São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Metáfora

ALCIR PÉCORA
especial para a Folha

Num belo poema de "O Outro, o Mesmo", Borges imagina o jesuíta Baltasar Gracián, autor de uma radical teoria da metáfora, como alguém que prefere criar jogos de linguagem a contemplar a verdade ou a glória divina. Historicamente, a hipótese não parece verossímil, pois Gracián jamais admitiria oposição entre as formas de analogia (de que a metáfora enigmática é o melhor exemplo) e a verdade das relações estabelecidas por ela.
Para o jesuíta, a metáfora é um conceito ou ato intelectual que apenas descobre uma correspondência já existente na ordem da natureza ou, de outra maneira, que atualiza verbalmente uma razão ou proporção oculta nela como efeito da ordem que é Deus. Assim, para Gracián, inventar tais jogos emblemáticos não é desdém, mas busca rigorosa de Deus por intermédio de seus efeitos enigmáticos, via engenhosa dada pela Graça ao intelecto finito. E quanto a Borges, nosso conterrâneo num mundo já sem a dignidade do Deus intelectual dos teólogos, pode-se dizer que ainda espera alguma verdade ao fim da metáfora? A resposta plausível admite ao menos três hipóteses gradativas e complementares:
1) Exceto pelo curto período ultraísta, Borges faz questão de demonstrar pouca crença na metáfora como elemento essencial da poesia, e ainda menos na metáfora insólita, isto é, que alardeia sua obscuridade ou modernidade, ou que produz assombro agradável, mas sem afeto que a justifique -isto a torna, segundo Borges, tão laboriosa quanto inútil. Da mesma maneira, embora admita que as metáforas sejam virtualmente infinitas enquanto estabelecimento de correspondências, considera absurdo o propósito de elaborar metáforas novas, pois as que têm interesse surgem da intuição de uma analogia entre coisas dissímiles, e não do esforço de combinar palavras, o que eventualmente impressiona, mas nada revela ou comunica: são apenas objetos verbais, puros e independentes;
2) Embora traços diferenciais sejam aparentes nas múltiplas combinações metafóricas, Borges procura demonstrar que há forte unidade e recorrência de algumas delas, que constituem um pequeno grupo célebre -tópicas da história literária universal-, como "esfera-Deus", "estrelas-olhos", "flor-mulher", "água-tempo", "entardecer-velhice", "sonho-morte". A permanência das formas no tempo, o número limitado das metáforas relevantes insinuam (e Borges diverte-se em insinuá-lo) a confirmação de uma antiga verdade, ainda mais que quase todas elas são invariavelmente reduzidas por ele a glosas das Escrituras ou a diversos livros sagrados. Contudo provavelmente erraria quem encontrasse aí o fundamento ou verdade da metáfora segundo Borges, pois os diversos sistemas metafísicos e teológicos não parecem valer, para ele, senão como outras metáforas recorrentes. Nesse caso, o que mede a verdade delas é uma certa qualidade aporética da imagem literária, que não deve ser confundida com o assombro fátuo de que falamos, embora a confusão seja mais ou menos inevitável; o mais típico dessa qualidade é a criação de um estado afetivo de perplexidade, tão intenso quanto o de um ato de fé, mas sem desejo de Deus ou de uma além-vida: uma metáfora extática que é apenas contato momentâneo com um mundo inexplicavelmente complexo;
3) Assim, as metáforas não confirmam uma verdade divina para a história, mas, inversamente, que a história universal pode não ser mais que essas poucas metáforas afetivas, que são, a mesmo título, o instrumento de indagação de que dispomos e o simples hábito em que nos criamos. Aqui, a metáfora de Borges evidencia sobretudo a provável irrealidade das coisas a que se aplica, para se tornar simples execução de uma espécie de música (forma, não-sentido) da experiência afetiva, livre da Metafísica e da Psicologia, mas ecumênica e universal. De maneira menos esperançosa, pode-se entendê-la como irrealidade sensível ou evidência de certos interstícios de "sinrazón" na superfície de imagens que é o mundo;
4) Neste ponto, convém imaginar que a personagem de Gracián no belo poema de "O Outro, o Mesmo" é metáfora de seu autor.


Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).


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