São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Gnosticismo

LUIZ COSTA LIMA
especial para a Folha

A aproximação não estranhará quem recorde as constantes referências do escritor a Basílides, as eventuais a Carpócrates e a Valentino, bem como a nomeação direta da gnose e do gnosticismo na primeira fonte clássica de conhecimento da seita, o "Adversus Haereses", de Irineu. Ao fazê-las, Borges não trapaceia. O resumo da doutrina de Basílides em "Uma Vindicação do Falso Basílides" é historicamente exato, e tampouco inventado o conteúdo da primeira referência aos gnósticos, conquanto inesperada, na biografia de Evaristo Carriego: "Não os assombra o mal, não nos conduz a essa meditação de sua origem, que os gnósticos resolveram diretamente com sua postulação de uma divindade minguante ou gasta, dedicada a improvisar este mundo com material adverso" ("Evaristo Carriego").
Mas como entender a importância por ele concedida a uma leitura do cristianismo, logo tida por herética, se nunca esteve em pauta sua adesão religiosa? A partir de Hans Blumenberg ("Arbeit am Mythos", 1979), lanço uma hipótese: ao passo que a constituição da teologia cristã impôs a seus criadores a purificação do lastro mítico que embasava a linguagem bíblica, os gnósticos o mantiveram. Por isso, em vez de proverem uma visão moral do mundo, que necessitava do conceito de liberdade, fornecem "a representação de uma luta cósmica".
Assim, não é a relação do homem com seu efetivo criador que constitui a chave última de nosso destino, pois somos frutos de uma contenda pela qual não somos responsáveis. O bem e o mal brigam sobre nossas cabeças e não em nossos corações. O mundo não é de nossa competência. Nossa competência está em dele nos desligarmos. O vingativo e rigoroso Deus do Velho Testamento nada tem a ver com a figura do Deus "alienus". Javé é concebido como a encarnação da divindade inferior que nos criou. Livres de antemão da culpa, nosso papel consiste em descobrir o caminho que nos desembarace do erro do qual nascemos. E o terrível poder dos atores que o provocaram inviabilizaria a constituição de um tribunal humano que os julgasse. A salvação humana consistiria, em suma, em escapar da catástrofe associada à matéria.
À manutenção do lastro mítico dos gnósticos corresponde, como assinalava Scholem ("A Cabala e seu Simbolismo", tradução de 1978), sua importância para os místicos judeus. Especialmente para a Cabala, porque também ela se opunha ao racionalismo teológico e favorecia uma leitura mítica dos textos sagrados. Dado este pano de fundo, podemos pensar que cabala e gnosticismo foram para Borges relevantes como meios para sua ficção: "(...) não quero vindicar a doutrina, mas os procedimentos hermenêuticos ou criptográficos que a ela conduzem", dirá em "Uma Vindicação da Cabala"); relevantes para que se opusesse a uma tradução literária fundada em um logos (palavra ou razão) de estirpe antes iluminista do que grega.
O pensamento iluminista se propusera a extirpar toda a forma de impregnação mítica. E o favor concedido ao tempo como progresso e à história como campo em que a razão se põe à prova e avança. E, embora tempo e história hoje não contenham as mesmas identificações, no racionalismo contemporâneo permanece a suspeita do mito. A gnose, em suma, oferece a Borges o pressuposto para uma nova fabulação, não fundada na razão e no sentimento, muito menos na visão otimista do tempo histórico. A marca gnóstica nele permanece na negatividade que envolve o mundo criado. O mundo é um erro, diziam os gnósticos. Afastada a via da salvação que propunham, Borges lê o mundo como catástrofe. Perante ela, a única resposta apropriada se torna a produção do assombro. Presente nos seus maiores relatos, como "O Imortal": "Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens".


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor de teoria literária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autor de "Vida e Mimesis" (Ed. 34), entre outros.



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