São Paulo, domingo, 01 de setembro de 2002

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+ cinema

O diretor holandês George Sluizer fala de sua adaptação para as telas do romance de José Saramago, que deve estrear na Europa no dia 19 e, em outubro, no Brasil

A jangada de pedra à deriva na película

Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

O diretor que venceu o antiimperialismo de José Saramago chama-se George Sluizer. Conhecido pela enigmática dupla filmagem de "The Vanishing" (a primeira versão, holandesa, lançada no Brasil com o nome "O Homem Que Queria Saber", em 1988; a segunda, americana, difundida aqui como "O Silêncio do Lago", de 1992), cujo final perturbador ganhou desfecho edulcorado na versão hollywoodiana, e também pela experiência traumática de, a dez dias de terminar o promissor thriller erótico "Dark Blood" (1993), receber a notícia da morte de seu protagonista, o ator River Phoenix, Sluizer, 70, tem uma longa história com a cultura de língua portuguesa.
Seu primeiro longa-metragem, "A Faca e o Rio", foi filmado no Brasil, com Jofre Soares e Ana Miranda. A este seguiram-se vários filmes e documentários feitos aqui e em Portugal, até o presente "The Stoneraft" ("A Jangada de Pedra", lançado no Brasil pela Cia. das Letras), primeira adaptação de um romance de José Saramago para o cinema, que relutava em vender os direitos de seus livros para a indústria cinematográfica. A première aconteceu no World Film Festival de Montreal, no final de agosto, e o filme estréia no Brasil em outubro, na Mostra Internacional de SP.

Como o sr. entrou em contato com a literatura portuguesa e José Saramago?
Eu diria que por duas razões: uma é coincidentemente ter tido muito a ver com Portugal na minha vida desde os 9 anos, viajando para lá; outra é ter feito filmes em Portugal, o primeiro sobre pescadores portugueses, depois estive novamente no país para produzir e co-dirigir um filme intitulado "Morto para Chegar em Casa" [1996] com meu amigo [o diretor] Carlos da Silva. O link direto, neste caso, foi minha co-autora Yvette Biro, uma húngara que vive em Nova York. Quando ela saiu da Hungria, ficou por algum tempo em Portugal, onde teve contato com obras de Saramago, foi para os EUA e lá um amigo em comum nos apresentou; nós conversamos um dia, sete anos atrás, e ela disse: "Você deveria ler o livro de Saramago". Li o livro e fiquei animado e interessado. Foi assim que começou.
O livro que você leu era "A Jangada de Pedra" ou outra obra de Saramago?
Já foi "A Jangada de Pedra", foi esse o livro sobre o qual ela me falou, porque a Yvette Biro é uma roteirista e uma professora de cinema e ela me disse que havia um filme ali, então eu primeiro li apenas "A Jangada de Pedra", em francês. Ela escreveu o primeiro roteiro, nós falamos com o agente, e então começou o procedimento padrão de compra de direitos etc. Mas o fato de ela ter escrito uma carta a Saramago em que se mostrava muito apaixonada pelo livro, e de ele ter se encantado com isso, foi o principal para que o projeto funcionasse. Ele gostou muito da carta e, assim, foi mais fácil a aproximação.
E é a primeira adaptação de um livro dele para o cinema.
Sim, porque ele se opunha muito a vender os direitos para pessoas de cinema. Na cabeça dele, filme era Hollywood, Hollywood era capitalismo e era também trair o trabalho dos escritores, então ele não tinha nenhum interesse em vender nem mesmo para o Spielberg -que pediu os direitos para "Ensaio sobre a Cegueira", me parece, e ele recusou. A agente dele provavelmente lhe disse "essas pessoas são ok, não são monstros de Hollywood que vão baratear seu trabalho". Quando eu lhe mandei o primeiro rascunho, recebi uma carta de volta na qual ele era em certos pontos bastante rigoroso, dizendo por exemplo: "Eu não acho que você tenha entendido isso muito bem, você poderia mudar?". E eu imediatamente fui vê-lo em Lanzarote para defender as alterações, e posso dizer que ali nos tornamos amigos.
Qual foi a reação dele quando viu o resultado final?
É difícil dizer, eu estava sentado no fundo do cinema, em Lisboa, bastante ansioso, e então, no final, ele se levantou e disse: "Onde está George?"; fui até a frente e ele me abraçou, um grande abraço ao estilo brasileiro, e disse: "Eu chorei; eu lhe agradeço muitíssimo". A principal satisfação que acho que teve foi ver que não tentei fazer um filme de grandes efeitos, por causa da quebra dos Pireneus etc. O tratamento que eu dei para o filme não foi o de exibir efeitos, mas de conseguir uma certa atmosfera por meio deles.
Que tipo de dificuldade você encontrou para transpor para a tela uma história tão alegórica e escrita em uma linguagem tão pouco convencional?
Não é fácil, houve um número razoável de rascunhos, um de 5.000 páginas, outro de 50, mudou muito. Nós trabalhamos nos roteiros escritos por Yvette Biro e eu durante certo tempo, e finalizei a última versão. Foi difícil manter a essência do espírito de Saramago e do seu livro, simplificar sem ser simplista, tentar captar o sentimento principal do que eu achava que estava no livro sobre as personagens e a jornada. Sua linguagem não é fácil de transpor para a forma cinematográfica. Eu li recentemente uma crítica que dizia: "É praticamente um milagre, porque o livro é muito difícil de ler por causa das longas sentenças sem pontuação. E no filme elas são curtas, é fácil, e ainda assim parece ser a mesma coisa". Então, acho que o essencial está lá.
A escolha desse livro específico tem relação com o atual contexto de unificação européia, o euro e as animosidades em relação a este movimento de convergência?
O livro foi escrito em um período em que, para tornar-se parte da unidade da Europa, um país -certamente os menores- tinha de abrir mão de sua identidade. Portanto a questão que Saramago se coloca é "nós pertencemos à Alemanha ou à Inglaterra mais do que à África do Norte ou talvez até à América do Sul, onde temos mais em comum com as pessoas?"; e há a atitude política dele, que assevera que o centro rico deve olhar para a periferia, tem responsabilidade em relação às ex-colônias que explorou. No livro, quando a Península Ibérica se separa do continente, vai em direção aos países com os quais tem um débito. Esse é o pano de fundo, não tanto do filme, que tem esse elemento, mas que trata mais das cinco pessoas e do cachorro.
Você participou da produção brasileira de "Fitzcarraldo" (Werner Herzog) e realizou seu primeiro longa-metragem aqui. De onde surgiu seu interesse pelo Brasil?
Eu sempre fui muito fascinado por continentes para mim desconhecidos. E acho que parte da minha descoberta de identidade ocorreu enquanto estive no Brasil, por entrar em contato com uma maneira diferente de vida; eu me encantei com o espírito que vi nos olhos das pessoas. Meu primeiro filme foi baseado em "A Faca e o Rio", de Odylo Costa, filho [1914-79], com atores brasileiros. Conheci Odylo em Paris, perguntei se poderia adaptar o livro, mas fiz a ressalva: "Eu nunca fui ao Brasil, mas me apaixonei pela história". Ele disse que era isso que importava. E novamente eu ganhei o grande abraço brasileiro.


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