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+ brasil 501 d.C.
O fato de que hoje tudo é política traz consigo
consequências positivas, entre elas a aceleração na
formação da consciência das camadas populares
Altos e baixos na política
Milton Santos
É pelo menos insólita a insistência
dos nossos círculos oficiais em
querer separar, de modo absoluto,
o que é político do que não é. Assim, toda ação sindical, toda reclamação
da igreja, em suma, todo movimento social, ao postular mudanças, é criticado
como inadequado e até mesmo hostil à
democracia, já que não lhe cabe fazer o
que chamam de política. Ao contrário, as
atividades dos lobbies e as exigências de
reforma do Estado feitas pelas empresas
não são tidas como atividades políticas.
Essa parcialidade é tanto mais gritante
quando todos sabemos que o essencial
na produção da política do Estado tem
como atores principais as grandes empresas, cabendo aos políticos propriamente ditos e ao aparelho do Estado um
papel de figurantes secundários, quando
não de meros porta-vozes.
A política se caracteriza como exercício
de uma ação ou defesa de uma idéia destinada a mudar o curso da história. No
mundo da globalização, onde a técnica e
o discurso são dados obrigatórios das
atividades hegemônicas, o induzimento
à política é exponencial. O mundo da técnica cientificizada é também o mundo
das regras, de cujo uso adequado depende a maior ou menor eficácia dos instrumentos disponíveis.
Técnica e política
Nas condições
atuais, as técnicas presentes na fábrica e
no escritório ou incorporadas ao próprio
solo como infra-estruturas acabam por
condicionar as formas de trabalho, as relações sociais e a vida cotidiana, já que
constituem condições para os comportamentos, permitindo ou proibindo as
ações, segundo a posição de cada qual na
escala social e segundo a cota de cidadania que lhe cabe. Tudo isso é política. As
técnicas sugerem o que é possível fazer,
mas é a política que define a participação
efetiva dos trabalhadores (e do capital)
no produto final.
Essa relação entre o mundo do trabalho e o mundo da política, ampliada com
a generalização da técnica, fica ainda
mais clara numa situação em que o emprego se tornou crítico, levando a uma
ânsia de entender melhor por que as coisas são assim. As "ideologias" que se interpõem entre o trabalho e o capital, o
trabalho e as coisas, o trabalho e a vida
existem para mascarar essa situação.
Mas já não conseguem enganar. É desse
modo que se alimenta o processo que leva à conscientização.
Nesse processo, o território tem um
papel privilegiado porque, hoje, um dado central da explicação do trabalho é
dado pelo que chamamos de tecnoesfera
-a esfera do mundo técnico que se superpõe e tantas vezes substitui a natureza-, que passa a ter um grande significado na redefinição do fenômeno político. Por isso cada pedaço do território
tem uma relevância política específica,
exigindo um discurso específico.
Em todos os casos, duas situações-limite são possíveis. Uma é a descoberta
completa do que, nas situações vividas, é
o verdadeiro. A outra é o envenenamento dos espíritos pela ideologia e a propaganda e a turvação da consciência. Essas
são situações ideais. A realidade é a multiplicidade de combinações que caracterizam a geografia política de um país, de
um lugar e do mundo.
Paralelamente, são dois os comportamentos políticos, igualmente esquemáticos. Vamos simplesmente chamá-los de
política dos de cima e política dos de baixo. No primeiro caso, que reúne as questões das grandes empresas e do aparelho
do Estado, se trata geralmente de uma
atividade sem preocupação com a busca
de um destino. Ela se constitui dentro de
um sistema que é solidamente estabelecido, funcionalmente autônomo e auto-referido. Daí a verdadeira arrogância
com a qual se impõe à nação, dizendo representá-la, numa atividade dominadora, articulada e legitimada pelas formas
jurídicas.
Mas trata-se da política como um simples jogo de poder, um vale-tudo, em que
o essencial são os resultados imediatos,
movidos no plano econômico pela busca
do ganho desenfreado e no plano político por preocupações partidárias, setoriais e por interesses frequentemente anti-sociais. Trata-se de mera politicaria,
ainda que, para se identificar, na propaganda oficial ou oficiosa, usurpe e utilize
a palavra política.
No segundo caso, há uma busca de
coerência entre o interesse do maior número de pessoas e a elaboração de novas
idéias e novos projetos. A atividade correspondente reúne movimentos formais
ou informais, entidades estruturadas e
também vozes dissonantes, todos empenhados, fervorosamente, numa atividade nobre, generosa, pedagógica, mas
sem os meios materiais, jurídicos e políticos de sua realização política.
É a razão pela qual os de baixo mostram-se frequentemente incapazes de
uma articulação mais ampla e continuada e, em consequência, encontram dificuldades tanto para propor como para
levar adiante ações políticas mais válidas.
O jogo de forças é claramente hostil a esta última, pois os instrumentos de poder
são legalmente reservados a um certo tipo de atores e recusados aos outros, inclusive com o argumento de que a estes
não cabe fazer política, devendo se contentar com postulações corporativas,
portanto ainda mais isoladas.
Pode-se, todavia, acreditar que uma
outra situação pode ser criada. O fato de
que hoje tudo é política traz consigo consequências positivas, entre elas a aceleração na formação da consciência das camadas populares. O Brasil dos últimos
anos vem revelando movimentos ainda
desconexos, mas profundos, de recusa à
aceitação do modelo imposto.
Uma outra evolução
As próprias
formas recentemente adquiridas pelo
trabalho e pelo não-trabalho, a maneira
como a vida cotidiana se dá, o uso contraditório da informação e o papel revelador dos lugares apontam para uma outra evolução, na qual o papel da própria
política dos de cima revela um movimento dialético. O conjunto de circunstâncias que vivemos provoca impotência
e revolta, ressentimento e desesperança,
mas também abre a porta para uma nova
visibilidade do verdadeiro significado
das relações sociais dominantes.
Os pobres e grande parcela das classes
médias ganham consciência de que a
manutenção do atual estado de coisas é
apenas possível porque violências novas
são inventadas, ainda que venham revestidas com a capa da legalidade. Todavia o
discurso que as legitima é cada vez menos aceito.
A reação inclui manifestações de negatividade e de positividade. A negatividade em estado puro é a violência em suas
diferentes denominações. E há, também,
formas mistas, como o voto útil, a demanda por realizações materiais etc. Tais
manifestações de negatividade são geralmente animadas pelo sentido de urgência que a precariedade da vida impõe aos
que estão embaixo e não encontram a
forma ou a força para se juntar às manifestações de positividade.
Estas começam geralmente por uma
reflexão, espontânea ou induzida, quanto à sua própria situação na sociedade, e
tanto podem ter a forma de uma procura
por novas formas de ação como por uma
reflexão silenciosa, que é promessa de
uma ação política diferente. As manifestações de positividade podem, porém,
tomar forma de ação organizada, como
nas igrejas, nos sindicatos e em outras
instituições da sociedade civil, como as
associações de bairro, nos grupos de
sem-teto, sem-emprego, sem-escola, entre os quais o movimento dos sem-terra
ganhou um valor emblemático.
Parece evidente que a descoberta de
outros valores, outras possibilidades e o
desejo de uma vida política mais digna
ganha corpo na sociedade brasileira. As
formas tradicionais de fazer política são
um modelo de atraso, pois a canalização
eficaz das queixas e reivindicações dos de
baixo é impedida pela política dos de cima. É a partir dessas constatações que os
partidos do progresso e os setores de boa
vontade de alguns outros podem entregar-se à uma tarefa de renovação, facilitada pelo fato de que, em tempos de globalização, tudo é política.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, autor de, entre outros, "A Natureza do Espaço - Técnica e Tempo -Razão e Emoção" (Ed. Hucitec) e "Por Uma Outra Globalização - Do Pensamento Único à Consciência
Universal" (Ed. Record).
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