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Joyce
NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas
James Joyce era um escritor
que, em princípio, pareceria ser o
oposto de Borges. O irlandês tentou inventariar seu mundo em
dois grandes romances, enquanto o argentino dispersou o seu em
inúmeros contos e poemas breves. À medida que envelheciam, o
estilo do primeiro se rebuscava, o
do segundo se simplificava. Um
jamais deixou de ser no fundo um
realista, o outro nunca o foi de fato. Muitas vezes o autor de "Ficções" deu a entender que o do
"Ulisses" não o agradava.
Por exemplo, em 81, disse: "Foi
um erro de Joyce fechar-se no romance, o que lhe interessava
eram as palavras. Não li o "Ulisses", creio que ninguém o leu, não
se chega jamais a conhecer as personagens". Uma perspectiva
mais longa das opiniões sempre
cambiáveis de Borges descerra,
porém, um quadro diferente.
Num de seus livros suprimidos e
recentemente republicados ("Inquisições", 1925) há um ensaio
entusiástico sobre o "Ulisses", no
qual ele observa que "Sou o primeiro aventureiro hispânico que
chegou ao livro de Joyce" e continua: "Falarei dele com a licença
que minha admiração me confere...". Doze anos depois seu juízo
não tinha ainda se alterado: "A
delicada música de sua prosa é incomparável". E em 39 afirmava:
"É indiscutível que Joyce é um
dos primeiros escritores de nosso
tempo. Verbalmente talvez seja o
primeiro".
A formação anglo-saxônica do
argentino, sua paixão pela língua
e pela literatura inglesas, seu interesse pela história e pelos temas
irlandeses, que lhe rendeu mais
de uma narrativa, tudo isso só poderia levá-lo a admirar Joyce. Por
que, então, teria mudado de opinião? Uma das razões possíveis é
que, tendo principiado sua carreira como um escritor prolixo,
rebuscado, Borges dedicou o resto de sua vida a consolidar um estilo enganosamente singelo e cristalino, afastando-se cada vez mais
do exemplo joyciano. Mas isso
não parece suficiente.
Mais plausível é imaginarmos
que suas opiniões desfavoráveis
pertencem antes ao domínio da
zombaria, que abarca tantas dentre suas manifestações, e que tal
zombaria teria sido provocada
menos pela obra do mestre irlandês do que pela imensa indústria
acadêmica em que se transformou sua recepção póstuma. Tudo que se transformasse em ícone, mesmo livros admirados, despertavam o que em Borges havia
de iconoclasta. Um soneto que
compôs em Cambridge, em 68,
denominado "James Joyce", resume melhor o que ele provavelmente pensava:
"Um dia do homem já contém
os dias/ Do tempo, desde aquele
inconcebível/ Dia inicial do tempo, em que um terrível/ Deus prefixou os dias e agonias,/ Àquele,
quando volte o onipresente/ Rio
do tempo terreno aonde nasceu,/
À Eternidade, e sumam no presente/ O futuro, o passado, o que
hoje é meu./ Encontra-se entre
aurora e noite a história/ Universal. E eis, desde a noite, que eu/
Vejo a meus pés as rotas do judeu,/ Cartago aniquilada, Inferno
e Glória./ Dai-me, Senhor, coragem e alegria/ Para escalar o cimo
deste dia".
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