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A mestiçagem no divã
GRAZIELA COSTA PINTO
especial para a Folha
"O Papagaio e o Doutor", de
Betty Milan, explora pelo viés psicanalítico um tema recorrente na
tradição literária brasileira: a formação de uma identidade nacional que tem paradigmas europeus,
mas que acaba transtornando seu
modelo utópico quando vai de encontro à materialidade de uma
terra sem história ou homogeneidade étnica e cultural.
A "tópica" literária da nacionalidade como espelho invertido da
cultura européia encontrou versões diferentes em autores como
José de Alencar, Machado de Assis, Mário e, sobretudo, Oswald de
Andrade -cuja visão da cultura
brasileira como "antropofágica" é
um emblema permanente de nossa identidade negativa.
Curiosamente, a própria história
editorial de "O Papagaio e o Doutor" sugere as oscilações entre dois
universos culturais e as transformações que esse tenso comércio
simbólico proporciona. Publicado
originalmente em 1991, o livro sofreu várias alterações quando foi
traduzido para o francês; e a edição francesa, por sua vez, serviu
de base para a nova versão do romance em língua portuguesa
-versão que está sendo lançada
agora pela Editora Record.
Essa alternância entre dois hemisférios linguísticos reproduz
também o enredo de seu romance:
ao encontrar a versão definitiva
depois de traduzi-lo para outro
idioma, Betty aproxima-se de Seriema, a personagem-narradora
do livro que, pela errância em alfabetos alheios, resgata sua própria
letra.
Descendente de imigrantes turcos no Brasil, Seriema está à procura de sua pátria-língua, que
busca encontrar num outro lugar.
Ao firmar um contrato de análise
com um famoso psicanalista francês, aceita o exílio como condição
de reconhecimento. E é justamente a escolha de analisar-se num
idioma que não é o seu que a leva a
questionar suas origens, deparando-se com os dramas da imigração, da identidade cultural e da feminilidade.
A OBRA
O Papagaio e o Doutor -
Betty Milan. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380,
RJ, tel. 021/580-4911). 196
págs. R$ 12,00.
Lançamento: A autora autografa seu livro amanhã, a partir
das 18h30, na Livraria Cultura
(av. Paulista, 2.073, Conjunto
Nacional, SP, tel.
011/285-4033), com leitura
dramática do diretor José Celso
Martinez Correa.
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Sonhando numa língua que o
analista não compreende, a narradora se vê obrigada a realizar um
trabalho de tradução constante,
cuja impossibilidade (como traduzir palavra "saudade", como
explicar o que é um "pé-de-moleque" para um francês?) põe em cena suas representações, levando-a
a construir uma nova subjetividade.
Sob o imperativo psicanalítico
da rememoração, Seriema depara-se com a riqueza de sua mestiçagem linguística, que ela escondia em nome de um elitismo familiar e de uma classe social que cultiva ideais europeus. O idioma
brasileiro (sua língua do "ão"), o
tupi-guarani, o árabe, o português
e o francês misturam-se, na justa
medida, confluindo em sentidos
múltiplos e verdadeiros.
A utilização do processo de análise como recurso narrativo não é
gratuita. Betty Milan é psicanalista
e analisou-se na França com Jacques Lacan, que, por suas "irreverentes" intervenções analíticas, foi
excomungado da clássica sociedade dos analistas (a IPA). O estilo
do Doutor é, sem dúvida, o de Lacan, e Seriema, por sua vez, guarda inequívocas semelhanças biográficas com a autora. Entretanto,
o romance supera o plano do depoimento pessoal ao estetizar a relação analítica, utilizando-a como
instrumento de construção da
personagem.
Com uma fala solta e muita ironia, Seriema põe em xeque não
apenas a si mesma, mas também,
e principalmente, os discursos
idealizantes e alienados das elites
brasileiras. Expondo-se ao enigmático Doutor, confronta-se com
seu passado a-histórico e miscigenado que, de certo modo, é também o de todos os brasileiros. A
musicalidade da língua brasileira,
que aos poucos a invade, leva sua
memória a construir sua própria
história, com a qual se reconcilia e
com a qual pode finalmente regressar para sua terra de origem.
Graziela Ribeiro dos Santos Costa Pinto é
psicóloga.
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