São Paulo, domingo, 01 de abril de 2001

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+ história

A mística da revolução

Para o inglês Eric Hobsbawm o milenarismo camponês é a base das principais correntes de contestação política e econômica do século 20


Graças à problemática do milenarismo, a historiografia de Hobsbawm integra toda a riqueza da subjetividade sociocultural, a profundidade das crenças, dos sentimentos e emoções na análise que faz dos fatos históricos


Michael Löwy
especial para a Folha

Eric Hobsbawm é um homem das Luzes -afinal, ele não define o socialismo como o último e mais extremo descendente do racionalismo do século 18? Apesar disso, sua abordagem se distingue notavelmente da vulgata "progressista" pelo interesse, a simpatia, até mesmo o fascínio -são os termos que ele próprio utiliza- que sente pelos movimentos camponeses ditos "primitivos" de resistência e protesto antimoderno (anticapitalista), como demonstram suas obras "Rebeldes Primitivos" (1959), "Bandidos" (1969; lançado no Brasil pela Forense Universitária) e "Capitão Swing" (1969, Francisco Alves). Essa atitude -ao mesmo tempo metodológica, ética e política- implica um distanciamento com relação a uma certa historiografia que, em função de algo que ele qualifica como uma deformação ("viés") racionalista e "modernista", tende a ignorar ou menosprezar esses movimentos, enxergando-os como sobrevivências bizarras ou fenômenos marginais. Para Hobsbawm, porém, essas populações "primitivas" são ainda hoje -o que significa nos anos 50- a grande maioria na maior parte dos países do mundo. Além disso -e, para o historiador, esse é o argumento decisivo- "é sua tomada de consciência política que tornou nosso século o mais revolucionário da história". Em outras palavras, longe de ser marginal, esse tipo de movimento está na origem ou raiz das grandes reviravoltas revolucionárias do século 20, nas quais camponeses ou massas pobres da zona rural exerceram papel decisivo: a Revolução Mexicana de 1911-19, a Revolução Russa de 1917, a Revolução Espanhola de 1936, a Revolução Chinesa e a Revolução Cubana. A idéia é apenas sugerida por Hobsbawm, mas constitui uma espécie de pano de fundo de suas pesquisas sobre os "primitivos". Hobsbawm observa que, para compreender essas revoltas, é preciso partir da constatação de que a modernização, o surgimento do capitalismo nas sociedades camponesas tradicionais, a introdução do liberalismo, significa um cataclismo social que as desarticula por completo. Quer essa chegada do mundo capitalista moderno seja um processo insidioso, que se dá pela atuação de forças econômicas que os camponeses não compreendem, quer ela irrompa de maneira brutal, pela conquista ou troca de regime, ela é vista por eles como agressão mortal a seu modo de vida. As revoltas camponesas contra essa nova ordem, sentida como insuportavelmente injusta, em muitos casos são inspiradas pela nostalgia do mundo tradicional, dos "bons e velhos tempos" em maior ou menor grau míticos. O caso de resistência rural anticapitalista que Hobsbawm estudou mais sistematicamente foi a revolta dos trabalhadores agrícolas ingleses em 1830, um movimento de protesto de massas que utilizou métodos "arcaicos" -incêndios de celeiros, destruição de máquinas- e se valia de um mítico "Capitão Swing". No livro que dedicou (em colaboração com o seu amigo Georges Rudé) a essa revolução duramente reprimida pelas autoridades -19 execuções, 481 deportações para a Austrália e 644 condenações a penas pesadas de prisão, para uma revolta que destruiu propriedades, mas não causou nenhuma morte entre seus inimigos-, Hobsbawm caracterizou o movimento como uma resistência improvisada, espontânea, "arcaica", contra a lógica do mercado e o pleno triunfo do capitalismo rural. Entretanto, negando-se a seguir certa tradição dita "modernista" e que é tanto liberal quanto de esquerda, o historiador não caracteriza esse movimento como "reacionário". Longe de condená-lo como "passadista", atribui seu fracasso ao fato de não ter conseguido atingir os meios urbanos.

Pancho Villa
Sob que condições e formas a revolta "primitiva" pode transformar-se em movimento revolucionário? No caso do banditismo social, a passagem não se dá facilmente. Apesar disso, pode acontecer de os dois mundos se encontrarem, como foi o caso da Revolução Mexicana de 1911-19: "Pancho Villa, o formidável general dos exércitos revolucionários, foi levado à Revolução Mexicana pelos homens de Madero. De todos os bandidos profissionais do mundo ocidental, talvez tenha sido o de mais bela carreira revolucionária".
Dentre todas as formas de revolta "primitiva", os movimentos milenaristas parecem ser, na visão do historiador, os mais aptos a se tornarem revolucionários. Entre o milenarismo e a revolução existiria uma sorte de "afinidade eletiva" -a terminologia é minha, e não de Hobsbawm-, uma analogia estrutural: "A essência do milenarismo, a esperança de uma transformação completa e radical do mundo que se traduzirá na chegada do novo milênio, não se limita ao primitivismo. Está presente, quase que por definição, em todo movimento revolucionário".
Graças à problemática do milenarismo, a historiografia de Eric Hobsbawm integra toda a riqueza da subjetividade sociocultural, a profundidade das crenças, dos sentimentos e emoções na análise que faz dos acontecimentos históricos, que, nessa perspectiva, deixam de ser percebidos simplesmente como produtos da ação "objetiva" das forças econômicas ou políticas. Essa abertura para a dimensão subjetiva se traduz também pelo fato de que a análise em termos de classes sociais não elimina o lugar irredutível dos indivíduos, tanto célebres quanto desconhecidos, aos quais o historiador frequentemente dá a palavra.
Ao mesmo tempo em que traça uma distinção cuidadosa entre milenarismos primitivos e revolucionarismos modernos, Hobsbawm insiste em seu parentesco (ou afinidade) eletivo: "Mesmo os menos milenaristas dos revolucionários modernos têm um traço de "impossibilismo" que faz deles os "primos" dos taboritas e dos anabatistas, parentesco que, aliás, nunca negaram".
Trata-se de uma das hipóteses de pesquisa mais interessantes traçadas por Hobsbawm em seus trabalhos sobre essa época. Ele ilustra suas teses com dois estudos de caso profundamente interessantes: o anarquismo rural na Andaluzia e as ligas camponesas da Sicília, ambos originários no final do século 19, com prolongamentos no século 20.
O anarquismo agrário espanhol é talvez "o exemplo mais impressionante de movimento moderno de massas milenarista ou quase milenarista". Por seu revolucionarismo simples, sua fé absoluta na "grande transformação", no advento de um mundo de justiça e liberdade, esse movimento comunista libertário -que correspondia de maneira estranha às aspirações espontâneas dos camponeses andaluzes e à sua rejeição da nova ordem capitalista- era "utópico, milenarista, apocalíptico".
A atitude do historiador diante dos anarquistas andaluzes é marcada pela ambivalência. Por um lado, ele não oculta a admiração que lhe despertam sua energia social, sua crença na educação, ciência e progresso, sua sede de conhecimento -mesmo enquanto cavalgava seu burrico, o militante continuava a ler, deixando a rédea solta!- e, sobretudo, seu espírito de solidariedade internacionalista, que fazia com que "o sapateiro de um pequeno povoado da Andaluzia tivesse a consciência de ter companheiros lutando pela mesma causa em Madri e Nova York, Barcelona, Livorno ou Buenos Aires". Mesmo seus levantes "messiânicos" a cada dez anos, sempre fadados ao fracasso, porque isolados, eram, "nas circunstâncias em que ocorriam, a menos desesperada das técnicas revolucionárias disponíveis".
Apesar disso, Hobsbawm pensa -e, aqui, fica claro que quem fala é o comunista inglês- que, devido à ausência de organização, estratégia e paciência, "suas energias revolucionárias foram quase inteiramente desperdiçadas". Essa avaliação sumária é parcialmente desmentida pela constatação, alguns parágrafos acima, de que, quando existiam as condições para isso, como aconteceu em julho de 1936, os povoados anarquistas se mostraram perfeitamente capazes de realizar uma "revolução clássica", "tomando o poder das mãos das autoridades locais, dos policiais e dos proprietários de terras".
Em 1969 Hobsbawm faz outro balanço do movimento anarquista, que, ao mesmo tempo em que conserva uma distância crítica, não deixa de constituir homenagem calorosa que tem poucos equivalentes entre os escritos saídos da pena de um historiador comunista.
O anarquismo é "o sonho intransigente e louco que todos compartilhamos, mas que poucos homens, excetuando os espanhóis, alguma vez tentaram realizar, mesmo que isso significasse correr o risco da derrota total e de reduzir o movimento dos trabalhadores à impotência. Seu mundo era o mundo em que os homens são regidos puramente pelas exigências da consciência moral; onde não existe pobreza nem governo nem prisões nem polícia; onde não há outra obrigação e disciplina senão aquelas ditadas pela luz interior; onde não existem outros laços sociais senão os da fraternidade e do amor; onde não há mentiras nem propriedade nem burocracia". Devemos enxergar nessa homenagem surpreendente a influência do espírito de Maio de 1968 sobre o historiador?
O outro movimento milenarista revolucionário estudado por Hobsbawm é o das ligas camponesas da Sicília, que, a seus olhos, apresenta um caráter exemplar, na medida em que se trata de um movimento agrário "primitivo" que se torna "moderno" pela adesão ao socialismo e ao comunismo. Como na Andaluzia, que guarda semelhanças notáveis com a Sicília, os camponeses se revoltaram no final do século 19 contra a introdução de relações capitalistas na zona rural, relações essas cujas consequências foram agravadas pela depressão agrária mundial dos anos 1880. O movimento tomou forma com a fundação e expansão das ligas camponesas, geralmente sob direção socialista, seguida de levantes e greves numa escala que assustou o governo italiano, levando-o a recorrer à força militar para sufocar o perigo.
Esse movimento era "primitivo" e milenarista na medida em que o socialismo pregado pelas ligas era, aos olhos dos camponeses sicilianos, uma nova religião, a verdadeira religião do Cristo -traída pelos sacerdotes aliados dos ricos- que anunciava a chegada de um mundo novo, sem pobreza, fome e frio, segundo a vontade de Deus. Em suas manifestações, carregavam crucifixos e imagens santas, e o movimento, que contava com importante participação de mulheres, se alastrou em 1891-94 como uma epidemia: as massas camponesas eram conduzidas pela crença messiânica na iminência do surgimento de um novo reinado de justiça. Ao mesmo tempo, como mostram vários depoimentos, "não havia dúvida de que o que os camponeses queriam era uma revolução, uma sociedade nova, igualitária e comunista".
Apesar da derrota sofrida em 1894, graças às práticas organizacionais modernas dos socialistas, movimentos camponeses permanentes puderam ser constituídos em certas regiões da Sicília, tendo sido herdados pelo movimento comunista após a Grande Guerra. A história da vila de Piana dei Greci ilustra essa continuidade. Epicentro das revoltas do final do século 19, nos anos 50 do século 20 ainda era um reduto comunista: "Seu entusiasmo milenarista original se metamorfoseou em algo mais durável: uma fidelidade permanente e organizada a um movimento social-revolucionário moderno". Para Hobsbawm, a experiência de Piana mostra que "o milenarismo não está condenado a ser um fenômeno temporário, mas pode, sob condições favoráveis, ser o fundamento de uma forma de movimento permanente e extraordinariamente forte".
Em outras palavras, o milenarismo não deve ser visto unicamente como "uma sobrevivência comovente de um passado arcaico", mas como uma força cultural que permanece ativa, sob outra forma, nos movimentos sociais e políticos modernos. A conclusão que o historiador propõe ao final de seu capítulo dedicado às ligas camponesas sicilianas possui alcance histórico, social e político: "Quando é integrado a um movimento moderno, o milenarismo pode não apenas se tornar politicamente eficaz, como fazê-lo sem perder essa fé incandescente num mundo novo e essa generosidade de emoção que o caracterizam". Essa observação pode ser vista como a "moral da história" do conjunto de escritos de Hobsbawm sobre o milenarismo e as revoltas primitivas.
Parece-me que Hobsbawm abriu aqui um caminho de pesquisa apaixonante, não apenas para historiadores, mas também para sociólogos ou antropólogos políticos, estudiosos dos fenômenos atuais. Citaria apenas dois exemplos tirados de meu próprio campo de pesquisa: o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), de Chiapas (México), e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Brasil. Ambos são movimentos camponeses de protesto (e resistência) contra a modernização capitalista, ambos possuem componentes milenaristas que os aproximam dos fenômenos estudados pelo historiador inglês e ambos são movimentos fundamentalmente modernos por seus programas, suas reivindicações, suas práticas e suas formas de organização.
O EZLN nasceu da fusão do guevarismo (que não deixa de ter uma dimensão milenarista) de um punhado de militantes urbanos com a revolta "arcaica" de comunidades indígenas maias e com o messianismo cristão das comunidades de base (fundadas nos anos 70 pelo bispo de Chiapas, monsenhor Samuel Ruiz), sob a égide suprema da legenda milenarista de Emiliano Zapata. O resultado desse explosivo coquetel político-cultural e sociorreligioso foi uma das rebeliões camponesas mais originais dos anos 90.
O levante zapatista de janeiro de 1994 foi dirigido contra a opressão secular dos indígenas maias pelas autoridades e proprietários de terra, mas foi motivado diretamente pelas medidas de modernização neoliberal do governo federal: a privatização das comunidades rurais ("ejidos") consagradas pela Revolução Mexicana e o acordo de livre comércio com os EUA (Nafta), que ameaçam acabar com o tradicional cultivo de milho das comunidades indígenas.
O movimento zapatista se distingue também por um componente libertário que se manifesta tanto na autogestão das vilas quanto em sua recusa em jogar o jogo político e até mesmo em visualizar a possibilidade da tomada do poder.
Quanto ao MST, que tem suas raízes socioculturais na Pastoral da Terra da Igreja Católica, nas comunidades de base e na Teologia da Libertação, ele também se caracteriza por um misto espantoso de religiosidade popular, revolta camponesa "arcaica" e organização moderna, na luta radical pela reforma agrária e, a longo prazo, por uma "sociedade sem classes". Esse movimento, de forte componente emocional, "místico" -é o termo que utilizam os próprios militantes para designar o estado de espírito dos participantes- ou "milenarista" (no sentido mais amplo do termo), reúne centenas de milhares de camponeses, meeiros e trabalhadores agrícolas e tornou-se hoje o mais importante movimento social do Brasil, a principal força de contestação da política de modernização neoliberal empreendida por sucessivos governos brasileiros.


Michael Löwy é cientista político, professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor de "Evolução Política de Lukács" (ed. Cortez) e "Redenção e Utopia" (Cia. das Letras).
Tradução de Clara Allain.


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