|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ sociedade
Show de opulência e ostentação sem culpa definem
neomilionários e relegam temor do inferno aos ricos da velha economia
Uma publicidade de TV de uma firma de corretagem on line propõe-se a ajudar seus clientes a se adaptar à nova vida de milionários; seu slogan: "Você não está mais ao abrigo de se tornar rico!"
|
A nova economia e o fim do pugatório
Luiz Felipe de Alencastro
especial para a Folha
Num livro escrito 20 anos atrás,
Jacques le Goff estudou a invenção do purgatório, mostrando que, nos primeiros tempos do cristianismo, predominava o sistema dualista paraíso-inferno (1). Só no
final do século 12 definiu-se, no contexto
da reflexão teológica da escola da catedral de Notre Dame, em Paris, a nova
crença no purgatório, que mudaria a cartografia do além. Introduzida na liturgia
e na religiosidade, a idéia do purgatório
abriu diferentes possibilidades para a
prática social no Ocidente.
Na medida em que o castigo divino
passou a ser eventualmente transitório e
a alma do pecador pôde remir-se após a
morte pelas preces e obras caritativas
completadas em seu nome, o pecado se
incorporou na estratégia existencial, no
cálculo humano. De fato, com o dinheiro
e os bens acumulados em práticas pouco
cristãs, podia-se deixar renda destinada
a rezar missas e a adquirir indulgências
para o resgate da própria alma durante
seu trânsito passageiro no purgatório.
O inferno não aparecia mais como a
única alternativa a um paraíso que se afigurava muitas vezes inatingível. Em particular, as atividades bancárias empreitadas pelos cristãos, gerando a usura e a
avareza e por isso consideradas pecaminosas pela igreja, passaram a ser praticadas mais livremente depois da invenção
do purgatório, facilitando o desenvolvimento do capitalismo comercial e do capitalismo em geral.
Todavia continuou rolando a idéia do
mal, materializada pelos novos contornos que o diabo ganhava no Ocidente
medieval: um ser maligno e aliciante, capaz de assumir formas diferentes para
induzir ao pecado (2). Levando a tudo, o
dinheiro empurrava os homens para os
sete pecados capitais, conforme o preceito radical do Cristo ("é mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha do
que um rico entrar no reino dos céus").
Os regimes aristocráticos da época moderna legitimaram a riqueza fundiária
oriunda dos domínios senhoriais e
transmitida por herança, mas deixaram
sob suspeita, sobretudo nos países católicos, a acumulação de bens obtida por
meio da atividade mercantil. Mais tarde,
nos séculos 19 e 20, o enriquecimento
dos industriais sempre esteve associado,
de perto ou longe, à exploração dos trabalhadores.
Processo indenizatório
Embora as
igrejas reformadas recusassem a crença
no purgatório e -consoante a tese weberiana- o capitalismo tivesse encontrado mais estímulos nos países envolvidos pela ética protestante, esses países
conservaram critérios morais restritivos
ao acúmulo de riqueza. Tal o caso dos Estados Unidos, onde se iniciou um debate
histórico, jurídico e econômico de vastas
consequências, que também tem muito a
ver com o Brasil. Trata-se do tema da indenização dos americanos que descendem dos 560.000 escravos africanos introduzidos na América do Norte britânica e nos Estados Unidos entre 1700 e
1860. Um artigo na imprensa americana
recapitula a questão em pauta (3).
Malgrado diversas iniciativas precedentes, como a do deputado democrata
John Conyers Jr., autor de um projeto de
lei reapresentado regularmente desde
1989, visando a formar uma comissão no
Congresso para outorgar indenizações
aos descendentes dos escravos americanos, foram os recentes processos sobre a
indenização dos judeus espoliados pelos
nazistas que colocaram o tema na ordem
do dia. As discussões são complexas e
controvertidas, mas as Câmaras Municipais de algumas grandes cidades americanas (Chicago, Detroit, Cleveland e Dallas) já apóiam a idéia de que o governo
federal deveria estudar o assunto.
Noutro plano, advogados recolhem
material para processar alguns bancos
da Nova Inglaterra que alegadamente tiraram lucros diretos do tráfico negreiro.
Ao lado de outras reivindicações similares (dos nipo-americanos espoliados durante a Segunda Guerra ou das tribos indígenas pilhadas desde sempre), o debate sobre a indenização dos descendentes
dos escravos propicia uma revisão geral
da história, da riqueza e da identidade
nacional americana.
No Brasil, onde foram introduzidos
cerca de 4 milhões de escravos africanos
entre 1550 e 1860, sete vezes mais do que
nos Estados Unidos, um debate dessa
natureza sacudiria a carcaça de todo o
corpo empresarial do país. Para afastar a
ameaça do inferno, o patronato nacional
promoveria muitas obras caridosas em
favor das almas do purgatório.
Resta que essa querela sobre a licitude
da riqueza concerne sobretudo aos setores da velha economia. Na outra ponta
do mercado, a nova economia dá um
show de opulência bem resolvida, de riqueza desfrutada sem constrangimento.
Dopada pela valorização rápida das
ações, pelos ganhos das firmas "start-ups", uma camada de novos milionários
deita e rola no consumismo de luxo. Às
vezes, esses neomilionários preferem
também presentear-se com uma aposentadoria precoce.
Assim a Microsoft está assistindo a
uma série de pedidos de demissão de alguns de seus executivos importantes que
resolveram vender sua participação
acionária na empresa, granjeada à base
de "stock options" recebidas ao longo
dos anos como remuneração por seus
serviços, para gozar sua fortuna. Tendo-se valorizado 600% entre 1995 e 1999, as
ações da Microsoft tornaram um terço
de seus funcionários potencialmente milionários. Difícil segurar na empresa
uma parte desses funcionários, gente
prestemente enricada que decide abandonar o batente e rasgar a fantasia.
Na França, país meio travado pela
constrição de heranças históricas e comportamentos sociais que culpabilizam a
riqueza, o desbunde perdulário dos milionários da nova economia toma ares de
grande novidade. Autor de livros de referência sobre a moda e o individualismo,
o sociólogo Gilles Lipovetsky declarou,
numa entrevista recente ao jornal parisiense "Libération": "Está havendo uma
legitimação social do prazer". Segundo
ele, a queda consistente das taxas de desemprego derrubou o último embaraço social e psicológico à livre ostentação da
riqueza e à afirmação do "prazer no presente" (4). De fato, ao contrário dos anos
80, quando a ostentação dos ganhos dos
yuppies, fundados na especulação financeira, deixava o rastro dramático do desemprego, a nova economia, fundada
nos ganhos tecnológicos, evolui num
quadro de retomada econômica e de aumento crescente dos postos de trabalho.
Em todo caso, as marcas parisienses de
luxo -Dior, Vuitton, Guerlain, Kenzo- registraram altos lucros no primeiro semestre.
Os prazos de entrega das "yacht open",
lanchas conversíveis de alta velocidade,
muito na moda na Côte d'Azur, estão todos estourados diante da avalanche de
encomendas dos novos milionários.
Muitos pedem a adaptação de dois motores de helicóptero, junto dos motores
regulares dos barcos, para aumentar a
velocidade no mar. Os modelos de luxo
da Mercedes-Benz, Jaguar e BMW têm
compradores na lista de espera. Uma publicidade de TV de uma firma de corretagem on line propõe-se a ajudar seus
clientes a se adaptar à nova vida de milionários; seu slogan: "Você não está mais
ao abrigo de se tornar rico!" (5).
Gozo do luxo
Para todos os efeitos,
os milionários da nova economia filiam-se a uma casta de ricos que levantou os
embaraços ao gozo do luxo, jogando para o espaço o processo de exploração do
trabalho alheio, extirpando qualquer
culpabilidade, dando fim ao purgatório,
pois só os ricos da velha economia estão
sob a ameaça do inferno. O jogo é para
valer ou se trata de um ciclo de euforia de
um setor econômico sobrevalorizado e já
condenado a um ajuste brutal que acabará com essa farra toda?
Se for assim, a idéia do lucro inocente,
do capitalismo emancipado da exploração dos trabalhadores, irá à breca. E a
crença no purgatório renascerá. Os executivos da nova economia poderão se
consolar com a frase de Stendhal (1783-1842), retomada por Marguerite Yourcenar, sobre a felicidade dos homens na
Antiguidade, "quando os deuses não
eram mais temidos e o cristianismo ainda não tinha chegado".
Notas
1. Jacques le Goff, "La Naissance du Purgatoire"
(O Nascimento do Purgatório), Gallimard, 1981;
2. Robert Muchembled, "Une Histoire du Diable
-12 ème-20ème Siècle" (Uma História do Diabo
-Do Século 12 ao 20), Éditions du Seuil, 2000;
3. Diane Cardwell, "Seeking Out a Just Way To Make Amends for Slavery - The Idea of Reparations
for Blacks Is Gaining in Urgency, but a Knot of
Questions Remain, like: Which Blacks?" (Buscando um Modo Justo de Compensar a Escravidão),
"The New York Times", 12/08/2000;
4. Gilles Lipovetsky, "L'Ere du Vide - Essai sur l'Individualisme Contemporain" (A Era do Vazio - Ensaio sobre o Individualismo Contemporâneo), Gallimard, Paris, 1989, e "O Império do Efêmero",
Companhia das Letras;
5. "Libération" de 4/8/2000 e 18/9/2000.
Luiz Felipe de Alencastro é professor de história
do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes - Formação do Brasil
no Atlântico Sul" (Companhia das Letras).
Texto Anterior: + literatura - Walnice Nogueira Galvão: Mínima mímica Próximo Texto: + brasil 501 d.C. - Milton Santos: Altos e baixos na política Índice
|