quando preciso, com setores da aristocracia fundiária e com a burocracia monárquica, desfizeram a impressão, amplificada pelo "Manifesto", de que se tratava de uma classe eminentemente revolucionária, apta a "criar o mundo à sua imagem e semelhança". Desde então, passa a ser vista como uma classe contra-revolucionária, trazendo para o primeiro plano seu conflito com o proletariado.
Muito se criticou a teoria de classes do "Manifesto", o substrato da famosa afirmação que abre o livro, "a história de toda sociedade até hoje é a história de lutas de classes", principalmente a simplificação dos antagonismos em dois grandes campos inimigos -burguesia e proletariado. Quando se se atém, porém, ao núcleo da determinação do conceito de proletário, à condição de homens que são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio, sujeitos às vicissitudes da concorrência e às flutuações do mercado, como negar, ainda hoje, a veracidade e a pertinência dessa teoria?
Os problemas do "Manifesto" e, por extensão, do próprio marxismo surgem na determinação da consciência de classe e, portanto, no delineamento da atuação política do proletariado. O processo de formação da classe proletária que o "Manifesto" descreve, das lutas isoladas à organização em associações permanentes e em coalizões antiburguesas, a conversão das lutas locais em uma luta política nacional, é impecável. Mas a expectativa de Marx e Engels de que o incremento de dois fatores dissonantes -o empobrecimento do proletariado por causa da concorrência entre os proletários por trabalho e o aumento do seu poder social por conta da concentração industrial (horizontal, isto é, geográfica, mas também vertical, pela suplantação das pequenas pelas grandes empresas)- conduzisse à revolução proletária não se mostrou factível nos países centrais do capitalismo.
Nesse ponto crucial a atualidade do "Manifesto" reside menos em respostas prontas do que em seu caráter aberto. Em lugar de esmiuçar uma teoria sistemática do partido, com regras e critérios de estruturação e funcionamento, toma o conceito de partido, que agrega no nome "Manifesto do Partido Comunista", como uma mera extensão da classe, determinando, na fórmula de Claudín, não "o partido do proletariado, mas o proletariado como partido". Em vez de uma definição peremptória do modelo de uma sociedade socialista, oferece poucas, breves e vagas indicações (destacando, porém, que a revolução social também significa, nos termos de 1968, "mudar a vida"), à espera de que o desaparecimento do antagonismo entre as classes, do fetichismo da mercadoria e do predomínio do interesse monetário, por si só, ajude a delinear os contornos de uma forma social mais justa.


Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp (Universidade Estadual Paulista) e membro da comissão executiva da revista "praga" (Hucitec).



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