São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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+ sociedade
Show de opulência e ostentação sem culpa definem neomilionários e relegam temor do inferno aos ricos da velha economia

Uma publicidade de TV de uma firma de corretagem on line propõe-se a ajudar seus clientes a se adaptar à nova vida de milionários; seu slogan: "Você não está mais ao abrigo de se tornar rico!"


A nova economia e o fim do pugatório

Luiz Felipe de Alencastro
especial para a Folha

Num livro escrito 20 anos atrás, Jacques le Goff estudou a invenção do purgatório, mostrando que, nos primeiros tempos do cristianismo, predominava o sistema dualista paraíso-inferno (1). Só no final do século 12 definiu-se, no contexto da reflexão teológica da escola da catedral de Notre Dame, em Paris, a nova crença no purgatório, que mudaria a cartografia do além. Introduzida na liturgia e na religiosidade, a idéia do purgatório abriu diferentes possibilidades para a prática social no Ocidente. Na medida em que o castigo divino passou a ser eventualmente transitório e a alma do pecador pôde remir-se após a morte pelas preces e obras caritativas completadas em seu nome, o pecado se incorporou na estratégia existencial, no cálculo humano. De fato, com o dinheiro e os bens acumulados em práticas pouco cristãs, podia-se deixar renda destinada a rezar missas e a adquirir indulgências para o resgate da própria alma durante seu trânsito passageiro no purgatório. O inferno não aparecia mais como a única alternativa a um paraíso que se afigurava muitas vezes inatingível. Em particular, as atividades bancárias empreitadas pelos cristãos, gerando a usura e a avareza e por isso consideradas pecaminosas pela igreja, passaram a ser praticadas mais livremente depois da invenção do purgatório, facilitando o desenvolvimento do capitalismo comercial e do capitalismo em geral. Todavia continuou rolando a idéia do mal, materializada pelos novos contornos que o diabo ganhava no Ocidente medieval: um ser maligno e aliciante, capaz de assumir formas diferentes para induzir ao pecado (2). Levando a tudo, o dinheiro empurrava os homens para os sete pecados capitais, conforme o preceito radical do Cristo ("é mais fácil um camelo passar no buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus"). Os regimes aristocráticos da época moderna legitimaram a riqueza fundiária oriunda dos domínios senhoriais e transmitida por herança, mas deixaram sob suspeita, sobretudo nos países católicos, a acumulação de bens obtida por meio da atividade mercantil. Mais tarde, nos séculos 19 e 20, o enriquecimento dos industriais sempre esteve associado, de perto ou longe, à exploração dos trabalhadores.

Processo indenizatório
Embora as igrejas reformadas recusassem a crença no purgatório e -consoante a tese weberiana- o capitalismo tivesse encontrado mais estímulos nos países envolvidos pela ética protestante, esses países conservaram critérios morais restritivos ao acúmulo de riqueza. Tal o caso dos Estados Unidos, onde se iniciou um debate histórico, jurídico e econômico de vastas consequências, que também tem muito a ver com o Brasil. Trata-se do tema da indenização dos americanos que descendem dos 560.000 escravos africanos introduzidos na América do Norte britânica e nos Estados Unidos entre 1700 e 1860. Um artigo na imprensa americana recapitula a questão em pauta (3).
Malgrado diversas iniciativas precedentes, como a do deputado democrata John Conyers Jr., autor de um projeto de lei reapresentado regularmente desde 1989, visando a formar uma comissão no Congresso para outorgar indenizações aos descendentes dos escravos americanos, foram os recentes processos sobre a indenização dos judeus espoliados pelos nazistas que colocaram o tema na ordem do dia. As discussões são complexas e controvertidas, mas as Câmaras Municipais de algumas grandes cidades americanas (Chicago, Detroit, Cleveland e Dallas) já apóiam a idéia de que o governo federal deveria estudar o assunto.
Noutro plano, advogados recolhem material para processar alguns bancos da Nova Inglaterra que alegadamente tiraram lucros diretos do tráfico negreiro. Ao lado de outras reivindicações similares (dos nipo-americanos espoliados durante a Segunda Guerra ou das tribos indígenas pilhadas desde sempre), o debate sobre a indenização dos descendentes dos escravos propicia uma revisão geral da história, da riqueza e da identidade nacional americana.
No Brasil, onde foram introduzidos cerca de 4 milhões de escravos africanos entre 1550 e 1860, sete vezes mais do que nos Estados Unidos, um debate dessa natureza sacudiria a carcaça de todo o corpo empresarial do país. Para afastar a ameaça do inferno, o patronato nacional promoveria muitas obras caridosas em favor das almas do purgatório.
Resta que essa querela sobre a licitude da riqueza concerne sobretudo aos setores da velha economia. Na outra ponta do mercado, a nova economia dá um show de opulência bem resolvida, de riqueza desfrutada sem constrangimento. Dopada pela valorização rápida das ações, pelos ganhos das firmas "start-ups", uma camada de novos milionários deita e rola no consumismo de luxo. Às vezes, esses neomilionários preferem também presentear-se com uma aposentadoria precoce.
Assim a Microsoft está assistindo a uma série de pedidos de demissão de alguns de seus executivos importantes que resolveram vender sua participação acionária na empresa, granjeada à base de "stock options" recebidas ao longo dos anos como remuneração por seus serviços, para gozar sua fortuna. Tendo-se valorizado 600% entre 1995 e 1999, as ações da Microsoft tornaram um terço de seus funcionários potencialmente milionários. Difícil segurar na empresa uma parte desses funcionários, gente prestemente enricada que decide abandonar o batente e rasgar a fantasia.
Na França, país meio travado pela constrição de heranças históricas e comportamentos sociais que culpabilizam a riqueza, o desbunde perdulário dos milionários da nova economia toma ares de grande novidade. Autor de livros de referência sobre a moda e o individualismo, o sociólogo Gilles Lipovetsky declarou, numa entrevista recente ao jornal parisiense "Libération": "Está havendo uma legitimação social do prazer". Segundo ele, a queda consistente das taxas de desemprego derrubou o último embaraço social e psicológico à livre ostentação da riqueza e à afirmação do "prazer no presente" (4). De fato, ao contrário dos anos 80, quando a ostentação dos ganhos dos yuppies, fundados na especulação financeira, deixava o rastro dramático do desemprego, a nova economia, fundada nos ganhos tecnológicos, evolui num quadro de retomada econômica e de aumento crescente dos postos de trabalho. Em todo caso, as marcas parisienses de luxo -Dior, Vuitton, Guerlain, Kenzo- registraram altos lucros no primeiro semestre. Os prazos de entrega das "yacht open", lanchas conversíveis de alta velocidade, muito na moda na Côte d'Azur, estão todos estourados diante da avalanche de encomendas dos novos milionários. Muitos pedem a adaptação de dois motores de helicóptero, junto dos motores regulares dos barcos, para aumentar a velocidade no mar. Os modelos de luxo da Mercedes-Benz, Jaguar e BMW têm compradores na lista de espera. Uma publicidade de TV de uma firma de corretagem on line propõe-se a ajudar seus clientes a se adaptar à nova vida de milionários; seu slogan: "Você não está mais ao abrigo de se tornar rico!" (5).

Gozo do luxo
Para todos os efeitos, os milionários da nova economia filiam-se a uma casta de ricos que levantou os embaraços ao gozo do luxo, jogando para o espaço o processo de exploração do trabalho alheio, extirpando qualquer culpabilidade, dando fim ao purgatório, pois só os ricos da velha economia estão sob a ameaça do inferno. O jogo é para valer ou se trata de um ciclo de euforia de um setor econômico sobrevalorizado e já condenado a um ajuste brutal que acabará com essa farra toda?
Se for assim, a idéia do lucro inocente, do capitalismo emancipado da exploração dos trabalhadores, irá à breca. E a crença no purgatório renascerá. Os executivos da nova economia poderão se consolar com a frase de Stendhal (1783-1842), retomada por Marguerite Yourcenar, sobre a felicidade dos homens na Antiguidade, "quando os deuses não eram mais temidos e o cristianismo ainda não tinha chegado".


Notas
1. Jacques le Goff, "La Naissance du Purgatoire" (O Nascimento do Purgatório), Gallimard, 1981;
2. Robert Muchembled, "Une Histoire du Diable -12 ème-20ème Siècle" (Uma História do Diabo -Do Século 12 ao 20), Éditions du Seuil, 2000;
3. Diane Cardwell, "Seeking Out a Just Way To Make Amends for Slavery - The Idea of Reparations for Blacks Is Gaining in Urgency, but a Knot of Questions Remain, like: Which Blacks?" (Buscando um Modo Justo de Compensar a Escravidão), "The New York Times", 12/08/2000;
4. Gilles Lipovetsky, "L'Ere du Vide - Essai sur l'Individualisme Contemporain" (A Era do Vazio - Ensaio sobre o Individualismo Contemporâneo), Gallimard, Paris, 1989, e "O Império do Efêmero", Companhia das Letras;
5. "Libération" de 4/8/2000 e 18/9/2000.


Luiz Felipe de Alencastro é professor de história do Brasil na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de "O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul" (Companhia das Letras).


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