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Uma fábula pós-moderna
Em "Enigmas da Modernidade-Mundo" Octavio Ianni investiga os processos que deram
origem à sociedade contemporânea, como a transculturação e a democracia eletrônica
Teixeira Coelho
especial para a Folha
Enfrentar o mundo como um enigma a desvendar (admitindo que talvez não possa ser desvendado) em vez de armado com respostas prontas,
categóricas e definitivas, é um ponto de partida
estimulante. Conhecendo um pouco o processo de sondar as próprias idéias a partir do espelho do papel em
branco ou da tela cinza do computador, daria para dizer
que para o autor de um livro que assume essa perspectiva, talvez esse modo seja mais angustiante do que propriamente estimulante. Para o leitor do livro, porém, esse modo é sem dúvida entusiasmante. As respostas definitivas ("objetivas", como escreve Ianni, assim mesmo entre aspas) sobre o homem individual e em grupo
já demonstraram, todas, a sua precariedade ou, em todo caso, a debilidade da maioria de seus fundamentos.
Aceitar que o mundo é um enigma e que a partir desse
enigma o que se pode fazer é fabular - palavra que, novamente, aparece em Ianni-, como faz o escritor de
ficção (cujo estilo de pensar o autor reconhece) ao avançar suas incertezas, que são sempre flutuantes, configura uma proposta para sentar à mesa e refletir que um
leitor vivo não pode recusar.
Equação em aberto
A escola de pensamento
-ou, para relativizar um pouco a pomposidade dessa
expressão: a geração de pensadores- a que pertence
Octavio Ianni não costuma fazer desse procedimento
um princípio normativo habitual, muito pelo contrário.
A certeza de haver formulado corretamente a equação e
de ter resolvido a incógnita costumava ser o ponto de
partida e a meta de chegada das abordagens sociológicas em cujo universo o autor se tornou de início conhecido. Neste livro, porém, o que se encontra é um pensamento que viaja pelos tópicos de uma cultura amplamente globalizada, aberta, em processo de transculturação, como prefere o autor, e que anota temas sobre os quais refletir numa
conversa antes do que usar como pilares
perfeitamente determinados de uma nova construção.
Estimula, também, que um pensador como Octavio
Ianni reconheça a pertinência (e talvez a inevitabilidade, agora) de um termo ainda consideravelmente maldito entre muitos de seus colegas, "pós-modernidade",
e o aceite como válido na tentativa de compreensão desse enigma que é o mundo contemporâneo, que é globalizado e que já não é mais moderno, embora ainda o seja. A respeito dessa questão, Ianni é muito claro: pós-modernidade é um ponto de vista, uma categoria teórico-ideal -mais do que isso, um estilo de pensar, com
tantos direitos de cidadania no cenário intelectual
quanto aquele ao qual se opõe, o da modernidade. Como escreve no início do capítulo "Estilos de Pensamento", quando se fala dos tempos atuais se está falando de
modernidade e pós-modernidade, duas formas de pensar, sentir, agir, imaginar e narrar que se manifestam de
maneira diversa em diferentes "textos" (um edifício,
um romance, um poema, um comportamento).
Modos não-excludentes
Dois modos que não se
excluem -porque o moderno continua aí- e, sobretudo, dois modos numa relação na qual um deles, o da
modernidade, de modo algum ocupa um lugar privilegiado, existencial ou ideologicamente. Ianni aceita-os a
ambos e procura reconhecer a produtividade de um e
de outro no processo de desvendamento e imediato recobrimento do enigma-mundo.
Talvez uma outra reflexão, como a minha, estivesse
mais inclinada a aprofundar-se na crítica dos aspectos
menos positivos de um e nas evidências do outro
-mais apropriadas a este momento atual do desdobramento desse enigma. Mas o modo calmo, tranquilo,
receptivo com que Ianni recebe os dois estilos de pensamento é um recurso que desde logo desarma quem estiver mais disposto a contrariá-lo do que a conversar com
ele na identificação (não na solução) desse enigma.
Tanto mais quanto Ianni o faz num estilo -quem sabe ele mesmo não concorde com isso, não aceite isso- que é consideravelmente pós-moderno: o estilo
inclusivo e abrangente do encadeamento
de coisas, nomes e idéias-objeto que se
faz por meio do uso do copulativo "e" no
lugar do estilo alternativo, que busca exclusões, marcado pelo uso do "ou". As coisas não são mais ou isso ou
aquilo, agora as coisas, na cultura em todo o caso, são isso e aquilo.
Ianni diz isso com várias palavras de conteúdo claro, e
o diz no estilo copulativo que nem mais o "e" usa, mas,
sim, a simples vírgula. E são inúmeras as passagens em
que Ianni alinha, com vírgulas, nomes de escritores
(Marx, Balzac, Dickens, Poe), idéias-objeto (romantismo, surrealismo, futurismo) e qualidades (fragmentário, descontínuo, desenraizado, desterritorializado). E
essas próprias palavras são dadas de modo sintético,
não mais no tradicional modo analítico que exigia do
autor uma definição precisa de tudo que escrevia. Sob
esse aspecto, Ianni também é pós-moderno: ele mais
oferece ao leitor imagens do que discursos.
Palavra sincera
Não sei até que ponto o autor concordará com essa visão de seu estilo e estou longe de defender a noção de que o explicador (outro nome para o
crítico) sabe mais da obra de um autor do que o próprio
autor. Mas esse traço é aquele que tomo como indício
de que a palavra do autor Ianni (aquilo que ele diz) é
sincera (se esse termo ainda tiver curso...), porque se
encontra rebatida no modo como usa a palavra, como
diz. Isso constitui, para mim, uma nota especial de interesse por um livro de um autor que se revigora na discussão de tantos temas (Ocidente e Oriente, transculturação, a cidade, o príncipe eletrônico, o desencantamento do mundo, os mitos e as mitologias) na aparência distintos, mas que se ligam, na textura interior da reflexão sobre eles, por meio da abertura de cabeça (como
na isenção diante da ascendência do inglês como idioma global), da fascinação com a fábula e a literatura
(quer dizer, com a arte) como instrumentos privilegiados do conhecimento e na aceitação da diferenciação
enigmática da cultura em um mundo que segue um
curso, o da globalização, no fundo nada novo.
Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC-SP), autor, entre outros, de "Niemeyer - Um Romance" (Geração Editorial) e "Dicionário Crítico de Política Cultural"
(ed. Iluminuras).
Enigmas
da Modernidade-Mundo
322 págs., R$ 36,00
de Octavio Ianni. Ed. Civilização
Brasileira (r. Argentina, 171, CEP
20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/
585-2047).
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