São Paulo, domingo, 1 de março de 1998 |
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PRISCILA FIGUEIREDO
O fio do argumento, a relação minada entre os personagens, em que pesam a traição da mãe, o envolvimento ambíguo do pai, desembargador, com um processo eleitoral fraudulento, espelha-se reiterada e renovadamente na consciência de cada um, que interpreta como pode o ambiente em que se movimenta. A fala de I. é carregada de argumentos escolásticos, de solidariedade com o pai, de desencantamento e culpa; a fala de R. conjuga edipianismo, impressões de contos de fada, de heróis juvenis, aos quais ele faz corresponder o mendigo, a empregada, a tia, o pai. A combinação, ou concerto, de vozes, em que não é raro se acrescentarem outras, como a do psiquiatra de M., o qual apresenta o relatório de sua paciente, dá ao texto uma fisionomia poliédrica, como a sugerir o labirinto dos desconcertos e travamentos familiares. Cada parte é apenas uma parte da verdade, esfumaçada no todo, desconjuntada e trôpega como o elefante de Drummond. No entanto, se de fato a obra aproveita alguns dos expedientes próprios da melhor narrativa moderna, mostrando influência de Cortázar, não deixa de recair no clichê, em diluições do existencialismo, na estandardização do delírio, da livre associação, do conflito mesmo, da solidão. "Hoje as pessoas afagam essas formas ocas, com um gesto distraído", escreveu Benjamin. Há (e, como se não bastasse, em excesso) brisas frias, medos de existir, vacuidades, náuseas, estranhezas, com as quais, de resto, o leitor médio está há muito familiarizado, aquietado, contemplando com disposição burocrática a rotinizada atomização do mundo. Priscila Figueiredo é mestranda em literatura brasileira na USP e consultora de português da Folha. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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