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+ literatura
No conto "Orientação", de "Tutaméia", o escritor Guimarães Rosa leva ao extremo os experimentalismos linguísticos e a elaboração de imagens ao descrever um processo de aculturação às avessas vivido por um chinês e uma sertaneja
Mínima mímica
Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha
Raríssimo até as raias da esquisitice, dados os antecedentes na literatura brasileira quanto à presença de forasteiros das mais diversas
origens menos esta, é encontrar um conto de Guimarães Rosa (1908-67), intitulado "Orientação", em "Tutaméia - Terceiras Estórias", pondo em cena um chinês.
O que teria ido fazer um chinês no
inóspito sertão? Há notícias deles, poucas e lacunosas, a exemplo dos plantadores de chá desenhados por Rugendas
(1802-1858) no Rio, em vários cronistas e
viajantes. Mas constituíram, ao que parece, uma grande fantasia que ocupou as
cogitações das elites brasileiras na segunda metade do Oitocentos, quando se tornou urgente substituir o braço escravo
pelo livre. À época, apontavam-se não só
males econômicos e políticos como também males morais causados pela escravidão. Entre esses, destacam-se dois como
os mais salientes.
O primeiro seria o efeito deletério do
cativo dentro de casa para as famílias
brancas, como se vê em "O Demônio Familiar" (1857), peça de teatro de José de
Alencar, em que o gracioso moleque se
revela um elemento dissolvente da moral
doméstica. O segundo aparece no romance "As Vítimas-Algozes" (1869), de
Joaquim Manuel de Macedo, em que o
medo do senhor se expressa em fantasmagorias de atrocidades cometidas em
retaliação.
Uma solução repetidamente proposta
para substituir os africanos foi a importação de chineses, mencionada entre outros por Joaquim Nabuco, paladino da
causa da libertação dos africanos, em "O
Abolicionismo" (1883). Esses asiáticos,
extraordinariamente copiosos e com a
fama de afeitos aos esforços braçais,
além disso se dispersavam e se aclimavam pelo mundo todo.
Pelo pouco que se sabe, os escassos chineses aqui arribados escolheram a arena
urbana, onde logo se acomodaram na
prestação de serviços, especializando-se
na lavanderia-tinturaria e no ramo da
restauração barata, levando muitos anos
para passar, como de fato passaram, a estabelecimentos em outro patamar.
Força bruta
Contrariamente ao que
se passa nos Estados Unidos e no Peru,
onde abunda a historiografia sobre sua
presença, mal se sabe que labutaram na
construção de estradas de ferro nos confins do país, onde eram contratados como força bruta capaz de enfrentar as piores condições de trabalho e de insalubridade. Por exemplo, conforme os documentos, em obras de engenharia em ermos remotos, onde os trabalhadores
morriam como moscas.
Assim foi na construção da ferrovia
Madeira-Mamoré, na Amazônia, concebida no início do século 20 em virtude da
prosperidade local para dar vazão ao
boom da borracha. Porém, não estando
entre os dados a nacionalidade, torna-se
impossível saber quantos eram de cada
uma. Excetua-se a tabela dos óbitos, onde se registram sete chineses entre 1907 e
1912; sobreviveu uma fotografia em que
posam quatro deles.
E nas estatísticas oficiais sobre imigração em geral no Brasil, após uma infindável lista de diferentes gentílicos, os chineses, supõe-se, entram no cômputo geral sob a rubrica "Outros", tornando impossível saber quantos foram.
Deve-se reconhecer que Guimarães
Rosa, algumas vezes, gostava de experimentar a mão delineando perfis exóticos. Assim, o chinês que ora nos ocupa;
um japonês na crônica "Cipango", de
"Ave, Palavra" (1970); índios, em outra
crônica do mesmo livro, intitulada "Uns
Índios, Sua Fala" e em "Meu Tio o Iauaretê", um conto longo de "Estas Estórias"
(1969), possivelmente sua obra-prima e
um de seus textos mais difíceis; um italiano em "O Cavalo que Bebia Cerveja", de "Primeiras Estórias" (1962); e quatro
contos sobre ciganos, em "Tutaméia"
(1967), a saber: "Faraó e a Água do Rio",
"O Outro ou o Outro", "Vida Ensinada"
e "Zingaresca". Nesses textos percebe-se
como Guimarães Rosa é atento à diferença, que aprecia e na qual se rejubila,
diferença que para ele se flagra sobretudo na linguagem -de que era grande
observador e experimentador- e na expressão corporal, melhor chamada de
"body language" em inglês.
Além de retratar forasteiros em sua ficção, como por exemplo o turco Sêo Assis
Wababa e o alemão Vupes em "Grande
Sertão: Veredas" (1956), vai pôr na boca
de Riobaldo, seu narrador-protagonista
e arguto delineador de diferenças, a seguinte frase: "Toda vida gostei demais de
estrangeiro". Tudo isso, e mais alguma
coisa, vai aflorar no conto "Orientação",
como se verá a seguir.
Comecemos pelo começo, ou seja, pelo
título, que chama a atenção para o Oriente, embora, como veremos, se desdobre
em sua polissemia.
Em seguida, vale uma pausa o nome da
personagem central, aquele chinês que,
não se sabe como, foi parar no sertão.
Seu nome é Yao Tsing-Lao. Portanto,
consequência lógica, naturalizado como
Yao Tsing Joaquim. Daí o hipocorístico
Quim. Este último vem a ser uma leitura
descompromissada e relaxada de um
dos mais ilustres e polivalentes monossílabos chineses, o qual fornece o étimo da
designação da nacionalidade nas línguas
ocidentais a partir do latim.
Conto minimalista
O monossílabo
tanto nomeia um dos livros-chave dessa
civilização, o "I Ching" ou "I Qing",
quanto a prosápia de duas dinastias, seja
a Ch'in pré-cristã, seja a última a existir já
no século 20, a Ching. Além de ter a vantagem de ser homófono e homógrafo,
mesmo que imperfeito em ambos os casos, de "chim", forma abreviada de "chinês". O nome de Quim, alternado com o
gentílico "chim" (o "Quim chim"), vai
comandar um sem-número de arranjos
e permutações verbais, como veremos.
A estrutura desse conto minimalista é a
de uma história de amor repousando sobre uma relação de oposição entre o chinês e a sertaneja, a tal ponto que se poderia dizer que ele é o protagonista e ela, a
antagonista. A caracterização dele enquanto personagem tem como traço
principal encarnar uma antiga civilização, enquanto ela é incivilizada. Os demais traços a delinearem seu perfil mostram-no como trabalhador, competente,
sério, discreto e taciturno sem ser tristonho (era "sério sorrisoteiro"). Os primeiros parágrafos tratam só do chinês e vão
montando uma crônica de diligência,
honestidade e operosidade. Na crônica,
aquele que fora um vagabundo pé-rapado entabula uma carreira que vai de cozinheiro a administrador e proprietário,
isto é, de Yao Tsing-Lao a Joaquim,
Quim e Sêo Quim, este já respeitável dono de chácara.
Ela, ao contrário, fala muito e incoerentemente (é "respondedora"), como o
mostra sua reação, a certa altura das peripécias, quando declara ao mesmo tempo não ser "nenhuma mulher da vida"
nem tampouco uma "santa de se pôr em
altar", extorquindo do narrador o comentário: "De sínteses não cuidava".
Além do mais, desengonçada e feia, não
apenas feia, mas superlativamente feia,
"de se ter pena de seu espelho". Amada
por Quim, transfigura-se e embeleza-se
por artes do olhar do amante, adquirindo requintes de porcelana e de marfim.
Tornando-se ela enfim "um angu grosso
em fôrma de pudim". Rita Rôla, Rita a
Rola ou Rola-a-Rita assimila-se a Lola-a-Lita, ou Lolalita, Lola ou Lita, Lola Lita
-como Quim pronunciava erradamente ("silabava") seu nome, substituindo
por proximidade sonora o fonema inexistente em sua língua de origem.
"Orientação" é o título que explora as virtualidades desse vocábulo e de sua relação com o Oriente, pois trata de um cidadão do Oriente, da civilização que traz em si e de seu choque com uma sertaneja; contrariando a expectativa, não é ele quem se acultura à sociedade inclusiva, mas ela que, bem ou mal, acaba por se aculturar a ele
Vistos de fora pelo narrador, os dois
constituem um par incongruente, "parecidos como uma rapadura e uma escada" (ou um espeto e um ovo, como se diz
mais correntemente), a pletora de "aa"
nos dois substantivos não suprindo o
fosso entre ambos. A incompatibilidade
surge na metáfora linguística que os declara, enquanto par, "til no i, pingo no a"
(em português, o til vai sobre o a, assim
como, em qualquer língua, o pingo sobre
o i e ainda se brinca com a frase feita "pôr
os pingos nos ii"), ou seja, algo inexistente e absurdo, embora expresso linguisticamente mediante dois oxímoros quiasmáticos, sendo o oxímoro, como se sabe,
uma figura retórica definida pela aproximação violenta de contrários.
O desentendimento entre ambos, acarretando o fim do matrimônio e a partida
de Quim, é atribuído a várias causas pouco definidas. Talvez a um excesso de diferença, o mesmo fator que de início os
atraíra mutuamente. A mão leve do autor deixa entrever que Quim transferia a
ela coisas de sua cultura ("ensinava-lhe
liqueliques, refinices que piqueniques e
jardins são das mais necessárias invenções?"). E que ela se apegava ao etnocentrismo, negador da humanidade ao rés-do-chão a que pertence a civilização de
Quim: ela "achava que o que há de mais
humano é a gente se sentar numa cadeira". E o acoima de "pagão".
Síntese impossível
Após a partida
de Quim, que não a contesta e abre mão
de tudo em seu favor, até da chácara, Rita
começa a mudar. "Nele não falava; muito demais". Perguntou pelo rumo da terra do Quim. A exemplo dele, deixou de
ser loquaz e passou a rir calada. E chorava, "num manso não se queixar sem
fim". Sua pele começa a adquirir tons de
açafrão. Lamenta não ter tido um filho, a
síntese impossível. E coroa a metamorfose, visível do exterior, mas pressupondo
algo interior, sua expressão corporal que
se altera para se assemelhar à de Quim:
mãos espalmadas no peito e o feitio de
andar "com passo enfeitadinho, emendado, reto, proprinhos pé e pé".
Culmina aí o processo de orientalização, ou seja, de aculturação às avessas:
em vez de ser Quim quem se adapte ao
sertão, é ela quem se adapta, por meio
dele, à China distante.
Olhemos mais de perto o trabalho com
a linguagem que permite essas leituras
do conto. Este autor se destaca por ser,
dentre os de língua portuguesa, aquele
que mais longe levou o risco da experimentação linguística. Em sua obra observam-se certas tendências predominantes na elaboração da linguagem.
Uma delas é a luta contra o lugar-comum, o clichê, que o faz optar, seja na
área vocabular ou na sintática, por duas
soluções: 1) recuperar o vocábulo perempto, que caiu em desuso, ou aquele
que só tem circulação limitada, por
exemplo no sertão, por ser um regionalismo, de uso geográfico circunscrito ou
restrito. A lembrar que, não só no Brasil,
mas sensivelmente neste país, que ambos podem coincidir. É no sertão, protegido das imigrações e da modernização,
que os arcaísmos são mais frequentes.
Ali a língua foi preservada, não propriamente em sua utópica pureza, mas
num certo patamar histórico; 2) inovar
mediante a criação de neologismos, ou
porque o preexistente não satisfaz ou como manifestação de um espírito lúdico
que se apropria do direito de brincar
com sons e sinais.
Então, para uma abordagem preliminar do curtíssimo conto "Orientação" temos como instrumento esses dois dados
da obra: 1) O recurso ao vocábulo arcaico
ou regional. Exemplo: (en)xacoca = desengonçada, desajeitada; 2) O recurso ao
neologismo; exemplo: felizquim = diminutivo de feliz, por analogia com outros
diminutivos da língua, apelando para o
morfema diminutivo coloquial -im; mas
ao mesmo tempo um "mot-valise", de feliz + Quim, nome próprio do protagonista, a quem se aplica o adjetivo.
No caso específico deste conto, o tratamento vocabular implica em mais outras
opções. "Orientação", por assim dizer,
orientaliza, ou achinesa, a narrativa entretecendo-a 1) de palavras e sintagmas
que evoquem coisas chinesas ou até japonesas, como leque, salamaleque, liqueliques, cabaia, zumbaia, quimão, rabicho, sol-nascente, bambus, porcelana,
marfim, pólvora, bússola, dragão, mandarim, zumbaia, arroz, mesuras; 2) de
sons que ressoem a matriz fônica constituída pelo par do nome do protagonista
e de seu gentílico: o Quim chim.
Começando, é claro, pela epígrafe:
"-Uê, ocê é o chim?
-Sou, sim, o chim sou.
O CULE CÃO",
que constitui, praticamente, um travalínguas, um jogo sonoro entre a fricativa
/ch/ e a sibilante /s/.
A referência apócrifa, evidentemente,
como aliás todas as demais epígrafes deste livro, está explorando o aportuguesamento das palavras "coolie" (ínfimo trabalhador) e "Khan" (chefe, comandante), aqui erigidas em oxímoro, expressando de saída uma incompatibilidade.
Sem esquecer que a maioria dos derivados do nome do país se escreve com "s" e
não com "c", pois vêm do latim "sina",
como se verá no emprego do vocábulo
dicionarizado "sínico" = adjetivo gentílico de China. Este indica algo feito com a
sutileza e a finura de um chinês (e não
com a falta de vergonha de um cão, como
em grego, seu modelo fonético e morfológico, seu homófono perfeito e imperfeito homógrafo, "cínico").
Dentre as impregnações dos sons de
Quim chim temos: fulano-da-china
(neologismo construído por analogia
com os banais negócio da China, laranja-da-China etc.), Tsing, chinês, chinfrim,
china, chino, felizquim, quimão, "Sim,
sim, sei...", o clique t's, t's, t's, o citado sínico. Acrescentem-se todas as aliterações e todos os ecos em "im".
Campanha contra clichês
A vasta
campanha empreendida contra os lugares-comuns ou clichês, que é um traço
distintivo da obra de Guimarães Rosa,
começa pelos vocábulos isolados e termina por frases completas.
Entre os muito simples, aparecem o
adjetivo "formigo", por mera troca do
morfema do feminino do substantivo
formiga para o masculino; ou "bizarrir",
contração do verbo bizarriar; ou "façatez", por supressão do prefixo privativo
"des". Nada disso existe em português.
Passemos aos mais complexos, mas
também de fácil decifração, não os havendo mais difíceis neste conto: "lunático-de-mel", em que as palavras existem,
mas não nessa combinação e muito menos como adjetivo de "lua-de-mel";
"pazpalhaço", "mot-valise" baseado na
paronomásia entre "paspalho", "palhaço" e "paz"; "coisinhiquices", derivando
de "coisa" um primeiro diminutivo "coisinha" e um segundo diminutivo "coisinhica", para depois construir um substantivo abstrato com o morfema de generalidade "ices"; "esquisitâncias",
montando um substantivo abstrato a
partir do adjetivo "esquisito", por analogia com outra terminação substantival,
"âncias", quando o normal é "esquisitice". E assim por diante.
No caso das frases feitas, cabe menção
a três: "Sua pólvora bem inventada" (por
ser a pólvora uma invenção reconhecidamente chinesa, contaminada pela hipérbole sarcástica preexistente na língua,
"inventou a pólvora"); o supracitado "til
no i, pingo no a"; e "de cúpula a fundo",
maneira menos banal de dizer "de alto a
baixo", em metonímias substituindo o
abstrato pelo concreto, transformando o
clichê francês "de fond en comble", mediante hábeis deslocamentos (trocando
de lugar os dois substantivos e traduzindo "comble" como cúpula), em inédita
expressão portuguesa.
Merecem exame à parte, porque fundadoras do enredo, as metáforas da incompatibilidade, erigidas em oxímoro:
todas aquelas que põem lado a lado
-melhor dizendo, frente a frente, porque a postura é de confronto- Quim e
Rita, rio e ponte, chão e cadeira, til e i,
pingo e a (forçando um pouco, i com til
= im, e a com pingo = o, pelo menos nas
línguas escandinavas).
Quanto ao significante, tudo deriva de
Quim chim, já determinado desde as primeiras linhas do conto por todos os "ii"
de seu ser de "mínima mímica". O conto
constrói uma relação de oposição que se
vai reiterando em todos os níveis imagens, metáforas, oxímoros -até chegar
ao fonêmico: i/o. Tudo converge para investir Quim na vogal /i/ de seu nome e
Rita Rola do mesmo modo na vogal /o/.
Isso já se encontra na frase, à maneira de
ditado ou provérbio, "O mundo do rio
não é o mundo da ponte". Avança pelo
resultado provisório do olhar apaixonado de Quim, constrangendo-a a refinar-se: "Angu grosso em fôrma de pudim".
Reforça-se nas coisas que Quim ensina a
Rita Rola: "Liqueliques, refinices... piqueniques e jardins". Ele é o das "esquisitâncias e coisinhiquezas", que após o
enlace fica "felizquim". E aparece manifestamente na cena do casamento. Nessa
cena, ele está cercado de "ii" e ela, cercada de "oo". Senão, vejamos: "O par o
compimpo": neologismo que conjuga o /
i/ e o / o/, pimpo sendo a forma contracta
de pimpão, papel que ambos conjuntamente estão fazendo naquele momento,
sendo pimpão (pimpona) = fanfarrão,
gabola, vaidoso, jactancioso, garrido, janota, engalanado. Há o verbo pimpar, sinônimo de pompear e pimponar, que
significa fazer-se de pimpão, exibir pompa, ostentar.
E mais, restringindo cada um a sua vogal exclusiva:
"Ele... aos pimpolins de gato, feliz como um assovio". Onde se pode entender
o neologismo como um "mot-valise",
que telescopa pimpo + pulinhos, este último na forma popular brasileira do diminutivo em im.
"Ela, pompososa, ovante feito galinha
que pôs" (a notar o jogo de palavras paronomástico em que um dos elementos
ovo está ausente).
Tudo se passa como se já por ocasião
dos esponsais estivesse instaurada a incompatibilidade, que levaria à dissolução do casal. E a síntese impossível é formulada toda em "ii" pela própria Rita no
fim do conto: "Tivesse tido um filho..."
Não contente com ter atingido a minimalidade do fonema, a diferença vai esbarrar em algo menor que o fonema, no
sinal gráfico: til e pingo.
Restando como única semelhança entre ambos as conversas de cócoras, postura habitual tanto de sertanejos quanto
de chineses. E o fonema /i/, do nome Rita, não se mostrou suficiente para permitir uma mitigação da diferença radical.
No dissídio entre protagonista e antagonista, absolutamente incompatíveis,
há dois momentos de porosidade, em
que eles não parecem tão impermeáveis.
No primeiro, exterior, é a visão apaixonada de Quim que metamorfoseia e aformoseia a mulher, "desenhada por seus
olhares". A tal ponto que mesmo os observadores percebem as mudanças:
"A gente achava-a de melhor parecer,
senão formosura. Tomava porcelana;
terracota, ao menos; ou recortada em
fosco marfim, mudada de cúpula a fundo. No que o chino imprimira mágica vital, à viva vista: ela, um angu grosso em
fôrma de pudim".
Mudança interior
No segundo momento, já partido Quim, é facultado ao
leitor um relance no âmago de Rita Rola.
Esse olhar nota uma outra fase de transformações: ela pára de falar tanto (à maneira de Quim, que era calado), "no sóbrio e ciente, e só rir". Adquire "reflexos
de açafrão" na pele. Mas o que se nota
por fora -inclusive as palmas da mão
no peito e o andar em linha reta com passo miúdo- corresponde a uma mudança interior, de algo que recebera de
Quim: "... como gorgulho no grão, grão
de fermento, fino de bússola, um mecanismo de consciência ou cócega".
Trata-se aqui de uma reativação da fórmula da imagem da coisa dentro da outra ou de algo que se internou no sujeito
e vai provocar a mudança, base de toda a
elaboração imagética do romance
"Grande Sertão: Veredas". Ainda reforçada pelo elemento ativo contido no
"fermento" e pelo redirecionamento
centrífugo indicado pela "bússola".
Bússola interna que não faltava a
Quim, um transeunte, que chega, fica e
se vai "vindo, vivido, ido", como diz o
conto logo no primeiro parágrafo, parodiando Júlio César. "Orientação" é o título que explora as virtualidades desse
vocábulo e de sua relação com o Oriente.
Pois trata de um cidadão do Oriente, da
civilização que traz em si e de seu choque com uma sertaneja. Contrariando a
expectativa, não é ele quem se acultura à
sociedade inclusiva, mas ela que, bem ou
mal, acaba por se aculturar a ele. Desorientada é ela, carecendo de orientação,
de rumo (depois da separação, ela pergunta de que banda fica a terra dele e
respondem-lhe apontando "o rumo... da
Extrema-Ásia"), enfim, metaforicamente, de uma invenção chinesa, a bússola.
Como se vê, antinacionalista e graciosamente anti-racista, o conto considera
que a miscigenação com o elemento alienígena não-branco, isto é, "amarelo",
nos melhora. E assim termina essa fábula de aculturação às avessas.
Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e crítica literária, autora, entre outros, de "A Donzela-Guerreira" (Ed. do Senac) e "Desconversa" (Ed. UFRJ).
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