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Lobisomem
SILVIANO SANTIAGO
especial para a Folha
Tomemos o "Manual de Zoologia Fantástica", escrito a quatro
mãos por Jorge Luis Borges e
Margarita Guerrero. Não nos detenhamos, agora, nos detalhes da
brilhante cartografia que os autores nos propõem no prólogo. Leitores contumazes, vamos direto à
mais inesperada das frases. A que
nos fala duma sintomática exclusão. O animal excluído acena para
uma ameaça à segurança do jardim "de caminhos que se bifurcam". Para habitá-lo, os autores
tinham somado à "zoologia de
Deus" (os animais) a "zoologia
dos sonhos" (os monstros).
Eis a frase inesperada do prólogo: "Deliberadamente, excluímos
desse manual as lendas sobre
transformações do ser humano: o
lobisomem, o werewolf etc.". O
raciocínio canônico de Borges, binário por excelência, admite tudo
no seu interior, menos um processo que o mestre dos mestres da
Modernidade não consegue dominar -o da transformação, o
do virar (no popular). Guarda-o
deliberadamente no armário.
Retomemos o caminho percorrido. No "Manual de Zoologia
Fantástica", ao lado dos tigres e
leões do zoológico de Deus estão
as esfinges, grifos e centauros do
zoológico dos sonhos. São todos
estes aceitos pelo livro, pois são,
por assim dizer, fabricados de
maneira binária, ou seja, de dobras de seres já existentes que perfazem um novo ser, são todos e
cada um "monstros" (a palavra é
recorrente em todo o "Manual" e
não é ameaçadora). No centauro,
diz o prólogo, se conjugam o cavalo e o homem; no minotauro, o
touro e o homem. Como vai ser
dito no verbete "O Centauro": "O
verossímil é conjeturar que o centauro foi uma imagem deliberada
e não uma confusão ignorante". O
monstro, novo ser, nada mais é do
que a combinação de partes de
outros seres. Não ameaça.
Tanto o lobisomem quanto o
"werewolf" são uma ameaça à
tranquilidade do jardim zoológico de Borges e Guerrero. São seres
humanos em transformação e,
por isso, são deliberadamente excluídos do "Manual". Isso num
autor que admira Robert Louis
Stevenson e a sua novela "O Médico e o Monstro". Nessa novela, é
bom lembrar, quando toma uma
"transforming draught" (poção
transformadora), o médico vira
monstro (o verbo popular se impõe numa novela que é "cult" entre os homossexuais -vide "O
Armário do Dr. Jekyll", capítulo
de "Anarquia Sexual", Ed. Rocco,
de Elaine Showalter).
Por que não deixar rolar pela
mesa da literatura o dado da
transformação do ser humano no
texto de Borges? Estaria em jogo,
no processo de produção textual
borgiano, não mais a figura do
desdobramento do um em dois,
ou do acasalamento do dois em
um, mas a figura do vir-a-ser. Entendamo-nos, trata-se de figura
que traduz o puro movimento
sem direção fixa, o movimento do
virar outro que é dado, não como
o que é conjunção deliberada de
dois, mas como "confusão ignorante". Surge no "meio do redemoinho" (Guimarães Rosa).
A figura do desdobramento, em
Borges, ativa o binarismo de norma e desvio, de saber e ignorância, de Céu e Inferno, de Deus e
Diabo; ativa a noção de conflito
entre norma e desvio, saber e ignorância, Céu e Inferno, Deus e
Diabo, a fim de, em última instância, optar pela exclusão do que é
dado como desvio, ignorância,
Inferno e Diabo. "Ad astra per aspera", ou, em versão tupiniquim:
"Ad Augustum per Angusta".
Borges categoriza o que julga ser
desvio como bestialidade (e não
animalidade fantástica, pois esta é
contemplada no citado "Manual"
pela zoologia, tanto a de Deus
quanto a dos sonhos).
Por que não reler o romance de
Lins do Rego, "Fogo Morto"? Eis a
palavra de outro excluído, o seleiro José Amaro: "Lobisomem. Estremeceu com o pensamento. Era
como se lhe gritassem no ouvido:
Assassino! Lobisomem!". Ou por
que não cantar deliberada e alegremente os versinhos dos "Secos
& Molhados": "Vira vira vira homem/ Vira vira/ Vira vira lobisomem"?
Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico
literário, autor de "Em Liberdade", "Stella
Manhattan" e "De Cócoras" (Rocco), entre
outros.
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