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Ponto de fuga
Sons alucinados
Jorge Coli
especial para a Folha
Até algumas décadas atrás, os espetáculos de ópera eram, em média, assim:
diante de um cenário kitsch, acompanhados por charangas detestáveis, os
cantores, entregues a si mesmos, evoluíam como queriam.
A "Lucia di Lammermoor", recentemente apresentada no Municipal de
São Paulo, ressuscitou esses modos
medíocres e arcaicos. Porém os intérpretes principais foram extraordinários. Os defeitos, então, passaram a não
importar mais.
Em 1995, June Anderson, a protagonista, interpretara, em Paris, o mesmo
papel, numa montagem que causou
sensação. Durante a "cena da loucura",
a cantora devia atravessar, bem lá no alto, uma passarela estreita; o público,
mais preocupado com um possível acidente, esquecia de ouvir. Em São Paulo,
ao contrário, cada inflexão, cada nuança sonora, foi percebida plenamente.
Desde os tempos da música barroca,
e avançando pelo romantismo adentro,
que os vocalises, isto é, o canto sem palavras, feito apenas de vogais, eram
concebidos como a expressão direta
dos fortes movimentos da alma, uma
espécie de atalho entre o coração e os
sons, sem passar pela mediação, significante e racional, da palavra.
Muitas vezes se diz, de modo apressado, que esses vocalises são apenas malabarismos vocais, piruetas para obter
o sucesso do público. Eles podem ser isso também, mas quando compreendidos de maneira plenamente musical e
dramática, se tornam a voz mais instintivamente profunda das paixões, das
cóleras, das loucuras que não sabem se
exprimir por nomes.
Patativas - Um espetáculo de ópera
vale quando uma eletricidade inexplicável faz passar correntes de vibrações.
É um mistério: às vezes, a melhor apresentação, os melhores intérpretes terminam por resultar numa frieza indiferente. Outras vezes, uma produção
mais desigual alcança esse ponto nevrálgico que arrebata.
Na "Lucia" de São Paulo os quatro
cantores principais entraram em sintonia exaltada. June Anderson sempre
demonstrou irregularidades de emissão vocal, mas assume sua música com
a afirmação e intensidade que a tornaram uma das primeiras cantoras de
nosso tempo. O tenor, Lopardo, tingiu
de matizes em sua cena final, lembrando Schipa. O baixo, Szkafarowsky, é do
mesmo naipe. Todos eles são artistas
consagrados, exceto Mariuz Kwicen,
em início de carreira: foi uma plena revelação.
Faz muitos anos que a ópera vem sofrendo com a falta de bons barítonos;
Kwicen levou o público para as épocas
lendárias das grandes vozes. A beleza
de seu timbre evoca Bastianini, sem
empalidecer; a segurança de sua técnica permite pressagiá-lo como uma das
futuras estrelas do canto. Enquanto
seus cachês não voam para a estratosfera, ele bem que poderia ser solicitado,
no Brasil, para os papéis de Carlos Gomes: Gonzales, Masaniello, Iberê.
Sexo - "Manon Lescaut", a primeira
ópera importante de Giacomo Puccini
(1858-1924), atinge uma densidade orgástica assustadora: os sons inoculam,
sem cessar, dentro do amor, uma atração física brutal. A gravação de referência é, sem dúvida, a de Callas, sob a regência de Serafin (1957).
A Deutsche Grammophon lança,
agora, uma versão com Maria Guleghina no papel-título. Diante da outra Maria, ela parece afetada, mas a direção de
Muti a eleva, graças a seu misto de vitalidade e poesia. José Cura, ainda desdenhado por alguns críticos, se mostra fenomenal: seu Des Grieux é um marco.
Achado - A música de Saverio Mercadante (1795-1870) foi para as gavetas da
história. Algumas gravações piratas
permitiram a descoberta de uma ou
outra obra, como "Il Giuramento", em
medíocre qualidade técnica. Graças ao
festival de Wexford (Irlanda) especializado em óperas raras, foi editado em
CD, pela Marco Polo, "Elena da Feltre",
composição que data de 1838. Sua audição suscita imediatamente a pergunta:
como é possível que uma obra tão admirável tenha sido assim esquecida?
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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