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Felicidade
LEYLA PERRONE-MOISÉS
especial para a Folha
Em seu "Diálogo com Victoria
Ocampo" (1969), Borges declarava que seus pais haviam formado
um casal feliz e que guardava um
remorso com relação a eles: o de
ter sido, por muito tempo, um homem infeliz. Arrependimento
que ele consignou, mais tarde,
num poema: "Cometi o pior dos
pecados/ Que um homem pode
cometer. Não fui/ Feliz. Meus pais
me geraram para o jogo/ Arriscado e formoso da vida,/ Para a terra, a água, o mar, o fogo./ Defraudei-os. Não fui feliz" ("El Remordimiento", 1976).
Numa entrevista um pouco
posterior, cujo texto perdi, mas
cuja memória guardei, alguém lhe
perguntou como ocupava seus
dias. O escritor se encontrava então naquela fase de sua vida em
que estava divorciado e havia perdido a mãe; já era famoso, mas
não ainda célebre. Seu cotidiano
era o de um homem que envelhecia, solitário e cego. Pois bem,
Borges deu esta resposta surpreendente: "Fico sentado na penumbra, lembro-me dos livros
que li, das coisas que vi, das músicas que ouvi, e a felicidade me visita várias vezes por dia". Essa linda resposta também está num
poema: "O homem que está cego/
sabe que já não poderá decifrar/
os formosos volumes que manuseia/ e que não o ajudarão a escrever/ o livro que o justificará perante os outros,/ mas a tarde que é
talvez de ouro/ sorri ante o curioso destino/ e sente essa felicidade
peculiar/ das velhas coisas queridas" ("Junio", 1968).
No prólogo escrito em 69 para a
reedição de seu "Fervor de Buenos Aires", ele comentava: "Naquele tempo, eu buscava os entardeceres, os subúrbios e a infelicidade; agora, as manhãs, o centro e
a serenidade". Borges já era então
mais do que um escritor; era um
homem feliz, um sábio. Sabedoria
expressa em seu "Evangelho"
apócrifo: "Felizes os que guardam
na memória as palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias. Felizes os amados e os amantes e os que podem
prescindir do amor. Felizes os felizes". E num depoimento: "Ao cabo dos anos observei que a beleza,
como a felicidade, é frequente.
Não passa um dia sem que estejamos, um instante, no paraíso".
A felicidade maior, Borges a encontrou nas palavras. Fazendo o
balanço de sua vida, em 1980, ele
dizia: "Sempre senti que meu destino era, antes de tudo, um destino literário; isto é, que me aconteceriam muitas coisas más e algumas coisas boas. Mas sempre soube que tudo isso, com o passar do
tempo, se converteria em palavras, sobretudo as coisas más, já
que a felicidade não precisa ser
transmudada: a felicidade é seu
próprio fim" ("Sete Noites").
Felicidade de ler. Borges foi essa
coisa rara, um crítico feliz. Um
grande autor, para ele, era um dispensador de alegrias; por isso ele
louvava e agradecia -a Dante, a
Shakespeare, a De Quincey. Seu
prazer era eclético. Os "novelões
policiais de Eduardo Gutierrez",
"as fantasias de Júlio Verne", as
"Mil e Uma Noites", Kipling, Oscar Wilde, H.G. Wells, todos foram para ele razões de gozo e gratidão. Seu segredo consistia em
manter-se na posição de leitor:
"Que outros se jactem das páginas
que escreveram; eu me orgulho
das que li" ("Un Lector", poema
de 1969). Felicidade de escrever:
"Converter o ultraje dos anos/
Numa música, num rumor e num
símbolo,/ Ver na morte um sonho, no ocaso/ Um triste ouro, tal
é a poesia/ Que é imortal e pobre.
A poesia/ Volta como a aurora e o
ocaso" ("Arte Poética").
Quem teve a ocasião de ver Borges de perto, em seus últimos
anos, sabe que ele era um homem
feliz, interessado em tudo e em todos, sorrindo para que aqueles
que ele não via vissem o seu sorriso. Poder continuar lendo Borges
é uma felicidade que não cessaremos de lhe agradecer.
Leyla Perrone-Moisés é professora emérita
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e autora de "Flores da Escrivaninha" e "Altas Literaturas" (Companhia
das Letras), entre outros.
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