São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Felicidade

LEYLA PERRONE-MOISÉS
especial para a Folha

Em seu "Diálogo com Victoria Ocampo" (1969), Borges declarava que seus pais haviam formado um casal feliz e que guardava um remorso com relação a eles: o de ter sido, por muito tempo, um homem infeliz. Arrependimento que ele consignou, mais tarde, num poema: "Cometi o pior dos pecados/ Que um homem pode cometer. Não fui/ Feliz. Meus pais me geraram para o jogo/ Arriscado e formoso da vida,/ Para a terra, a água, o mar, o fogo./ Defraudei-os. Não fui feliz" ("El Remordimiento", 1976).
Numa entrevista um pouco posterior, cujo texto perdi, mas cuja memória guardei, alguém lhe perguntou como ocupava seus dias. O escritor se encontrava então naquela fase de sua vida em que estava divorciado e havia perdido a mãe; já era famoso, mas não ainda célebre. Seu cotidiano era o de um homem que envelhecia, solitário e cego. Pois bem, Borges deu esta resposta surpreendente: "Fico sentado na penumbra, lembro-me dos livros que li, das coisas que vi, das músicas que ouvi, e a felicidade me visita várias vezes por dia". Essa linda resposta também está num poema: "O homem que está cego/ sabe que já não poderá decifrar/ os formosos volumes que manuseia/ e que não o ajudarão a escrever/ o livro que o justificará perante os outros,/ mas a tarde que é talvez de ouro/ sorri ante o curioso destino/ e sente essa felicidade peculiar/ das velhas coisas queridas" ("Junio", 1968).
No prólogo escrito em 69 para a reedição de seu "Fervor de Buenos Aires", ele comentava: "Naquele tempo, eu buscava os entardeceres, os subúrbios e a infelicidade; agora, as manhãs, o centro e a serenidade". Borges já era então mais do que um escritor; era um homem feliz, um sábio. Sabedoria expressa em seu "Evangelho" apócrifo: "Felizes os que guardam na memória as palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias. Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor. Felizes os felizes". E num depoimento: "Ao cabo dos anos observei que a beleza, como a felicidade, é frequente. Não passa um dia sem que estejamos, um instante, no paraíso".
A felicidade maior, Borges a encontrou nas palavras. Fazendo o balanço de sua vida, em 1980, ele dizia: "Sempre senti que meu destino era, antes de tudo, um destino literário; isto é, que me aconteceriam muitas coisas más e algumas coisas boas. Mas sempre soube que tudo isso, com o passar do tempo, se converteria em palavras, sobretudo as coisas más, já que a felicidade não precisa ser transmudada: a felicidade é seu próprio fim" ("Sete Noites").
Felicidade de ler. Borges foi essa coisa rara, um crítico feliz. Um grande autor, para ele, era um dispensador de alegrias; por isso ele louvava e agradecia -a Dante, a Shakespeare, a De Quincey. Seu prazer era eclético. Os "novelões policiais de Eduardo Gutierrez", "as fantasias de Júlio Verne", as "Mil e Uma Noites", Kipling, Oscar Wilde, H.G. Wells, todos foram para ele razões de gozo e gratidão. Seu segredo consistia em manter-se na posição de leitor: "Que outros se jactem das páginas que escreveram; eu me orgulho das que li" ("Un Lector", poema de 1969). Felicidade de escrever: "Converter o ultraje dos anos/ Numa música, num rumor e num símbolo,/ Ver na morte um sonho, no ocaso/ Um triste ouro, tal é a poesia/ Que é imortal e pobre. A poesia/ Volta como a aurora e o ocaso" ("Arte Poética").
Quem teve a ocasião de ver Borges de perto, em seus últimos anos, sabe que ele era um homem feliz, interessado em tudo e em todos, sorrindo para que aqueles que ele não via vissem o seu sorriso. Poder continuar lendo Borges é uma felicidade que não cessaremos de lhe agradecer.


Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de "Flores da Escrivaninha" e "Altas Literaturas" (Companhia das Letras), entre outros.


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