São Paulo, domingo, 01 de abril de 2001

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Uma fábula pós-moderna

Em "Enigmas da Modernidade-Mundo" Octavio Ianni investiga os processos que deram origem à sociedade contemporânea, como a transculturação e a democracia eletrônica

Teixeira Coelho
especial para a Folha

Enfrentar o mundo como um enigma a desvendar (admitindo que talvez não possa ser desvendado) em vez de armado com respostas prontas, categóricas e definitivas, é um ponto de partida estimulante. Conhecendo um pouco o processo de sondar as próprias idéias a partir do espelho do papel em branco ou da tela cinza do computador, daria para dizer que para o autor de um livro que assume essa perspectiva, talvez esse modo seja mais angustiante do que propriamente estimulante. Para o leitor do livro, porém, esse modo é sem dúvida entusiasmante. As respostas definitivas ("objetivas", como escreve Ianni, assim mesmo entre aspas) sobre o homem individual e em grupo já demonstraram, todas, a sua precariedade ou, em todo caso, a debilidade da maioria de seus fundamentos. Aceitar que o mundo é um enigma e que a partir desse enigma o que se pode fazer é fabular - palavra que, novamente, aparece em Ianni-, como faz o escritor de ficção (cujo estilo de pensar o autor reconhece) ao avançar suas incertezas, que são sempre flutuantes, configura uma proposta para sentar à mesa e refletir que um leitor vivo não pode recusar.

Equação em aberto
A escola de pensamento -ou, para relativizar um pouco a pomposidade dessa expressão: a geração de pensadores- a que pertence Octavio Ianni não costuma fazer desse procedimento um princípio normativo habitual, muito pelo contrário. A certeza de haver formulado corretamente a equação e de ter resolvido a incógnita costumava ser o ponto de partida e a meta de chegada das abordagens sociológicas em cujo universo o autor se tornou de início conhecido. Neste livro, porém, o que se encontra é um pensamento que viaja pelos tópicos de uma cultura amplamente globalizada, aberta, em processo de transculturação, como prefere o autor, e que anota temas sobre os quais refletir numa conversa antes do que usar como pilares perfeitamente determinados de uma nova construção. Estimula, também, que um pensador como Octavio Ianni reconheça a pertinência (e talvez a inevitabilidade, agora) de um termo ainda consideravelmente maldito entre muitos de seus colegas, "pós-modernidade", e o aceite como válido na tentativa de compreensão desse enigma que é o mundo contemporâneo, que é globalizado e que já não é mais moderno, embora ainda o seja. A respeito dessa questão, Ianni é muito claro: pós-modernidade é um ponto de vista, uma categoria teórico-ideal -mais do que isso, um estilo de pensar, com tantos direitos de cidadania no cenário intelectual quanto aquele ao qual se opõe, o da modernidade. Como escreve no início do capítulo "Estilos de Pensamento", quando se fala dos tempos atuais se está falando de modernidade e pós-modernidade, duas formas de pensar, sentir, agir, imaginar e narrar que se manifestam de maneira diversa em diferentes "textos" (um edifício, um romance, um poema, um comportamento).

Modos não-excludentes
Dois modos que não se excluem -porque o moderno continua aí- e, sobretudo, dois modos numa relação na qual um deles, o da modernidade, de modo algum ocupa um lugar privilegiado, existencial ou ideologicamente. Ianni aceita-os a ambos e procura reconhecer a produtividade de um e de outro no processo de desvendamento e imediato recobrimento do enigma-mundo. Talvez uma outra reflexão, como a minha, estivesse mais inclinada a aprofundar-se na crítica dos aspectos menos positivos de um e nas evidências do outro -mais apropriadas a este momento atual do desdobramento desse enigma. Mas o modo calmo, tranquilo, receptivo com que Ianni recebe os dois estilos de pensamento é um recurso que desde logo desarma quem estiver mais disposto a contrariá-lo do que a conversar com ele na identificação (não na solução) desse enigma. Tanto mais quanto Ianni o faz num estilo -quem sabe ele mesmo não concorde com isso, não aceite isso- que é consideravelmente pós-moderno: o estilo inclusivo e abrangente do encadeamento de coisas, nomes e idéias-objeto que se faz por meio do uso do copulativo "e" no lugar do estilo alternativo, que busca exclusões, marcado pelo uso do "ou". As coisas não são mais ou isso ou aquilo, agora as coisas, na cultura em todo o caso, são isso e aquilo. Ianni diz isso com várias palavras de conteúdo claro, e o diz no estilo copulativo que nem mais o "e" usa, mas, sim, a simples vírgula. E são inúmeras as passagens em que Ianni alinha, com vírgulas, nomes de escritores (Marx, Balzac, Dickens, Poe), idéias-objeto (romantismo, surrealismo, futurismo) e qualidades (fragmentário, descontínuo, desenraizado, desterritorializado). E essas próprias palavras são dadas de modo sintético, não mais no tradicional modo analítico que exigia do autor uma definição precisa de tudo que escrevia. Sob esse aspecto, Ianni também é pós-moderno: ele mais oferece ao leitor imagens do que discursos.

Palavra sincera
Não sei até que ponto o autor concordará com essa visão de seu estilo e estou longe de defender a noção de que o explicador (outro nome para o crítico) sabe mais da obra de um autor do que o próprio autor. Mas esse traço é aquele que tomo como indício de que a palavra do autor Ianni (aquilo que ele diz) é sincera (se esse termo ainda tiver curso...), porque se encontra rebatida no modo como usa a palavra, como diz. Isso constitui, para mim, uma nota especial de interesse por um livro de um autor que se revigora na discussão de tantos temas (Ocidente e Oriente, transculturação, a cidade, o príncipe eletrônico, o desencantamento do mundo, os mitos e as mitologias) na aparência distintos, mas que se ligam, na textura interior da reflexão sobre eles, por meio da abertura de cabeça (como na isenção diante da ascendência do inglês como idioma global), da fascinação com a fábula e a literatura (quer dizer, com a arte) como instrumentos privilegiados do conhecimento e na aceitação da diferenciação enigmática da cultura em um mundo que segue um curso, o da globalização, no fundo nada novo.


Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC-SP), autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance" (Geração Editorial) e "Dicionário Crítico de Política Cultural" (ed. Iluminuras).



Enigmas da Modernidade-Mundo
322 págs., R$ 36,00 de Octavio Ianni. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 585-2047).




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