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Idealismo
LEDA TENÓRIO DA MOTTA
especial para a Folha
Herdado principalmente do leitor de Berkeley, Hume e Schopenhauer que é Macedonio Fernandez -"que (...) muerto sigue explicándome que la muerte es una
falacia"- consiste na crença negativa na irrealidade do mundo,
esta continuação da literatura
fantástica.
Quando Italo Calvino em "Por
que Ler os Clássicos" menciona o
milagre estilístico da adjetivação
borgiana -a "íntima faca na garganta", o "lento pó silencioso", a
"tresnoitada luz", a "sincera porta", a "biblioteca cega"-, está designando, embora não o diga, o
operador mínimo dessa fantástica, inscrita na letra mesma do texto. Como para mostrar o quanto o
estilo é o homem.
Pela força da hipálage -analogia assombrosa, atribuição a uma
palavra de algo logicamente só cabível para outra-, que é talvez o
estilema de Borges, o suporte retórico à altura da tese do mundo
como versão do mundo ou logosfera, já não há limites entre as coisas mais sólidas e as mais implausíveis. Seja "a bala que matou
Francisco Borges" ou "O que não
poder ser. O outro corno/ Do unicórnio".
Pois as surpreendentes simpatias que se estabelecem assim entre conceitos tão distantes, que só
a arte da conjetura ilimitada os
poderia articular, revertem toda a
concretude em puro senso do infinito. Devastando o senso comum, em sublime canto paralelo,
paródia, paradoxo. E obrigando o
leitor a encontrar outro lugar na
própria língua. Razão pela qual é
simplesmente espantosa, digna
de uma prestidigitação de Borges,
a audiência do autor de "Ficções".
Do alcance dessa proposição da
sobrenaturalidade -ou visão herética da natureza, aqui suposta
fazer milagres, como em Espinosa, em que ela representa "o infinito mapa Daquele que é todas as
suas estrelas"- outra marca escritural é o gênero preferencialmente investido pelo idealismo
borgiano: "tale" contra "short
story". O maravilhoso contra o
razoável.
A modificação da realidade pelo
sonho, a imitação da arte pela vida, em outras palavras, a suspensão da incredulidade recomendada por Coleridge, dando-se ali
mesmo onde seria de esperar algo
de mais materialmente palpável.
Nos arrabaldes pobres da cidade,
na própria cidade -Buenos Aires
"é o dédalo crescente de luzes que
divisamos do avião"- e no pampa dos "gauchos", essas personagens de modesta mitologia, saídas
para culminar no conto "O Sul", o
melhor Borges segundo o próprio
Borges, da literatura do mesmo
nome.
Leda Tenório da Motta é professora na
Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP),
autora, entre outros, de "Lições de Literatura
Francesa" (Imago).
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