São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

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O bardo em versão rigorosa

SAMUEL TITAN JR.
especial para a Folha

Por gracioso que seja, o adágio "traduttore tradittore" é -ou deveria ser- antes uma rima que uma solução. Mas, a julgar pela qualidade média de boa parte das versões que se perpetram por aqui, parece que o Brasil embarcou alegremente numa versão eufórica do dito: "tradittori" mesmo, e daí? É conhecida a história do tradutor que, por meio de duas maiúsculas, transformou a "general will" (vontade geral) num certo General Will, de triste memória. O mal não se limita a obras técnicas, compêndios médicos ou artigos de jornais: quem já não topou, nalgum romance famoso, com períodos de português discutível e graça idem? Saem perdendo os originais e, mais ainda, a língua portuguesa, que perde a chance de incorporar ao seu fluxo sanguíneo, ao seu acervo estilístico, as criações de outras línguas e literaturas.
Dito isto, que suponho ser de consenso, começam as dificuldades práticas. Será possível manter a fidelidade às mesmas obras que se deseja incorporar à língua vernácula viva? Uma coisa não correrá às custas da outra? O problema põe-se para qualquer obra, em prosa ou em verso, em textos renascentistas como em obras contemporâneas. Mas será particularmente agudo em obras que se esmeram em somar obstáculos. É o que terá sentido Geraldo de Carvalho Silos, tradutor de "Antônio e Cleópatra", uma das "problem plays" de Shakespeare. Aliás, problemática mesmo: que fazer do verso, da dicção teatral, da sintaxe, da cópia vocabular somada à variedade de registros, das obscuridades que se acumularam ao longo de quase quatro séculos (a peça foi encenada pela primeira vez na temporada de 1606-1607)?

A OBRA
Antônio e Cleópatra - William Shakespeare. Tradução de Geraldo de Carvalho Silos. Ed. Topbooks (r. Visconde de Inhaúma, 58, sala 413, CEP 20091-000, RJ, tel. 021/233-8718). 264 págs., RÏ 26,00.



Carvalho Silos enveredou pelo que Vladimir Nabokov, traduzindo Pushkin, chamava de "a opção servil" ("the servile path"): buscou reproduzir cada nuance semântica, toda conotação ou implicação inesperada, ainda que sacrificando a tal fim qualquer outro elemento da obra. Nabokov renunciou às rimas entrelaçadas da estrofe pushkiniana; nosso tradutor de Shakespeare deixou de lado, e de caso pensado, a métrica do verso branco, "verdadeira camisa-de-força" no caminho da "reprodução sutil e mesmo correta do sentido" (pág. 16). Feita esta opção, pôs mãos à obra com rigor e minúcia: não se encheu de pruridos diante do baixo calão de certas falas; consultou os melhores comentadores ao dirimir dúvidas textuais; entrou pela paráfrase quando não viu outro modo de tornar claro o texto shakespeariano; praticou mesmo uma espécie de análise sintática em ato, quando a construção do original revelava-se tão insular quanto sua pátria.
O resultado é uma versão que se lê com confiança, sem medo de renovadas tolices a cada página que se vence. Só temo que esta tradução não venha a lograr o segundo objetivo mencionado mais acima: injetar sangue novo na literatura da língua-alvo. Ao contrário do que acontece com o "Macbeth" de Manuel Bandeira, é difícil imaginar que este "Antônio e Cleópatra" possa causar impacto sobre um palco: no traslado para o português, perdeu-se muito da dinâmica dos diálogos, da violência monossilábica de algumas falas, mesmo da concisão teatral, tão crucial numa peça de agilidade quase cinematográfica. Em trechos como o diálogo entre Cleópatra e o camponês que lhe traz as áspides (ato 5), o gosto explicativo fez empalidecer justamente a polissemia -e com ela a força dramática- do trecho. De modo geral, a nova tradução ressente-se de um tom demasiado uniforme, a despeito de alguns bons efeitos de contraste. Há trechos que se aproximam perigosamente do jargão forense, do documento cartorial; sei que este elemento político-jurídico é um dos afluentes do vocabulário shakespeariano (Alvin Kernan e, no Brasil, Bárbara Heliodora têm chamado atenção para este aspecto), mas não estou seguro da felicidade de todas as soluções de Carvalho Silos.
Nada disso desdoura tanto esforço sério e compenetrado. Carvalho Silos produziu em português algo de semelhante às versões intralinguais que tornam Shakespeare acessível aos leitores de língua inglesa moderna. Em trabalhos como o seu, novos tradutores brasileiros encontrarão um ponto de apoio e um padrão de exigência bem estabelecido -o que não é pouco para quem se dispõe a enfrentar tamanha pujança poética. Deste ponto de partida, poderão arriscar-se a versões mais criativas em língua portuguesa viva e contemporânea. Falei há pouco de Nabokov e Pushkin; faltou lembrar que os países anglo-saxônicos estão entrando já pela quarta ou quinta geração de traduções (algumas delas em rima!) do Oniêguin. Pois que versões como a de Carvalho Silos nos levem a tantas outras ondas shakespearianas, e num dia desses veremos o Avon desaguando na baía de Guanabara.


Samuel Titan é mestrando em teoria literária na USP.



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