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Dédalo
NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha
D é para Dédalo, mestre da criação e do engenho, desafiando os
limites da natureza, iludindo os
sentidos e senhor do impossível.
Sua grande criação foi o labirinto,
construído para aprisionar o Minotauro, mas onde ele mesmo
acabou se perdendo. O que o levou a projetar as asas com que seu
filho Ícaro sonhou alcançar o
Olimpo, apenas para acabar se
precipitando das alturas da arrogância nos abismos da Desilusão.
Seu Destino portanto vincula o
Desenho ao Desastre.
D é para os Deuses Deméter e
Dioniso, fontes dos mistérios e
personagens cruciais do universo
pagão. Uma criou o pão, objeto
do cultivo laborioso, substância
nutritiva e esteio da civilização. O
outro introduziu o vinho, instrumento do prazer, dádiva da intoxicação e provedor do êxtase. Ela
ademais inspira a arte dos tecelões, dos urdidores de tramas, daqueles que compõem telas inconsúteis e bordados intrincados. Ele,
ao contrário, induz à soltura das
amarras, aos excessos da imaginação e dos instintos, à dissolução
dos limites e das identidades.
Uma engendra o Discernimento,
o outro desencadeia o Desejo.
D é para a Dança, expressão suprema do ritmo, inspiração para
as voltas e reviravoltas sem fim do
labirinto, arte de se perder transitando para outros mundos, linguagem corporal com a qual
eram transmitidos os mistérios
impronunciáveis de Eleusis. Para
as bacantes, o bater dos tambores
manifestava o riso da terra. A
dança suscitava a recitação espontânea dos Ditirambos, de métrica rigorosa e cadência musical.
Desse encontro da coreografia
com a poesia e a música, nasceu o
Drama.
D é para o Duelo, ritual alegórico do confronto com o Dragão,
símbolo do caos, cujas formas podem ser a destrutiva do Demônio
ou a criativa do Demiurgo. Eles se
revelam na disposição combativa
dos tigres ou dos gaúchos, na força inelutável das garras aguçadas
ou nos punhais regidos por severos códigos de honra. Na estupidez bárbara dos Ditadores ou nos
rodopios sublimes dos Dervixes.
D é para a Dúvida, o Desprendimento inquisitivo, misto de curiosidade e de riso. É a lição
aprendida do outro mestre, Demócrito de Abdera, a sabedoria
das Descontinuidades e das Disparidades. Para além e para
aquém das regularidades positivas, opera a gaia ciência da Dissensão, da Desconformidade e
dos muitos Desvios.
D é para o "Deutsches Requiem", que conta a história desse
David Jerusalém, poeta sutil, perseguido por um nazista burocrático. Na sua paixão pelas múltiplas,
complexas e delicadas Diferenças
de que é feito o mundo, ele se
identifica com o grande místico
persa D'jellal ed'din Rùmi, criador da seita dançante, esse também vítima da intolerância zelosa
das identidades consolidadas.
D é para o Duplo, Divisão esquizóide, "Dèrive" pelo espaço afetivo da cidade, em que o eu encontra casualmente um tu, que passa
a tratar como um ele, até conceder
que se trata de um nós. Num jogo
de espelhos e reflexos, o poeta se
Despersonaliza, a ponto de perceber que seu verdadeiro ser é apenas um sonho que um escritor argentino teve um dia, no quarto 19
de um hotel da rua Maipú, em
Buenos Aires.
D é para Distopia, universo de
mundos imaginários, em parte
Desertos nos quais vagam os fantasmas do poeta, noutra parte a
sonhada Dinamarca de seus ancestrais míticos. Territórios visitados por Dante e pelo Dom Quixote, por De Quincey, pelo Dodô de
Lewis Carroll e o Domecq, seu alter ego quando possuído pelo espírito de Bioy Casares.
D é para Diários, Diretórios, Digressões e Dicionários, esses labirintos de memórias, nomes,
idéias e palavras, em que toda
busca termina em hipnótico Descaminho.
Nicolau Sevcenko é professor de história da
USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras), entre outros.
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