São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

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LIVROS
Anatomia de Shakespeare


"Falando de Shakespeare"disseca a estrutura das peças do dramaturgo inglês


JOÃO ROBERTO FARIA
especial para a Folha

É bem provável que Shakespeare seja o dramaturgo mais encenado, lido e estudado nos nossos tempos, apesar de ter nascido em 1564 e morrido em 1616. O universo ficcional que criou, de uma beleza poética e de uma força dramática inigualáveis, continua a encantar leitores ou espectadores e a desafiar os seus intérpretes. Os personagens que vivem nesse universo, tais como Hamlet, Otelo ou Macbeth, interessam, ainda hoje, porque são "nossos contemporâneos", como diria o crítico polonês Jan Kott.
No Brasil, Shakespeare é uma presença razoavelmente constante, como o "Hamlet" de Sérgio Cardoso, nos anos 40. As traduções das peças para o português são inúmeras -algumas de ótima qualidade como a de "Macbeth" feita por Manuel Bandeira- e podemos contar com pelo menos duas edições diferentes do teatro completo de Shakespeare em nossa língua: a da Aguilar e a da Melhoramentos.
Se as encenações e as traduções são reveladoras do interesse dos brasileiros pela obra do grande escritor inglês, há que se destacar também os trabalhos na área do ensaísmo teatral, sobretudo os que vêm sendo realizados nos últimos 30 anos por Barbara Heliodora, a corajosa e polêmica crítica teatral do jornal "O Globo", autora do excelente "Falando de Shakespeare", que acaba de ser publicado pela Editora Perspectiva.
O livro é uma coletânea de ensaios escritos com a segurança de quem conhece profundamente o assunto e é capaz de exprimir as idéias com leveza, em estilo agradável e fluente. Em livro anterior, "A Expressão Dramática do Homem Político em Shakespeare" (1978), a autora já havia demonstrado grande erudição e acuidade crítica ao estudar um tema específico nas peças históricas que constituem as duas grandes tetralogias do escritor: uma formada pelas três partes de "Henrique 4º" e por "Ricardo 3º", e a outra formada por "Ricardo 2º", as duas partes de "Henrique 4º" e "Henrique 5º". Agora, no novo livro, a abrangência é maior, as análises e interpretações abrem-se para aspectos diversos da obra shakespeariana e grandes peças como "Hamlet", "Otelo", "Rei Lear" e "Macbeth" estão no centro das atenções da autora.

A OBRA
Falando de Shakespeare - Barbara Heliodora. Ed.Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 011/885-8388). 328 págs., RÏ 25,00.
Outros lançamentos

Antônio e Cleópatra - William Shakespeare. Tradução de José Roberto O'Shea. Ed. Mandarim (tel. 011/839-5500). 368 págs., RÏ 29,90.
Romeu e Julieta - William Shakespeare. Ed. Nova Fronteira. Tradução de Barbara Heliodora (tel. 021/537-8770). 208 págs., RÏ 22,00.
"Issues of Death - Mortality and Identity in English Renaissance Tragedy" (Questões sobre a Morte - Mortalidade e Identidade na Tragédia Renascentista Inglesa) - Michael Neill, Oxford, 404 págs., 45 libras.



"Falando de Shakespeare" tem três partes. A primeira, mais longa, apresenta a trajetória do escritor, mas não sem antes caracterizar o ambiente histórico, político e cultural em que ele se formou. No terreno específico do teatro, é o momento em que surge o teatro elisabetano, que concilia a novidade da redescoberta de Plauto, Terêncio e Sêneca com a visão de mundo e as velhas formas do teatro medieval. Assim, enquanto na Itália e na França o Renascimento elegia as obras da Antiguidade como modelares e formulava regras para se atingir a mesma perfeição formal, na Inglaterra o "bárbaro" Shakespeare ainda levava em conta o que aprendera da tradição medieval.
Como bem demonstra Bárbara Heliodora, suas peças devem ser compreendidas e analisadas em função do contexto muito específico que as viu nascer. O uso concomitante do verso e da prosa nos diálogos, a quase ausência de heroínas, a presença de elementos cômicos e trágicos numa mesma peça, a convivência de personagens de classes sociais diversas, a multiplicidade de espaços cênicos, a largueza do tempo ficcional, tudo enfim que caracteriza e singulariza a dramaturgia de Shakespeare, seja no plano da forma, seja no plano do conteúdo, tem uma ligação estreita com a Inglaterra sob o reinado de Elizabeth 1ª e, particularmente, com as condições materiais em que o teatro era feito.
Para dar dois exemplos concretos, basta lembrar que não havia atrizes para os papéis femininos, explicação para a presença maciça de personagens masculinos como protagonistas; vale lembrar também que as peças eram escritas para o palco elisabetano, que não comportava cenários em seu tríplice espaço e que os espetáculos eram feitos a céu aberto, geralmente à tarde.
Nos oito capítulos que compõem a primeira parte de "Falando de Shakespeare", Barbara Heliodora aborda as peças na ordem cronológica em que foram escritas, mas sem nenhuma rigidez, agrupando-as principalmente em função de alguns temas centrais, como o da aparência e realidade, o amor, o jogo do poder, a harmonia do Estado, ou em função de situações dramáticas vividas pelo herói que se defronta com um antagonista e pelo herói que tem o antagonismo dentro de si.
Nas outras duas partes do livro, a autora se debruça sobre algumas peças em particular -"Coriolano", "Rei Lear", "Medida por Medida", "O Mercador de Veneza", "Otelo", "Tróilo e Créssida"- e sobre questões específicas da dramaturgia de Shakespeare, como a condução da reação do público e a língua utilizada nas peças. Sem espaço para detalhar as qualidades de cada ensaio, que são muitas, destaco três momentos que me pareceram excelentes: as reflexões sobre "Rei Lear", que incidem sobre a sua escrita trágica e a sua adequação ao palco elisabetano; a análise da forma e origem de "O Mercador de Veneza", na qual a comparação da peça de Shakespeare com "O Judeu de Malta", de Marlowe, revela o quanto o primeiro melhorou a dramaturgia elisabetana e humanizou os personagens teatrais; e finalmente o estudo de "Otelo", uma instigante soma de argumentos em defesa da idéia de que essa tragédia foi construída sobre uma estrutura cômica.


João Roberto Faria é professor de literatura brasileira na USP e autor de "José de Alencar e o Teatro Realista no Brasil - 1855-1865" (Perspectiva/Edusp).



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