São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Idealismo

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
especial para a Folha

Herdado principalmente do leitor de Berkeley, Hume e Schopenhauer que é Macedonio Fernandez -"que (...) muerto sigue explicándome que la muerte es una falacia"- consiste na crença negativa na irrealidade do mundo, esta continuação da literatura fantástica.
Quando Italo Calvino em "Por que Ler os Clássicos" menciona o milagre estilístico da adjetivação borgiana -a "íntima faca na garganta", o "lento pó silencioso", a "tresnoitada luz", a "sincera porta", a "biblioteca cega"-, está designando, embora não o diga, o operador mínimo dessa fantástica, inscrita na letra mesma do texto. Como para mostrar o quanto o estilo é o homem.
Pela força da hipálage -analogia assombrosa, atribuição a uma palavra de algo logicamente só cabível para outra-, que é talvez o estilema de Borges, o suporte retórico à altura da tese do mundo como versão do mundo ou logosfera, já não há limites entre as coisas mais sólidas e as mais implausíveis. Seja "a bala que matou Francisco Borges" ou "O que não poder ser. O outro corno/ Do unicórnio".
Pois as surpreendentes simpatias que se estabelecem assim entre conceitos tão distantes, que só a arte da conjetura ilimitada os poderia articular, revertem toda a concretude em puro senso do infinito. Devastando o senso comum, em sublime canto paralelo, paródia, paradoxo. E obrigando o leitor a encontrar outro lugar na própria língua. Razão pela qual é simplesmente espantosa, digna de uma prestidigitação de Borges, a audiência do autor de "Ficções".
Do alcance dessa proposição da sobrenaturalidade -ou visão herética da natureza, aqui suposta fazer milagres, como em Espinosa, em que ela representa "o infinito mapa Daquele que é todas as suas estrelas"- outra marca escritural é o gênero preferencialmente investido pelo idealismo borgiano: "tale" contra "short story". O maravilhoso contra o razoável.
A modificação da realidade pelo sonho, a imitação da arte pela vida, em outras palavras, a suspensão da incredulidade recomendada por Coleridge, dando-se ali mesmo onde seria de esperar algo de mais materialmente palpável. Nos arrabaldes pobres da cidade, na própria cidade -Buenos Aires "é o dédalo crescente de luzes que divisamos do avião"- e no pampa dos "gauchos", essas personagens de modesta mitologia, saídas para culminar no conto "O Sul", o melhor Borges segundo o próprio Borges, da literatura do mesmo nome.


Leda Tenório da Motta é professora na Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), autora, entre outros, de "Lições de Literatura Francesa" (Imago).



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