São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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Edições dos contos de Machado de Assis sofrem até hoje com a falta de rigor, apresentando erros tipográficos e de ortografia

Nenhuma das "Obras Completas" de Machado é, de fato, completa quanto aos contos; as lacunas, sem exceção, sobem às dezenas e, além disso, esforços passados de compilação de contos que haviam ficado esquecidos caíram por sua vez no olvido, por falta de reedição


Distorções perpétuas

Cláudio Weber Abramo
especial para a Folha

Ao longo da vida, Machado de Assis escreveu ao menos 206 contos. É certo que boa parte deles não figura entre as melhores produções da língua. No entanto Machado é sempre Machado, mesmo que numa única frase, e muito se pode aprender com seus contos. Isso, contudo, exigiria acesso fácil à totalidade de tais escritos, algo que, embora pareça inacreditável, não se dá. Para quem é considerado o mais importante escritor brasileiro, Machado de Assis não tem sido muito bem tratado no que tange à edição de seus contos. Nenhuma de suas "Obras Completas" publicadas em papel é, de fato, completa quanto aos contos. As lacunas de cada uma delas, sem exceção, sobem às dezenas. Além disso, esforços passados de compilação de contos que haviam ficado esquecidos caíram por sua vez no olvido, por falta de reedição (como, por exemplo, alguns volumes do Clube do Livro). Por outro lado, sabe-se que a coleção "Archives", da Unesco, prepara uma edição do conjunto total dos contos de Machado de Assis. A empreitada, porém, atravessa dificuldades e ainda demandará alguns anos. Do que existe, a qualidade das edições é muito variável. Os principais fatores a atentar nessa apreciação são os critérios usados para o estabelecimento do texto, de forma a obter uma representação uniformemente fiel. Mas fiel a quê? A resposta padrão é: àquilo que se imagina ter sido a "intenção do autor". O maior problema é inferir essa intenção, uma vez que o autor não se encontra presente para informá-la. Isso pode dar, e dá, origem a decisões questionáveis. A tarefa inclui inúmeras dimensões, entre as quais a atualização ortográfica, a atitude quanto a erros tipográficos flagrantes e a aplicação de normatizações editoriais (grafia de nomes, por exemplo). A boa prática é partir da última edição em vida do autor (há exceções a essa regra, inclusive quanto às obras de Machado). O que eram esses originais? Machado de Assis publicava em jornais e revistas. Não existiam máquinas de escrever: tudo era manuscrito (Machado chegou a tomar aulas de caligrafia para minimizar os erros na publicação de seus escritos). Os originais eram enviados à redação e daí passavam a uma tipografia, onde o texto era composto (manualmente, com tipos móveis, depois a vapor); por fim, eram revisados. Acresce que cerca de metade da produção contística de Machado foi publicada em periódicos compostos e impressos na França, por tipógrafos e revisores franceses. Desse modo, uma obediência cega àquilo que saiu publicado originalmente, sob a alegação de que corresponderia à "vontade do autor", se baseia numa quimera e leva à perpetuação de absurdos. Mesmo no caso de contos que Machado publicou em livro e cujas reedições revisou, segui-las de olhos vendados é arriscado. A Jackson é a menos confiável de todas no que concerne à fidelidade. Com exceção do volume correspondente às "Várias Histórias", realizado sob responsabilidade de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em todos os demais há interferências, notadamente sobre a pontuação, algo que se torna grave quando se considera que Machado virgulava de forma idiossincrática. Como a edição Jackson serviu de base para inúmeras outras coletâneas, as distorções nela introduzidas se multiplicaram e se perpetuaram. Disso não escapou sequer a edição da Companhia das Letras. Uma alteração que a Jackson comete muitas vezes é a substituição de pontos de exclamação por pontos de interrogação. Por exemplo, no conto "Luís Soares": "Disse-lhe que naquela situação não via solução possível, e confessou ingenuamente que a idéia do suicídio o havia alimentado durante longas horas. - Um suicídio? exclamou Pires; estás doido". No original, em lugar dessa interrogação há um ponto de exclamação, ou melhor, um "ponto de admiração", como era designado na época em que Machado escrevia. Pires mostra-se admirado, não interrogativo.

Critérios conservadores
A Nova Aguilar também soçobra no estabelecimento do texto. Não se compreende por que a editora ainda não incorporou reformas ortográficas ocorridas de 1959 (ano da primeira edição) até hoje. Lá se encontram "tecto", "subtil", "cálix" (esta última também mantida na edição da Companhia das Letras) etc., além de uma profusão de acentos em paroxítonas hoje caídos, no que é acompanhada pela edição da Globo, exceto pelas paroxítonas. Na edição crítica da Comissão Machado de Assis, os critérios usados no estabelecimento do texto são de tal modo conservadores que a leitura resulta num permanente sobressalto: nem bem ontem nem bem hoje. Por exemplo, num conto fixa "humiliação" e em outro "humilhação". Num escreve "advinhar" e noutro "adivinhar". Em vez de "enquanto", mantém "em quanto" e assim por diante. Por esses motivos, o texto estabelecido por essa edição, o qual, em princípio, deveria fixar um cânone que serviria de base para outras edições, fracassa.
Já a edição da Fundação Casa de Rui Barbosa é muito bem cuidada, evitando as armadilhas formalistas em que caíram os membros da Comissão Machado de Assis. Nem sempre, porém: por motivos fonéticos mantêm-se, por exemplo, "chegámos" e outras palavras que, à época de Machado, se pronunciavam abertas, à portuguesa.
Por outro lado, palavras estrangeiras que originalmente apareciam grifadas são aportuguesadas, coisa que retira do texto um estranhamento que seria melhor manter: "cognac" vira "conhaque", "bond" se torna "bonde" etc. O mesmo ocorre com a Companhia das Letras. Esta última, contudo, não o faz de forma consistente (por exemplo, mantém "toilette"; moderniza "dollar" em "dólar" num conto, mas não o faz em outro).
Palavras que contêm o ditongo "ou" (como "cousa", "doudo" etc.) não costumam ser modernizadas nas principais edições pós-1943, com exceção da Civilização Brasileira/Ediouro e da Companhia das Letras.
Na primeira, a modernização é consistente, atingindo todas as ocorrências; na segunda, não (escreve-se "acoutar" em vez de "acoitar", por exemplo). A irregularidade na aplicação de critérios de estabelecimento de texto incide sobre outras situações na edição da Companhia das Letras. Por outro lado, esta última traz meticulosas notas de esclarecimento a respeito de personagens, citações e situações presentes nos contos, uma necessidade imperiosa para a real compreensão de textos escritos há mais de um século.
Uma peculiaridade da edição da Fundação Casa de Rui Barbosa, compartilhada com a Civilização Brasileira/Ediouro, é que corrige cochilos. Todas as demais mantêm erros tipográficos flagrantes. Concordâncias equivocadas e outros cochilos resguardam-se como apareceram nas publicações originais.
Um equívoco que ocorre várias vezes é a troca dos pretéritos mais-que-perfeito e imperfeito. Num manuscrito, é muito fácil confundir o "r" com o "v" e vice-versa, de modo que "encontrara" se transfigura em "encontrava", ou "deitava" se transforma em "deitara". Nesses casos, o contexto quase sempre permite determinar qual é o tempo verbal correto, tornando ainda mais incompreensível que editores não procedam à correção (assinalando-a em nota, claro). Um erro espantoso, presente em todas as edições, decorre de má atualização ortográfica. O conto "Galeria Póstuma", de "Histórias sem Data", se encerra com a seguinte fala, em que amigos de Joaquim Fidélis, recém-morto, reclamam de atitude de seu sobrinho e herdeiro, Benjamin, que evita mostrar-lhes um diário do tio em que tais amigos são objeto de curtas, mas corrosivas, apreciações (daí o título do conto): "Que diferença do tio! que abismo! a herança enfunou-o! deixá-lo! Ah! Joaquim Fidélis! ah! Joaquim Fidélis!". No entanto desse jeito a fala é ininteligível. Por que "deixá-lo", no infinitivo pessoal? É evidente que deveria ser "deixa-o!", no imperativo (ou seja, "deixa ele estar!", "deixa pra lá", "dane-se ele!"). Por que o erro? Acontece que, antes da reforma ortográfica de 1943, esse "l", que vem do pronome arcaico "lo" e sobrevive hoje em certas situações ("façâmo-lo"), era incorporado ao radical verbal: as edições antigas traziam "deixal-o". Observe-se que não caberia um argumento baseado na manutenção de concordância: nesse conto, como aliás em quase tudo que escreveu, Machado costumava mesclar pessoas e tempos verbais. Que o equívoco passe despercebido num conto que pouca gente leu, vá lá.

Mancada intocada
Acontece, porém, que a mesma mancada é cometida logo no início de "Memórias Póstumas de Brás Cubas". O narrador (isto é, Brás Cubas) escreve sobre uma mulher que aparecerá mais adiante: "(...) a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos". Isso está assim em todas as edições consultadas. Ora, por que "deixá-la ir"? É óbvio que o O inaudito é que "Memórias Póstumas" é um dos principais romances do principal autor brasileiro. Já foi objeto de incontáveis dissertações de mestrado, teses de doutoramento, aulas de livre-docência, considerações eruditas acerca de seus fundamentos histórico-ideológicos, psicanalíticos, construtivos e sabe-se lá mais o quê. Mesmo assim, o erro permanece intocado.


Cláudio Weber Abramo é mestre em lógica e filosofia da ciência. Realizou a edição eletrônica dos "Contos Completos de Machado de Assis". E-mail: cwabramo@uol.com.br.

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