São Paulo, domingo, 01 de abril de 2007

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A carne do mundo

A crítica Julia Kristeva decepciona ao perseguir o "gênio feminino" da escritora francesa Colette

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que se pode esperar do encontro entre duas autoras tão enamoradas de sua escrita quanto a romancista Colette e a psicanalista Julia Kristeva? Um livro sublime? Ou pretensioso?
O terceiro volume que Kristeva dedica ao "gênio feminino" (depois de Hannah Arendt e Melanie Klein) é, na pior das hipóteses, enjoativo.
Ou, na melhor, para os admiradores de Kristeva (não necessariamente os de Colette), um hino à feminilidade a que não faltam clichês associados ao gênero.
Sidonie-Gabrielle Colette nasceu na Borgonha em 1873 e morreu em Paris com 81 anos, consagrada como grande estilista da língua francesa.
Foi um monstro das letras e um fenômeno de massa. Vários de seus romances, desde a série inaugural dos Claudine, foram best-sellers, ao mesmo tempo em que seu estilo foi reconhecido por gente do porte de Proust, Cocteau, Sartre e Simone de Beauvoir.
Escreveu a vida toda, sem nunca ter tido a ambição de ser um gênio da literatura. Casada aos 19 anos com o quarentão mulherengo Willy, com quem teve sua iniciação erótica, Colette começou a escrever para superar uma suposta depressão decorrente das inúmeras traições do marido.
Os primeiros romances foram assinados com o nome de Willy, que tinha faro editorial e gosto literário. Só em 1923, já separada duas vezes, Colette passou a assinar sua obra. A partir de então, sua escrita foi motivada acima de tudo pela "ambição louca de ganhar a vida por si mesma, no teatro e na literatura".
A jovem provinciana adaptou-se depressa à vida parisiense. Descobriu que era mais prazeroso seduzir as amantes de Willy do que adoecer de ciúmes.
Casou-se pela segunda vez em 1911: "Esse desposamento é seguramente o gesto mais indesculpável que o medo obteve de mim, e pelo qual não me perdôo".
A seguir (para vingar-se?), tomou como amante o filho adolescente do marido -aventura que lhe rendeu os excelentes "Chéri" e "La Fin de Chéri" [O Fim de Chéri].
No caso de Colette, em que a escrita se mistura a tal ponto com a vida e a vida com o mito, é grande a tentação de cometer o crime de lesa-literatura de confundir o eu lírico com o sujeito-autor.
Kristeva não poupa o leitor de longas passagens da psicanálise (kleiniana) aplicada ao gênio de Colette -ou à narradora dos romances. Mas a romancista desautorizaria sua biógrafa-analista: "Vocês imaginam, ao me ler, que eu faço meu retrato? Paciência: é somente meu modelo".
O gênio (feminino?) dessa escritora que admitia sem pudores seu "hermafroditismo mental" não tinha nada de feminista.
Colette justificou sua omissão durante a ocupação da França declarando que "não compete a uma mulher refletir sobre a guerra". Casada com um judeu, assistiu em silêncio às covardias e crimes de Vichy, sem protestar, e seguiu escrevendo para várias revistas colaboracionistas.
Seu feminismo involuntário dirigiu-se contra os aprisionamentos do amor romântico.
"Uma das grandes banalidades da existência, o amor, retira-se da minha (...). Saídos de lá, nos damos conta de que todo o resto é alegre, variado, numeroso".
Julia Kristeva defende que o gênio de Colette estaria na arte de abordar diretamente o real -ou a "carne do mundo", termo que a biógrafa repete à exaustão- como se fosse possível escrever sem a mediação do falo.
Crê também que a sensualidade excessiva, infantil e voraz do texto de Colette tocaria o "Ser". Só que o ser de Colette, desprovido da maiúscula heideggeriana, reside nas pequenas coisas. Seu estilo nos aproxima, infinitamente, das miudezas do mundo.
Se a sua escrita toca o ser, é pela sua capacidade de descrever as cores, os cheiros, a música quase inaudível da natureza, a luz das estações, os sabores, os prazeres polimorfos da infância sempre revisitada.
Esse "amor mundi" declaradamente antimetafísico é descrito com humor em uma passagem de "Claudine en Ménage" [Claudine Casada], em que um jovem escritor (baseado em Proust) se aproxima da heroína dizendo-se admirador de sua "alma de Narciso cheia de volúpia e amargura" -ao que Colette-Claudine responde: "O senhor divaga. Eu tenho a alma cheia apenas de feijões vermelhos e de pequenos toucinhos defumados".
É intrigante que Kristeva não se dê conta de quanto essa passagem desautoriza sua própria mistificação.

MARIA RITA KEHL é psicanalista, autora de "Ressentimento" (Casa do Psicólogo).

O GÊNIO FEMININO 3
- Colette


Autora: Julia Kristeva
Tradução: Rejane Janowitzer
Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/3525-2000)
Quanto: R$ 59,50 (496 págs.)



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