São Paulo, domingo, 01 de abril de 2007

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A retórica nacional dos palcos

"Revista Dramática" traz crítica teatral de SP do século 19, por nomes como João Caetano

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Otelo? Uma "hipérbole ridícula". Os personagens de Molière? "Estúpidas exagerações". Quanto aos textos de Corneille e Racine, seu verdadeiro mérito "consiste em provocar o sono".
O poeta romântico Fagundes Varela tinha 19 anos quando escreveu essas linhas, para a "Revista Dramática", em 1860. Tratava-se de uma publicação semanal, que durou poucos meses, editada em São Paulo pelo estudante de direito José Joaquim Pessanha Póvoa (1837-1904).
A edição fac-similar de todos os 22 números dessa revista, pela Edusp, é um luxuoso presente para todo interessado na história do teatro brasileiro.
Infelizmente, nem todos os textos da revista possuíam o azedume polêmico -ou o vigor adolescente- do manifesto de Fagundes Varela em favor do "teatro moderno".
Militava-se, é certo, por um estilo mais natural de representar e por uma dramaturgia que refletisse melhor as realidades nacionais. O tom da maioria das contribuições é, contudo, sentencioso, vago, inapelavelmente antiquado.

"Projeto cultural"
A ortografia da época acentua, sem dúvida, essa impressão. Condena-se, por exemplo, "a inveja, esse vampiro de natureza hybrida", que "tem destruido, em todos os tempos, todos os germens fecundadores!".
As críticas aos raros espetáculos em cartaz são antecedidas de vastas considerações sobre o gênio de Gutemberg ou o caminhar da civilização.
Apesar das generalidades, não faltava um "projeto cultural", como se diz, aos colaboradores da revista.
Ao mesmo tempo em que publicavam as considerações de João Caetano (1808-63) a respeito da boa arte de representar, criticavam o famoso ator português pela sua gestão como empresário à frente do Teatro São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro: não se representavam, ali, dramas brasileiros.

Pensamento nobre
"Váe um auctor que não é bemaventurado fallar ao empresario: leva-lhe a sua composição; lê de princípio a fim: o empresario lembra-se que é actor: representa com o escriptor: promete mandar tirar as partes do seu drama nessa mesma tarde, ensaiá-lo no dia seguinte e entregá-lo á expectação do publico d" ahi a tres dias: sahe o auctor mais do que satisfeito: o empresario fecha-lhe a porta, toma o drama de sobre a mesa e entrega-o... à poeira e às traças do que chama o seu archivo. O archivo do actor-empresario é um dos grandes flagellos de nossas letras."
Assim reclamava "Tacitus" (pseudônimo do acadêmico de direito Salvador de Mendonça), enquanto outros números da revista elogiavam, tanto quanto possível, as produções brasileiras em cena.
"O Noviço", de Martins Pena, "soffrivelmente desempenhado pelo Snr. Henrique", fez com que "risadas, signaes de contentamento" se desenhassem "no rosto da Platéa".
"As Asas de um Anjo", comédia de José de Alencar, demonstra que "o pensamento do auctor é nobre, e rodeado de tantas bellezas que o elevam á cathegoria de um escriptor philosopho, que tem meditado em face dos prejuizos sociaes, que tem observado a longas vistas esse torvelinho de paixões mundanas, para de improviso rasgar o véo fusco e nodoado, que se antepõe a tantas miserias de nossas familias, para cuspir na face lívida da estatua da perdição!"
Dos vôos retóricos, a crítica por vezes desce a pormenores da encenação: em "Modesta", drama português em dois atos, o senhor Mattos "enterrou o seu papel", entre outras razões porque "ao galan dá-se -bigodes e peras delicadas, e não bigodes de um granadeiro francez."

Temas atuais
Sobre os hábitos de encenação, o repertório e até a vida musical paulistana em meados do século 19, a "Revista Dramática" dá certamente muita informação para os pesquisadores.
O leitor não especializado pode reconhecer, ao mesmo tempo, temas que teriam larga posteridade na cultura brasileira: a reivindicação constante de patrocínio oficial; a esperança num estado de futura plenitude artística; a comparação obsessiva com os centros culturais do mundo civilizado; e, por fim, o elogio àqueles artistas de talento, como um certo musicista Nicolau, cuja vocação, porém, "é omissa". "Mais estudo; mais producto é o que pedimos". Deveras.

REVISTA DRAMÁTICA


Editora: Edusp (tel. 0/xx/11/3091-40 08)
Quanto: R$ 97 (132 págs.)



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