São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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+ brasil 501 d.C.
O fato de que hoje tudo é política traz consigo consequências positivas, entre elas a aceleração na formação da consciência das camadas populares
Altos e baixos na política

Milton Santos

É pelo menos insólita a insistência dos nossos círculos oficiais em querer separar, de modo absoluto, o que é político do que não é. Assim, toda ação sindical, toda reclamação da igreja, em suma, todo movimento social, ao postular mudanças, é criticado como inadequado e até mesmo hostil à democracia, já que não lhe cabe fazer o que chamam de política. Ao contrário, as atividades dos lobbies e as exigências de reforma do Estado feitas pelas empresas não são tidas como atividades políticas. Essa parcialidade é tanto mais gritante quando todos sabemos que o essencial na produção da política do Estado tem como atores principais as grandes empresas, cabendo aos políticos propriamente ditos e ao aparelho do Estado um papel de figurantes secundários, quando não de meros porta-vozes. A política se caracteriza como exercício de uma ação ou defesa de uma idéia destinada a mudar o curso da história. No mundo da globalização, onde a técnica e o discurso são dados obrigatórios das atividades hegemônicas, o induzimento à política é exponencial. O mundo da técnica cientificizada é também o mundo das regras, de cujo uso adequado depende a maior ou menor eficácia dos instrumentos disponíveis.

Técnica e política
Nas condições atuais, as técnicas presentes na fábrica e no escritório ou incorporadas ao próprio solo como infra-estruturas acabam por condicionar as formas de trabalho, as relações sociais e a vida cotidiana, já que constituem condições para os comportamentos, permitindo ou proibindo as ações, segundo a posição de cada qual na escala social e segundo a cota de cidadania que lhe cabe. Tudo isso é política. As técnicas sugerem o que é possível fazer, mas é a política que define a participação efetiva dos trabalhadores (e do capital) no produto final. Essa relação entre o mundo do trabalho e o mundo da política, ampliada com a generalização da técnica, fica ainda mais clara numa situação em que o emprego se tornou crítico, levando a uma ânsia de entender melhor por que as coisas são assim. As "ideologias" que se interpõem entre o trabalho e o capital, o trabalho e as coisas, o trabalho e a vida existem para mascarar essa situação. Mas já não conseguem enganar. É desse modo que se alimenta o processo que leva à conscientização. Nesse processo, o território tem um papel privilegiado porque, hoje, um dado central da explicação do trabalho é dado pelo que chamamos de tecnoesfera -a esfera do mundo técnico que se superpõe e tantas vezes substitui a natureza-, que passa a ter um grande significado na redefinição do fenômeno político. Por isso cada pedaço do território tem uma relevância política específica, exigindo um discurso específico. Em todos os casos, duas situações-limite são possíveis. Uma é a descoberta completa do que, nas situações vividas, é o verdadeiro. A outra é o envenenamento dos espíritos pela ideologia e a propaganda e a turvação da consciência. Essas são situações ideais. A realidade é a multiplicidade de combinações que caracterizam a geografia política de um país, de um lugar e do mundo. Paralelamente, são dois os comportamentos políticos, igualmente esquemáticos. Vamos simplesmente chamá-los de política dos de cima e política dos de baixo. No primeiro caso, que reúne as questões das grandes empresas e do aparelho do Estado, se trata geralmente de uma atividade sem preocupação com a busca de um destino. Ela se constitui dentro de um sistema que é solidamente estabelecido, funcionalmente autônomo e auto-referido. Daí a verdadeira arrogância com a qual se impõe à nação, dizendo representá-la, numa atividade dominadora, articulada e legitimada pelas formas jurídicas. Mas trata-se da política como um simples jogo de poder, um vale-tudo, em que o essencial são os resultados imediatos, movidos no plano econômico pela busca do ganho desenfreado e no plano político por preocupações partidárias, setoriais e por interesses frequentemente anti-sociais. Trata-se de mera politicaria, ainda que, para se identificar, na propaganda oficial ou oficiosa, usurpe e utilize a palavra política. No segundo caso, há uma busca de coerência entre o interesse do maior número de pessoas e a elaboração de novas idéias e novos projetos. A atividade correspondente reúne movimentos formais ou informais, entidades estruturadas e também vozes dissonantes, todos empenhados, fervorosamente, numa atividade nobre, generosa, pedagógica, mas sem os meios materiais, jurídicos e políticos de sua realização política. É a razão pela qual os de baixo mostram-se frequentemente incapazes de uma articulação mais ampla e continuada e, em consequência, encontram dificuldades tanto para propor como para levar adiante ações políticas mais válidas. O jogo de forças é claramente hostil a esta última, pois os instrumentos de poder são legalmente reservados a um certo tipo de atores e recusados aos outros, inclusive com o argumento de que a estes não cabe fazer política, devendo se contentar com postulações corporativas, portanto ainda mais isoladas. Pode-se, todavia, acreditar que uma outra situação pode ser criada. O fato de que hoje tudo é política traz consigo consequências positivas, entre elas a aceleração na formação da consciência das camadas populares. O Brasil dos últimos anos vem revelando movimentos ainda desconexos, mas profundos, de recusa à aceitação do modelo imposto.

Uma outra evolução
As próprias formas recentemente adquiridas pelo trabalho e pelo não-trabalho, a maneira como a vida cotidiana se dá, o uso contraditório da informação e o papel revelador dos lugares apontam para uma outra evolução, na qual o papel da própria política dos de cima revela um movimento dialético. O conjunto de circunstâncias que vivemos provoca impotência e revolta, ressentimento e desesperança, mas também abre a porta para uma nova visibilidade do verdadeiro significado das relações sociais dominantes.
Os pobres e grande parcela das classes médias ganham consciência de que a manutenção do atual estado de coisas é apenas possível porque violências novas são inventadas, ainda que venham revestidas com a capa da legalidade. Todavia o discurso que as legitima é cada vez menos aceito.
A reação inclui manifestações de negatividade e de positividade. A negatividade em estado puro é a violência em suas diferentes denominações. E há, também, formas mistas, como o voto útil, a demanda por realizações materiais etc. Tais manifestações de negatividade são geralmente animadas pelo sentido de urgência que a precariedade da vida impõe aos que estão embaixo e não encontram a forma ou a força para se juntar às manifestações de positividade.
Estas começam geralmente por uma reflexão, espontânea ou induzida, quanto à sua própria situação na sociedade, e tanto podem ter a forma de uma procura por novas formas de ação como por uma reflexão silenciosa, que é promessa de uma ação política diferente. As manifestações de positividade podem, porém, tomar forma de ação organizada, como nas igrejas, nos sindicatos e em outras instituições da sociedade civil, como as associações de bairro, nos grupos de sem-teto, sem-emprego, sem-escola, entre os quais o movimento dos sem-terra ganhou um valor emblemático.
Parece evidente que a descoberta de outros valores, outras possibilidades e o desejo de uma vida política mais digna ganha corpo na sociedade brasileira. As formas tradicionais de fazer política são um modelo de atraso, pois a canalização eficaz das queixas e reivindicações dos de baixo é impedida pela política dos de cima. É a partir dessas constatações que os partidos do progresso e os setores de boa vontade de alguns outros podem entregar-se à uma tarefa de renovação, facilitada pelo fato de que, em tempos de globalização, tudo é política.


Milton Santos é geógrafo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, autor de, entre outros, "A Natureza do Espaço - Técnica e Tempo -Razão e Emoção" (Ed. Hucitec) e "Por Uma Outra Globalização - Do Pensamento Único à Consciência Universal" (Ed. Record).


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