São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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Lobisomem

SILVIANO SANTIAGO
especial para a Folha

Tomemos o "Manual de Zoologia Fantástica", escrito a quatro mãos por Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero. Não nos detenhamos, agora, nos detalhes da brilhante cartografia que os autores nos propõem no prólogo. Leitores contumazes, vamos direto à mais inesperada das frases. A que nos fala duma sintomática exclusão. O animal excluído acena para uma ameaça à segurança do jardim "de caminhos que se bifurcam". Para habitá-lo, os autores tinham somado à "zoologia de Deus" (os animais) a "zoologia dos sonhos" (os monstros).
Eis a frase inesperada do prólogo: "Deliberadamente, excluímos desse manual as lendas sobre transformações do ser humano: o lobisomem, o werewolf etc.". O raciocínio canônico de Borges, binário por excelência, admite tudo no seu interior, menos um processo que o mestre dos mestres da Modernidade não consegue dominar -o da transformação, o do virar (no popular). Guarda-o deliberadamente no armário.
Retomemos o caminho percorrido. No "Manual de Zoologia Fantástica", ao lado dos tigres e leões do zoológico de Deus estão as esfinges, grifos e centauros do zoológico dos sonhos. São todos estes aceitos pelo livro, pois são, por assim dizer, fabricados de maneira binária, ou seja, de dobras de seres já existentes que perfazem um novo ser, são todos e cada um "monstros" (a palavra é recorrente em todo o "Manual" e não é ameaçadora). No centauro, diz o prólogo, se conjugam o cavalo e o homem; no minotauro, o touro e o homem. Como vai ser dito no verbete "O Centauro": "O verossímil é conjeturar que o centauro foi uma imagem deliberada e não uma confusão ignorante". O monstro, novo ser, nada mais é do que a combinação de partes de outros seres. Não ameaça.
Tanto o lobisomem quanto o "werewolf" são uma ameaça à tranquilidade do jardim zoológico de Borges e Guerrero. São seres humanos em transformação e, por isso, são deliberadamente excluídos do "Manual". Isso num autor que admira Robert Louis Stevenson e a sua novela "O Médico e o Monstro". Nessa novela, é bom lembrar, quando toma uma "transforming draught" (poção transformadora), o médico vira monstro (o verbo popular se impõe numa novela que é "cult" entre os homossexuais -vide "O Armário do Dr. Jekyll", capítulo de "Anarquia Sexual", Ed. Rocco, de Elaine Showalter).
Por que não deixar rolar pela mesa da literatura o dado da transformação do ser humano no texto de Borges? Estaria em jogo, no processo de produção textual borgiano, não mais a figura do desdobramento do um em dois, ou do acasalamento do dois em um, mas a figura do vir-a-ser. Entendamo-nos, trata-se de figura que traduz o puro movimento sem direção fixa, o movimento do virar outro que é dado, não como o que é conjunção deliberada de dois, mas como "confusão ignorante". Surge no "meio do redemoinho" (Guimarães Rosa).
A figura do desdobramento, em Borges, ativa o binarismo de norma e desvio, de saber e ignorância, de Céu e Inferno, de Deus e Diabo; ativa a noção de conflito entre norma e desvio, saber e ignorância, Céu e Inferno, Deus e Diabo, a fim de, em última instância, optar pela exclusão do que é dado como desvio, ignorância, Inferno e Diabo. "Ad astra per aspera", ou, em versão tupiniquim: "Ad Augustum per Angusta". Borges categoriza o que julga ser desvio como bestialidade (e não animalidade fantástica, pois esta é contemplada no citado "Manual" pela zoologia, tanto a de Deus quanto a dos sonhos).
Por que não reler o romance de Lins do Rego, "Fogo Morto"? Eis a palavra de outro excluído, o seleiro José Amaro: "Lobisomem. Estremeceu com o pensamento. Era como se lhe gritassem no ouvido: Assassino! Lobisomem!". Ou por que não cantar deliberada e alegremente os versinhos dos "Secos & Molhados": "Vira vira vira homem/ Vira vira/ Vira vira lobisomem"?


Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico literário, autor de "Em Liberdade", "Stella Manhattan" e "De Cócoras" (Rocco), entre outros.


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