São Paulo, domingo, 1 de março de 1998

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A mestiçagem no divã

GRAZIELA COSTA PINTO
especial para a Folha

"O Papagaio e o Doutor", de Betty Milan, explora pelo viés psicanalítico um tema recorrente na tradição literária brasileira: a formação de uma identidade nacional que tem paradigmas europeus, mas que acaba transtornando seu modelo utópico quando vai de encontro à materialidade de uma terra sem história ou homogeneidade étnica e cultural.
A "tópica" literária da nacionalidade como espelho invertido da cultura européia encontrou versões diferentes em autores como José de Alencar, Machado de Assis, Mário e, sobretudo, Oswald de Andrade -cuja visão da cultura brasileira como "antropofágica" é um emblema permanente de nossa identidade negativa.
Curiosamente, a própria história editorial de "O Papagaio e o Doutor" sugere as oscilações entre dois universos culturais e as transformações que esse tenso comércio simbólico proporciona. Publicado originalmente em 1991, o livro sofreu várias alterações quando foi traduzido para o francês; e a edição francesa, por sua vez, serviu de base para a nova versão do romance em língua portuguesa -versão que está sendo lançada agora pela Editora Record.
Essa alternância entre dois hemisférios linguísticos reproduz também o enredo de seu romance: ao encontrar a versão definitiva depois de traduzi-lo para outro idioma, Betty aproxima-se de Seriema, a personagem-narradora do livro que, pela errância em alfabetos alheios, resgata sua própria letra.
Descendente de imigrantes turcos no Brasil, Seriema está à procura de sua pátria-língua, que busca encontrar num outro lugar. Ao firmar um contrato de análise com um famoso psicanalista francês, aceita o exílio como condição de reconhecimento. E é justamente a escolha de analisar-se num idioma que não é o seu que a leva a questionar suas origens, deparando-se com os dramas da imigração, da identidade cultural e da feminilidade.

A OBRA
O Papagaio e o Doutor - Betty Milan. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/580-4911). 196 págs. R$ 12,00.

Lançamento: A autora autografa seu livro amanhã, a partir das 18h30, na Livraria Cultura
(av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, SP, tel. 011/285-4033), com leitura dramática do diretor José Celso Martinez Correa.



Sonhando numa língua que o analista não compreende, a narradora se vê obrigada a realizar um trabalho de tradução constante, cuja impossibilidade (como traduzir palavra "saudade", como explicar o que é um "pé-de-moleque" para um francês?) põe em cena suas representações, levando-a a construir uma nova subjetividade.
Sob o imperativo psicanalítico da rememoração, Seriema depara-se com a riqueza de sua mestiçagem linguística, que ela escondia em nome de um elitismo familiar e de uma classe social que cultiva ideais europeus. O idioma brasileiro (sua língua do "ão"), o tupi-guarani, o árabe, o português e o francês misturam-se, na justa medida, confluindo em sentidos múltiplos e verdadeiros.
A utilização do processo de análise como recurso narrativo não é gratuita. Betty Milan é psicanalista e analisou-se na França com Jacques Lacan, que, por suas "irreverentes" intervenções analíticas, foi excomungado da clássica sociedade dos analistas (a IPA). O estilo do Doutor é, sem dúvida, o de Lacan, e Seriema, por sua vez, guarda inequívocas semelhanças biográficas com a autora. Entretanto, o romance supera o plano do depoimento pessoal ao estetizar a relação analítica, utilizando-a como instrumento de construção da personagem.
Com uma fala solta e muita ironia, Seriema põe em xeque não apenas a si mesma, mas também, e principalmente, os discursos idealizantes e alienados das elites brasileiras. Expondo-se ao enigmático Doutor, confronta-se com seu passado a-histórico e miscigenado que, de certo modo, é também o de todos os brasileiros. A musicalidade da língua brasileira, que aos poucos a invade, leva sua memória a construir sua própria história, com a qual se reconcilia e com a qual pode finalmente regressar para sua terra de origem.


Graziela Ribeiro dos Santos Costa Pinto é psicóloga.



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