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Metáfora
ALCIR PÉCORA
especial para a Folha
Num belo poema de "O Outro,
o Mesmo", Borges imagina o jesuíta Baltasar Gracián, autor de
uma radical teoria da metáfora,
como alguém que prefere criar jogos de linguagem a contemplar a
verdade ou a glória divina. Historicamente, a hipótese não parece
verossímil, pois Gracián jamais
admitiria oposição entre as formas de analogia (de que a metáfora enigmática é o melhor exemplo) e a verdade das relações estabelecidas por ela.
Para o jesuíta, a metáfora é um
conceito ou ato intelectual que
apenas descobre uma correspondência já existente na ordem da
natureza ou, de outra maneira,
que atualiza verbalmente uma razão ou proporção oculta nela como efeito da ordem que é Deus.
Assim, para Gracián, inventar tais
jogos emblemáticos não é desdém, mas busca rigorosa de Deus
por intermédio de seus efeitos
enigmáticos, via engenhosa dada
pela Graça ao intelecto finito. E
quanto a Borges, nosso conterrâneo num mundo já sem a dignidade do Deus intelectual dos teólogos, pode-se dizer que ainda espera alguma verdade ao fim da
metáfora? A resposta plausível
admite ao menos três hipóteses
gradativas e complementares:
1) Exceto pelo curto período ultraísta, Borges faz questão de demonstrar pouca crença na metáfora como elemento essencial da
poesia, e ainda menos na metáfora insólita, isto é, que alardeia sua
obscuridade ou modernidade, ou
que produz assombro agradável,
mas sem afeto que a justifique
-isto a torna, segundo Borges,
tão laboriosa quanto inútil. Da
mesma maneira, embora admita
que as metáforas sejam virtualmente infinitas enquanto estabelecimento de correspondências,
considera absurdo o propósito de
elaborar metáforas novas, pois as
que têm interesse surgem da intuição de uma analogia entre coisas dissímiles, e não do esforço de
combinar palavras, o que eventualmente impressiona, mas nada
revela ou comunica: são apenas
objetos verbais, puros e independentes;
2) Embora traços diferenciais
sejam aparentes nas múltiplas
combinações metafóricas, Borges
procura demonstrar que há forte
unidade e recorrência de algumas
delas, que constituem um pequeno grupo célebre -tópicas da
história literária universal-, como "esfera-Deus", "estrelas-olhos", "flor-mulher", "água-tempo", "entardecer-velhice",
"sonho-morte". A permanência
das formas no tempo, o número
limitado das metáforas relevantes
insinuam (e Borges diverte-se em
insinuá-lo) a confirmação de uma
antiga verdade, ainda mais que
quase todas elas são invariavelmente reduzidas por ele a glosas
das Escrituras ou a diversos livros
sagrados. Contudo provavelmente erraria quem encontrasse aí o
fundamento ou verdade da metáfora segundo Borges, pois os diversos sistemas metafísicos e teológicos não parecem valer, para
ele, senão como outras metáforas
recorrentes. Nesse caso, o que
mede a verdade delas é uma certa
qualidade aporética da imagem literária, que não deve ser confundida com o assombro fátuo de
que falamos, embora a confusão
seja mais ou menos inevitável; o
mais típico dessa qualidade é a
criação de um estado afetivo de
perplexidade, tão intenso quanto
o de um ato de fé, mas sem desejo
de Deus ou de uma além-vida:
uma metáfora extática que é apenas contato momentâneo com
um mundo inexplicavelmente
complexo;
3) Assim, as metáforas não confirmam uma verdade divina para
a história, mas, inversamente, que
a história universal pode não ser
mais que essas poucas metáforas
afetivas, que são, a mesmo título,
o instrumento de indagação de
que dispomos e o simples hábito
em que nos criamos. Aqui, a metáfora de Borges evidencia sobretudo a provável irrealidade das
coisas a que se aplica, para se tornar simples execução de uma espécie de música (forma, não-sentido) da experiência afetiva, livre
da Metafísica e da Psicologia, mas
ecumênica e universal. De maneira menos esperançosa, pode-se
entendê-la como irrealidade sensível ou evidência de certos interstícios de "sinrazón" na superfície
de imagens que é o mundo;
4) Neste ponto, convém imaginar que a personagem de Gracián
no belo poema de "O Outro, o
Mesmo" é metáfora de seu autor.
Alcir Pécora é professor de literatura na
Universidade Estadual de Campinas e autor
de "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora
da Unicamp).
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