São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Caminho

AURORA F. BERNARDINI
especial para a Folha

Para Jorge Luis Borges, os caminhos em geral se bifurcam, como é dito em um de seus contos mais famosos: "Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se bifurcam". A frase, do sábio Ts'ui Pên, é assim explicada pelo narrador: "Em todas as ficções, cada vez que um homem se vê diante de diferentes alternativas, ele opta por uma e elimina as outras, na do quase inextricável Ts'ui Pên , ele opta -simultaneamente- por todas" ("O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam").
Caminhos são também lugares "onde o que acontece não contamina as coisas, onde a irrealidade do que acontece pode ser um atributo do infernal". É o que se dá com Emma Zunz (no conto de mesmo nome), a caminho de sua sinistra vingança, que naquele dia "alcançaria a simplicidade dos fatos": "O homem conduziu-a a uma porta e depois a um turvo saguão e depois a uma escada tortuosa e depois a um vestíbulo e depois a um corredor e depois a uma porta que se fechou (...) Emma Zunz agora refugiava-se na vertigem (...) -Agora devo fugir, pensou Emma, tomar outro caminho".
Quem realiza um ato atroz deve imaginar já tê-lo cumprido, deve impor-se um futuro tão irrevogável quanto o passado. Além de tortuosos, os caminhos de Borges tendem a ser labirínticos: "O úmido caminho ziguezagueava como os de minha infância. Nele opto -simultaneamente- por todos (...) Porém, desci. Por um caminho caótico de sórdidas galerias cheguei a uma ampla câmara circular, apenas visível. Havia nove portas naquela cave, oito davam para um labirinto que, enganosamente, desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara circular, igual à primeira. Ignoro o número total das câmaras, minha desventura e minha ansiedade multiplicavam-nas (...) Um labirinto é uma casa lavrada para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a este objetivo", diz o narrador de "O Imortal", "mas na Cidade a arquitetura carecia de objetivo. Abundavam o corredor sem saída, a alta janela inalcançável, a aparatosa porta que dava para um poço, as incríveis escadas invertidas ou as que morriam sem chegar a parte alguma (...) Não me lembro das etapas do meu caminho de volta. Sei unicamente que não me abandonava o temor de que, ao sair do último labirinto, me rodeasse outra vez a nefanda Cidade. De nada mais posso lembrar. Esse esquecimento, agora insuperável, foi quiçá voluntário".
"Mas esquecer o passado não é modificar um único fato: é anular suas consequências, os caminhos que tendem a ser infinitos", explica o narrador de "A Outra Morte". Em "Os Teólogos", para a novíssima seita dos monótonos, os caminhos da história são um círculo em que "nada há que não tenha sido e que não venha a ser".
Para o humanista de "A Busca de Averróis", escrevendo com lenta segurança na beatitude da fresca e grande casa que o rodeava, do arrulhar dos pombos e do invisível rumor da fonte, o caminho da incredulidade leva ao desaparecimento: "Sentiu sono, sentiu um pouco de frio. Tirou o turbante, olhou-se num espelho de metal. Não sei o que viram seus olhos, porque nenhum historiador descreveu os traços de seu rosto. Sei que desapareceu bruscamente como fulminado por um fogo sem luz, e com ele desapareceram a casa e a fonte invisível e os livros e os manuscritos e as pombas e as muitas escravas de cabelo negro e a trêmula escrava de cabelo ruivo e Farach e Albucásim e os roseirais e talvez o Guadalquivir". Mas para o biógrafo de Tadeo Isidoro Cruz, o homem que não sabia ler ("Biografia de Tadeo Isidoro Cruz - 1829-1874"), quaisquer caminhos, por longos e complicados que sejam, convergem, no destino de um homem, para um único ponto: "O momento em que o homem sabe para sempre quem é".


Aurora Fornoni Bernardini é professora de teoria literária da USP e autora de "O Futurismo Italiano" (Perspectiva).


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