São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dédalo

NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha

D é para Dédalo, mestre da criação e do engenho, desafiando os limites da natureza, iludindo os sentidos e senhor do impossível. Sua grande criação foi o labirinto, construído para aprisionar o Minotauro, mas onde ele mesmo acabou se perdendo. O que o levou a projetar as asas com que seu filho Ícaro sonhou alcançar o Olimpo, apenas para acabar se precipitando das alturas da arrogância nos abismos da Desilusão. Seu Destino portanto vincula o Desenho ao Desastre.
D é para os Deuses Deméter e Dioniso, fontes dos mistérios e personagens cruciais do universo pagão. Uma criou o pão, objeto do cultivo laborioso, substância nutritiva e esteio da civilização. O outro introduziu o vinho, instrumento do prazer, dádiva da intoxicação e provedor do êxtase. Ela ademais inspira a arte dos tecelões, dos urdidores de tramas, daqueles que compõem telas inconsúteis e bordados intrincados. Ele, ao contrário, induz à soltura das amarras, aos excessos da imaginação e dos instintos, à dissolução dos limites e das identidades. Uma engendra o Discernimento, o outro desencadeia o Desejo.
D é para a Dança, expressão suprema do ritmo, inspiração para as voltas e reviravoltas sem fim do labirinto, arte de se perder transitando para outros mundos, linguagem corporal com a qual eram transmitidos os mistérios impronunciáveis de Eleusis. Para as bacantes, o bater dos tambores manifestava o riso da terra. A dança suscitava a recitação espontânea dos Ditirambos, de métrica rigorosa e cadência musical. Desse encontro da coreografia com a poesia e a música, nasceu o Drama.
D é para o Duelo, ritual alegórico do confronto com o Dragão, símbolo do caos, cujas formas podem ser a destrutiva do Demônio ou a criativa do Demiurgo. Eles se revelam na disposição combativa dos tigres ou dos gaúchos, na força inelutável das garras aguçadas ou nos punhais regidos por severos códigos de honra. Na estupidez bárbara dos Ditadores ou nos rodopios sublimes dos Dervixes.
D é para a Dúvida, o Desprendimento inquisitivo, misto de curiosidade e de riso. É a lição aprendida do outro mestre, Demócrito de Abdera, a sabedoria das Descontinuidades e das Disparidades. Para além e para aquém das regularidades positivas, opera a gaia ciência da Dissensão, da Desconformidade e dos muitos Desvios.
D é para o "Deutsches Requiem", que conta a história desse David Jerusalém, poeta sutil, perseguido por um nazista burocrático. Na sua paixão pelas múltiplas, complexas e delicadas Diferenças de que é feito o mundo, ele se identifica com o grande místico persa D'jellal ed'din Rùmi, criador da seita dançante, esse também vítima da intolerância zelosa das identidades consolidadas.
D é para o Duplo, Divisão esquizóide, "Dèrive" pelo espaço afetivo da cidade, em que o eu encontra casualmente um tu, que passa a tratar como um ele, até conceder que se trata de um nós. Num jogo de espelhos e reflexos, o poeta se Despersonaliza, a ponto de perceber que seu verdadeiro ser é apenas um sonho que um escritor argentino teve um dia, no quarto 19 de um hotel da rua Maipú, em Buenos Aires.
D é para Distopia, universo de mundos imaginários, em parte Desertos nos quais vagam os fantasmas do poeta, noutra parte a sonhada Dinamarca de seus ancestrais míticos. Territórios visitados por Dante e pelo Dom Quixote, por De Quincey, pelo Dodô de Lewis Carroll e o Domecq, seu alter ego quando possuído pelo espírito de Bioy Casares.
D é para Diários, Diretórios, Digressões e Dicionários, esses labirintos de memórias, nomes, idéias e palavras, em que toda busca termina em hipnótico Descaminho.


Nicolau Sevcenko é professor de história da USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras), entre outros.


Texto Anterior: Aurora F. Bernardini: Caminho
Próximo Texto: João Adolfo Hansen: Espelho
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.