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+ primeira leitura
Leia abaixo trecho de "Projeto e Destino", que está saindo
pela editora Ática, em que o historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan
discute as concepções urbanísticas de Le Courbusier e Gropius
Arquitetura contra a catástrofe
Eis por que a obra dos dois maiores protagonistas
da arquitetura moderna européia, Le Corbusier
(1887-1965) e Gropius (1883-1969), ataca ainda
mais diretamente a situação: na raiz de sua atividade está a consciência de um drama que amadurece,
de uma luta da qual não se pode ser apenas os árbitros,
mas é moralmente necessário participar. Diferem os
pressupostos, diferem os meios, mas o objetivo é um só:
ensinar a viver segundo a razão, para que seja evitada
uma nova e mais trágica catástrofe.
Le Corbusier trabalha numa França que venceu a
guerra, mas não resolveu seus problemas; Gropius, numa Alemanha que perdeu a guerra e está igualmente
ameaçada pela revolução e pela reação. Le Corbusier
tem atrás de si o otimismo social de Jean-Jacques Rousseau e sonha com uma civilização que seja verdadeiramente uma segunda natureza, um estado de perene
beatitude, o fim de todos os problemas; Gropius tem
atrás de si a dura crítica econômica dos socialistas alemães e projeta uma sociedade que seja capaz de resolver
com as próprias forças os próprios problemas, à medida que se vão colocando. Le Corbusier tem um projeto,
Gropius tem um método. Le Corbusier faz propaganda,
uma ardente, genial, admirável propaganda. Gropius
faz teoria e didática, uma rigorosa, persuasiva, mas revolucionária didática.
Cubismo e figurativismo
Le Corbusier aceita
sem reservas a experiência formal do cubismo, porque
acredita que o cubismo é uma linguagem figurativa internacional e que esta é a condição necessária de um entendimento mais cordial entre os povos; Gropius está
convencido de que não basta uma língua, é preciso que
surja uma consciência comum, e de que a arquitetura
deve ajudar os homens a se colocarem na mesma posição diante do problema da realidade, a alcançarem um
mesmo grau de clareza e de racionalidade.
Como o cubismo, a arquitetura de Le Corbusier quer
renovar a visão do mundo sem comprometer seus valores fundamentais. Evidentemente, os sistemas tradicionais das proporções, em que se concretizava a idéia
clássica do belo, exprimiam uma concepção do mundo
mais limitada que a atual; mas também a experiência do
mundo atual deve poder exprimir-se em sistemas proporcionais, em claras relações de linhas, de volumes e
de cores. Ao termo de seu processo, Le Corbusier se encontra numa posição fundamentalmente clássica; é um
classicismo sem frisos, ordens, colunas, mas igualmente certo dos valores fundamentais, em certo sentido,
igualmente naturalista: o equilíbrio dos volumes, o harmônico desdobrar-se das superfícies, a clareza das linhas simples e das proporções claras, a "beleza" do problema bem colocado são apenas o segredo de um novo
acordo entre o homem e o mundo natural.
Tudo, para ele, torna-se fácil, lógico, espontâneo: talvez demais. Renascem os problemas: se os novos meios
da técnica produtiva podem assegurar o bem-estar e a
felicidade universais, por que então as guerras se sucedem às guerras, e aquela técnica produz canhões em vez
de casas? (...) O seu ideal urbanístico -utópico acordo
entre as duras exigências da civilização moderna e uma
natureza idílica, solar, mediterrânea- é a Ville Radieuse, uma espécie de cidade do sol; mas a "Unité d'Habitation", que, após décadas de luta, consegue finalmente
realizar em Marselha, é só a comemoração desse ideal,
nada mais senão a forma menos inatural e desumana
do aglomerado das cidades industriais modernas. O seu
ideal é a ordem, mas uma ordem formal, que supera os
problemas em vez de enfrentá-los na sua concretude.
Arquitetura para a dignidade
A de Gropius,
por seu turno, passada através das experiências amargas do expressionismo e do rigor das primeiras investigações formais abstratas, não é uma arquitetura para
uma sociedade que tenha, por mera hipótese, alcançado
a harmonia e a felicidade.
É uma arquitetura que quer ajudar os homens a defender, num mundo cheio de ameaças, numa sociedade
pronta a todas as involuções, o sentido da dignidade e
da liberdade humanas; a realizar na relação e na função
sociais aquela democracia que Frank Lloyd Wright confia a um sentimento religioso, a uma mística comunhão
com a realidade; a construir-se um mundo de vida lúcido, severo, consciente, que iniba a insurgência dos instintos anti-sociais.
Se tanto Wright quanto Le Corbusier aspiram, no
fundo, a exprimir em formas ainda monumentais os
ideais de uma sociedade democrática, Gropius pensa
que uma sociedade democrática não pode se exprimir
em formas monumentais, porque uma sociedade democrática é uma sociedade funcional, e a monumentalidade é o oposto da função.
Cidade verdadeiramente moderna
A pureza, a
nítida perfeição das estruturas, a clareza do desenho
construtivo de Gropius não nascem nem da abstrata
formulação geométrica de De Stjil nem da satisfação do
"problema bem colocado"; nascem da vontade de criar
no edifício o instrumento mais apropriado para um
conjunto coordenado de funções sociais. O seu ideal urbanístico não é uma cidade de utopia, mas uma cidade
verdadeiramente moderna, na qual a função civil é pensada para explicar-se fora de todo princípio de autoridade, e o bem-estar é só a condição e o reflexo de uma
condição de dignidade.
A sua obra se desenvolve segundo uma linha reta,
coerentíssima; seu objeto é criar tipos arquitetônicos
correspondentes às diferentes funções de uma sociedade bem organizada, substituir a mera arquitetura, a monumentalidade, por um "princípio de projetação" que
exprima a construtividade interna, o contínuo determinar-se e o inevitável transformar-se das estruturas sociais. E uma vez que esse contínuo construir-se da sociedade não passa finalmente de um contínuo educar-se ou progredir, a função educativa, entendida no seu
sentido mais amplo, como suprema função social, torna-se o princípio ativo do urbanismo de Gropius.
A escola é o encaminhamento à atividade produtiva,
uma sociedade "in nuce"; a fábrica é o centro da vida social, junto com os locais de trabalho; o teatro não é apenas o lugar do lazer, mas, profundamente reformado
nos seus processos, o lugar onde poderão ser reintegradas as faculdade sensoriais e fantásticas frustadas pelo
mecanicismo dos processos operativos industriais; a
casa, enfim, responde às exigências concretas e não
mais às ambições das diferentes classes sociais.
Trecho do ensaio "A Arquitetura Moderna", de "Projeto e Destino".
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