São Paulo, domingo, 1 de março de 1998

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Confissões melancólicas

PRISCILA FIGUEIREDO
especial para Folha

"Concerto para Flauta e Martelo", de Ronaldo Costa Fernandes, ganhador do prêmio Casa de las Américas com o romance "O Morto Solidário", padece dos equívocos de boa parte da literatura nas últimas décadas, no que ela tem de triste sistematização do caos, da irracionalidade, do estilhaçamento do sujeito, do embaralhamento dos pontos de vista narrativos, recursos desvitalizados, esvaziados daquela "potencialidade de revolta contra as formas e os donos-da-vida atuais" (como exigia Mário de Andrade), que animou a melhor literatura moderna.
Sinal dos tempos, a espontaneidade é enquadrada, viciada, vigendo num regime de formas outrora destruidoras, de pseudo-adensamento psicológico e de melancolia suspeita, para ser consumida, mercadoria pertencente ao mesmo gênero daquela "estupidez torturada" que Walter Benjamin percebeu na poesia de Erich Kästner.
Não deixa de ser sempre interessante a oscilação constante entre o tempo da narração e o tempo dos acontecimentos narrados, com intersecção de diversos planos temporais, ora mais remotos, ora mais distantes, ora simultâneos, ora posteriores ao momento da narração. Cada um dos membros de uma família burguesa carioca, M., a mãe, P., o pai, I., a filha (às vezes adolescente, interna em um colégio de freiras, às vezes casada), R., o filho, compõe os personagens, empenhados por vezes no que Northrop Frye chamou de "confession", relato autobiográfico ou rememoração narrativa. Esta é entrecortada por fragmentos de outras reminiscências, com o que se evita a todo instante a sequência narrativa realista.

A OBRA
Concerto para Flauta e Martelo - Ronaldo Costa Fernandes. Ed. Revan (av. Paulo de Frontin, 163, CEP 20260-010, RJ, tel. 021/502-7495). 160 págs. R$ 16,00.



O fio do argumento, a relação minada entre os personagens, em que pesam a traição da mãe, o envolvimento ambíguo do pai, desembargador, com um processo eleitoral fraudulento, espelha-se reiterada e renovadamente na consciência de cada um, que interpreta como pode o ambiente em que se movimenta. A fala de I. é carregada de argumentos escolásticos, de solidariedade com o pai, de desencantamento e culpa; a fala de R. conjuga edipianismo, impressões de contos de fada, de heróis juvenis, aos quais ele faz corresponder o mendigo, a empregada, a tia, o pai. A combinação, ou concerto, de vozes, em que não é raro se acrescentarem outras, como a do psiquiatra de M., o qual apresenta o relatório de sua paciente, dá ao texto uma fisionomia poliédrica, como a sugerir o labirinto dos desconcertos e travamentos familiares. Cada parte é apenas uma parte da verdade, esfumaçada no todo, desconjuntada e trôpega como o elefante de Drummond.
No entanto, se de fato a obra aproveita alguns dos expedientes próprios da melhor narrativa moderna, mostrando influência de Cortázar, não deixa de recair no clichê, em diluições do existencialismo, na estandardização do delírio, da livre associação, do conflito mesmo, da solidão. "Hoje as pessoas afagam essas formas ocas, com um gesto distraído", escreveu Benjamin. Há (e, como se não bastasse, em excesso) brisas frias, medos de existir, vacuidades, náuseas, estranhezas, com as quais, de resto, o leitor médio está há muito familiarizado, aquietado, contemplando com disposição burocrática a rotinizada atomização do mundo.


Priscila Figueiredo é mestranda em literatura brasileira na USP e consultora de português da Folha.



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