São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Joyce

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

James Joyce era um escritor que, em princípio, pareceria ser o oposto de Borges. O irlandês tentou inventariar seu mundo em dois grandes romances, enquanto o argentino dispersou o seu em inúmeros contos e poemas breves. À medida que envelheciam, o estilo do primeiro se rebuscava, o do segundo se simplificava. Um jamais deixou de ser no fundo um realista, o outro nunca o foi de fato. Muitas vezes o autor de "Ficções" deu a entender que o do "Ulisses" não o agradava.
Por exemplo, em 81, disse: "Foi um erro de Joyce fechar-se no romance, o que lhe interessava eram as palavras. Não li o "Ulisses", creio que ninguém o leu, não se chega jamais a conhecer as personagens". Uma perspectiva mais longa das opiniões sempre cambiáveis de Borges descerra, porém, um quadro diferente. Num de seus livros suprimidos e recentemente republicados ("Inquisições", 1925) há um ensaio entusiástico sobre o "Ulisses", no qual ele observa que "Sou o primeiro aventureiro hispânico que chegou ao livro de Joyce" e continua: "Falarei dele com a licença que minha admiração me confere...". Doze anos depois seu juízo não tinha ainda se alterado: "A delicada música de sua prosa é incomparável". E em 39 afirmava: "É indiscutível que Joyce é um dos primeiros escritores de nosso tempo. Verbalmente talvez seja o primeiro".
A formação anglo-saxônica do argentino, sua paixão pela língua e pela literatura inglesas, seu interesse pela história e pelos temas irlandeses, que lhe rendeu mais de uma narrativa, tudo isso só poderia levá-lo a admirar Joyce. Por que, então, teria mudado de opinião? Uma das razões possíveis é que, tendo principiado sua carreira como um escritor prolixo, rebuscado, Borges dedicou o resto de sua vida a consolidar um estilo enganosamente singelo e cristalino, afastando-se cada vez mais do exemplo joyciano. Mas isso não parece suficiente.
Mais plausível é imaginarmos que suas opiniões desfavoráveis pertencem antes ao domínio da zombaria, que abarca tantas dentre suas manifestações, e que tal zombaria teria sido provocada menos pela obra do mestre irlandês do que pela imensa indústria acadêmica em que se transformou sua recepção póstuma. Tudo que se transformasse em ícone, mesmo livros admirados, despertavam o que em Borges havia de iconoclasta. Um soneto que compôs em Cambridge, em 68, denominado "James Joyce", resume melhor o que ele provavelmente pensava:
"Um dia do homem já contém os dias/ Do tempo, desde aquele inconcebível/ Dia inicial do tempo, em que um terrível/ Deus prefixou os dias e agonias,/ Àquele, quando volte o onipresente/ Rio do tempo terreno aonde nasceu,/ À Eternidade, e sumam no presente/ O futuro, o passado, o que hoje é meu./ Encontra-se entre aurora e noite a história/ Universal. E eis, desde a noite, que eu/ Vejo a meus pés as rotas do judeu,/ Cartago aniquilada, Inferno e Glória./ Dai-me, Senhor, coragem e alegria/ Para escalar o cimo deste dia".


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