São Paulo, domingo, 01 de abril de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Novo romance da inglesa A.S. Byatt ironiza as pretensões de um biógrafo

A vida como ela foi

Richard Eder
especial para "The NYT Book Review"

Um livro como este, feito de ecos e colcha de retalhos...". No meio dos agradecimentos, a frase de A.S. Byatt nos leva a identificar a bela desordem de "The Biographer's Tale" (A Fábula do Biógrafo). Estávamos próximos de identificá-la nós mesmos -dependendo, é claro, de estarmos navegando a esmo pela colcha de retalhos ou sendo seduzidos pelos ecos.
"The Biographer's Tale" é uma fábula literária da casa, uma casa dividida por uma briga tripartite entre os teóricos críticos, os acadêmicos e os praticantes da arte de escrever -poetas, dramaturgos, ficcionistas. Byatt, crítica e ensaísta sagaz, mas, em seu íntimo, ficcionista, não nos deixa em dúvida quanto às notas que atribui a cada parte: dez para os escritores, 2,5 para os acadêmicos e abaixo de zero para os teóricos.
As fábulas empregam protagonistas que são todos contornos e tons nítidos, polidos até alcançarem um brilho instrutivo dificilmente visto em outros tipos de ficção contemporânea. O protagonista de Byatt é o candidato a acadêmico Phineas G. Nanson, "um homem muito pequeno..., mas perfeitamente formado". O progresso desse peregrino literário diminuto o leva, em poucas páginas cômicas, do inferno da teoria professoral aos verdejantes e agradáveis campos dos fatos professorais -no caso em pauta, a pesquisa biográfica.
Passo a passo, porém, esses campos vão se transformando num purgatório de depressão, sem caminho de saída. E isso se aplica também ao leitor. Pouco a pouco, Phineas vai subindo ao paraíso da ficção (e nós o acompanhamos), com fatos redondos, reluzentes e inventados, duas belas mulheres com as quais fazer amor alternadamente e a fanfarra do escrever atordoado.
Phineas faz sua entrada, todo confuso, com sua tese de pós-graduação pós-estruturalista. Ele a intitula "Personas do Desejo Feminino nos Romances de Ronald Firbank, E.M. Forster e Somerset Maugham". Nenhuma das duas coisas é encontrada em abundância na obra de qualquer um dos três escritores, fato que Byatt, brincando conosco, espera que já saibamos. Logo no início, Phineas já leva um tombo da teoria e da tese.
Sua conversão se dá num seminário literário em que o palestrante, quando o conteúdo do que diz é contestado, afirma que "as imprecisões podem ser classificadas como parte inevitável da incerteza pós-moderna, do jogo pós-moderno -uma das duas coisas ou ambas". Mas a mãe de Phineas acaba de morrer, fato que não admite imprecisão ou classificação.
Fugindo do academicismo novo para o velho, Phineas termina nas mãos servidoras de malte do colossal Ormerod Goode, um especialista em runas viquingues, de preferência obscenas. Sob seus auspícios (que serão retirados pouco depois, deixando Phineas sem patrono e sem uísque), o ex-teórico começa a escrever a biografia de outro acadêmico de nome esdrúxulo, o falecido Scholes Destry-Scholes. Este é autor de um relato em três volumes sobre a vida e obra de sir Elmer Bole, aventureiro, polímata e pornógrafo vitoriano. Fanfarrão que tem mulheres simultâneas na Turquia e na Inglaterra, Bole é um segundo sir Richard Burton -que o supera, é claro, em erotismo, aventuras, disfarces e conhecimentos.
A biografia de um biógrafo -o que poderia ser mais repletos de fatos e mais diferente dos devaneios anteriores de Phineas? Em seu "magnum opus", Destry-Scholes fez questão de aprender mais sobre a dúzia de áreas estudadas pelo sujeito de sua biografia do que o próprio sujeito sabia. Melhor de tudo: sua pesquisa gigantesca (ou melhor, a paródia cômica de pesquisa que Byatt apresenta) foi reunida numa obra-prima de clareza e abrangência narrativas. É um farol iluminado a atrair o novo Phineas, mas ele tropeça nas pedras que pontilham o caminho do biógrafo. No início, quase não há material: algumas cartas prosaicas, a cópia de uma palestra. Ele visita o local onde seu sujeito nasceu -é uma casa geminada inteiramente comum, que a sua timidez o impede de conhecer por dentro.
As pedras dão lugar a abismos -profundos, infinitos, escuros. Da escassez de material, Phineas passa para o excesso, e é tudo altamente confuso. Três manuscritos breves aparecem: as anotações e meditações inclassificáveis de Destry-Scholes sobre o grande taxonomista biológico Carl Lineu, sobre Francis Galton, primo de Charles Darwin, inventor da datiloscopia e de uma controversa teoria da eugenia, e sobre o dramaturgo Ibsen.
Byatt conferiu a cada um dos manuscritos um tipo de fascínio diferente. Phineas está totalmente confuso. Que tipo de obra Destry-Scholes planejava? Que ligação concebível poderia existir entre os três fragmentos? Quanto era verdadeiro e quanto era inventado?
O candidato a biógrafo se vê perplexo com esse vislumbre de seu sujeito, um biógrafo que redige algo que parece ser uma metabiografia. Ou será uma metaficção? Será que qualquer coerência possível numa biografia depende de o escritor impor a seus fatos algo como um padrão fictício? Sejam quais forem os paradoxos e as derivações literárias de Byatt, ela é contadora de histórias antes de ser intelectual (ao inverso, talvez, de Susan Sontag). E "The Biographer's Tale" é, sobretudo, uma história.
Lutando em meio a esse atoleiro todo, Phineas é uma figura memorável -em parte Cândido, em parte o Bom Soldado Schweik das guerras culturais. Aquilo que é estranhamente vivo eleva este livro e seus leitores, erguendo-os acima de suas confusões próprias.


Tradução de Clara Allain.



The Biographer's Tale
305 págs., US$ 24 de A.S. Byatt. Ed. Alfred A. Knopf (EUA).




Texto Anterior: + livros: Pela ótica dos adversários
Próximo Texto: José Simão: Hoje é dia do Rubinho Teletubbie!
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.