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Gnosticismo
LUIZ COSTA LIMA
especial para a Folha
A aproximação não estranhará
quem recorde as constantes referências do escritor a Basílides, as
eventuais a Carpócrates e a Valentino, bem como a nomeação direta da gnose e do gnosticismo na
primeira fonte clássica de conhecimento da seita, o "Adversus
Haereses", de Irineu. Ao fazê-las,
Borges não trapaceia. O resumo
da doutrina de Basílides em
"Uma Vindicação do Falso Basílides" é historicamente exato, e
tampouco inventado o conteúdo
da primeira referência aos gnósticos, conquanto inesperada, na
biografia de Evaristo Carriego:
"Não os assombra o mal, não nos
conduz a essa meditação de sua
origem, que os gnósticos resolveram diretamente com sua postulação de uma divindade minguante ou gasta, dedicada a improvisar este mundo com material adverso" ("Evaristo Carriego").
Mas como entender a importância por ele concedida a uma
leitura do cristianismo, logo tida
por herética, se nunca esteve em
pauta sua adesão religiosa? A partir de Hans Blumenberg ("Arbeit
am Mythos", 1979), lanço uma hipótese: ao passo que a constituição da teologia cristã impôs a seus
criadores a purificação do lastro
mítico que embasava a linguagem
bíblica, os gnósticos o mantiveram. Por isso, em vez de proverem uma visão moral do mundo,
que necessitava do conceito de liberdade, fornecem "a representação de uma luta cósmica".
Assim, não é a relação do homem com seu efetivo criador que
constitui a chave última de nosso
destino, pois somos frutos de uma
contenda pela qual não somos
responsáveis. O bem e o mal brigam sobre nossas cabeças e não
em nossos corações. O mundo
não é de nossa competência. Nossa competência está em dele nos
desligarmos. O vingativo e rigoroso Deus do Velho Testamento nada tem a ver com a figura do Deus
"alienus". Javé é concebido como
a encarnação da divindade inferior que nos criou. Livres de antemão da culpa, nosso papel consiste em descobrir o caminho que
nos desembarace do erro do qual
nascemos. E o terrível poder dos
atores que o provocaram inviabilizaria a constituição de um tribunal humano que os julgasse. A salvação humana consistiria, em suma, em escapar da catástrofe associada à matéria.
À manutenção do lastro mítico
dos gnósticos corresponde, como
assinalava Scholem ("A Cabala e
seu Simbolismo", tradução de
1978), sua importância para os
místicos judeus. Especialmente
para a Cabala, porque também ela
se opunha ao racionalismo teológico e favorecia uma leitura mítica
dos textos sagrados. Dado este pano de fundo, podemos pensar que
cabala e gnosticismo foram para
Borges relevantes como meios para sua ficção: "(...) não quero vindicar a doutrina, mas os procedimentos hermenêuticos ou criptográficos que a ela conduzem", dirá em "Uma Vindicação da Cabala"); relevantes para que se opusesse a uma tradução literária
fundada em um logos (palavra ou
razão) de estirpe antes iluminista
do que grega.
O pensamento iluminista se
propusera a extirpar toda a forma
de impregnação mítica. E o favor
concedido ao tempo como progresso e à história como campo
em que a razão se põe à prova e
avança. E, embora tempo e história hoje não contenham as mesmas identificações, no racionalismo contemporâneo permanece a
suspeita do mito. A gnose, em suma, oferece a Borges o pressuposto para uma nova fabulação, não
fundada na razão e no sentimento, muito menos na visão otimista
do tempo histórico. A marca
gnóstica nele permanece na negatividade que envolve o mundo
criado. O mundo é um erro, diziam os gnósticos. Afastada a via
da salvação que propunham, Borges lê o mundo como catástrofe.
Perante ela, a única resposta apropriada se torna a produção do assombro. Presente nos seus maiores relatos, como "O Imortal":
"Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens".
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor de teoria literária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autor de "Vida
e Mimesis" (Ed. 34), entre outros.
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