São Paulo, domingo, 1 de fevereiro de 1998

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LIVROS
Um livro-cigarro


Crítico literário escreve obra "enciclopédica" em defesa do ato de fumar


MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Como o próprio ato de fumar, este livro é um tanto sem propósito. O crítico literário Richard Klein decidiu escrevê-lo a partir de um paradoxo. Queria parar de fumar -o que conseguiu, depois de 200 e tantas páginas em louvor ao cigarro.
Temos então desde a análise de fotos de fumantes célebres -Picasso, Cocteau, Mary McCarthy-, até um brilhante estudo sobre aspectos políticos do filme "Casablanca". Klein comenta com detalhe poemas de Mallarmé e de Laforgue, a ópera "Carmen", de Bizet, e, claro, o romance "A Consciência de Zeno", de Italo Svevo, em que o narrador, como se sabe, é um fumante inveterado que está sempre acendendo "seu último cigarro".
Klein discorre sobre Sartre e Heidegger, sobre François Mauriac e sobre Erich Maria Remarque. Tira livros e livros do bolso. As ligações entre o fumo e a guerra, entre o fumo e a feminilidade, vão dando ao texto uma dimensão enciclopédica.
São passagens muito inteligentes, e se o autor se integra, ao que tudo indica, na linha da crítica desconstrutivista, não peca pela famosa ilegibilidade, pelos torneios dificílimos de linguagem que caracterizam essa corrente. Ao contrário, ele faz tudo para ser agradável, "leve e suave", mesmo nos momentos de maior exigência na análise literária.
Relendo este último parágrafo, percebo um tom propagandístico no que escrevi. Um elogio dificilmente escapa do gênero publicitário. Desconfio que é este o problema em que Klein se vê enredado. A solução, como sempre, terá de ser a ironia. Ou seja, de algum modo o leitor sente que todo esse elogio ao cigarro "é para valer"; quando diz que "cigarros são sublimes", certamente o autor não está querendo significar o mesmo que um anunciante do produto. O próprio Klein diz que escreveu o livro para romper com o tabagismo.
Poderia então tratar-se apenas de uma elegia irônica, "feminina", charmosa; de mais um poema em favor do cigarro, num momento em que as campanhas contra o fumo são violentíssimas. Ora, o texto tem também um lado "masculino", polêmico, agressivo; denuncia a caça às bruxas, o moralismo dos que fazem leis contra o cigarro.

A OBRA
Os Cigarros São Sublimes - Richard Klein. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges. Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26, CEP 20011-040, RJ, tel. 021/507-2000). 264 págs., RÏ 26,00.



Leia-se, por exemplo: "Um fumante vive através de seus cigarros, os cigarros são sua vida, e fazê-los desaparecer seria privá-lo de um momento definidor de sua existência em nome da saúde. Mas ele já está sadio; por isso fuma". O paradoxo, aqui, não é por certo muito inteligente. Há algo de forçado no tom polêmico.
Mas, em geral, quando escreve passagens polêmicas, o autor abandona as fumaças azuis da crítica literária, os meneios da ironia, as volutas da desconstrução francesa, e passa ao puro bom senso norte-americano. É do ponto de vista do maior bom senso que diz: tornar algo proibido aumenta a vontade das pessoas de fazer o proibido. "Quando o que não é saudável é demonizado, torna-se irresistível, com toda a sedução do vício e o fascínio do que não deve vir à luz.."
Logo -conclusão sensata- é elogiando o cigarro que o combateremos de fato. E, assim, quando diz que o livro foi seu recurso para largar do fumo, temos uma "success story" tipicamente americana.
Por que tantas pessoas fumam, sabendo que isso faz mal à saúde? Por que tantas pessoas inteligentes fumam? Klein recorre ao conceito kantiano do "sublime". O sublime não é o belo ou o agradável aos sentidos. Ao contrário, quando vemos uma tempestade, uma catarata, a erupção de um vulcão, estamos em contato com algo que nos diminui e assusta, e experimentamos o alívio de sobreviver, de estar a salvo dessa ameaça.
O cigarro tem muito disso: é uma espécie de morte em miniatura. Klein volta e meia retorna a análises do ato de fumar em si, que aparecem ao longo do livro como um intermezzo para seus estudos literários substantivos a respeito de Svevo ou Mallarmé.
Claramente, toda teoria de Klein sobre o fumo, toda perspectiva pessoal que assume em favor do cigarro, todos esses trechos, repetindo-se ao longo do livro, são eles próprios um cigarro, sempre igual aos outros, que se acende sem parar. "Privar as pessoas, nos aviões, do direito de fumar, em sua própria seção, onde o ar é poderosamente condicionado, é negar-lhes, durante um tempo de ansiedade aguda, o mecanismo mais potente que a sociedade universal arquitetou para encontrar consolo religioso e firme resignação em face do perigo."
Será que o autor acredita de fato nisso? Mas repete esses argumentos como alguém que acende um cigarro atrás do outro. Surge aqui uma ambiguidade temporal. De um lado, o cigarro é sublime, para Klein, porque o autor está a salvo do perigo. Ou seja, é um livro teoricamente escrito "depois" de se largar o tabagismo. De outro lado, como vimos, é um livro que Klein escreveu antes de parar de fumar. Isso termina tornando o sublime meio falso: o sobressalto de pavor diante da ameaça, típico do sublime, é evocado nostalgicamente, como ironia.
A ironia, em suma, está em falar do passado como se já fosse o presente: em falar como alguém que já deixou de fumar e ao mesmo tempo falar como fumante. O livro vai ficando -e Klein parece saber disso- mais e mais paradoxal: é contra o cigarro quanto mais fala bem do cigarro e é tanto mais sensato quanto mais complicado. Mas, além de paradoxal, o livro é na verdade ambíguo: conciliador e polêmico, "masculino" e "feminino", teoria literária e panfleto, cigarro repetitivo e isqueiro chamejante, sublimidade e elegia.
Podemos dizer, sem dúvida, que toda essa ambiguidade é intencional também, que mais do que "sublimes" os cigarros são ambíguos e que Klein escreveu ele próprio um livro-cigarro. É uma resposta às críticas que fiz acima. Só posso dizer que gostei e não gostei; o livro se pretende, talvez, bom e ruim como os cigarros.



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