São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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Leia abaixo trecho de "Projeto e Destino", que está saindo pela editora Ática, em que o historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan discute as concepções urbanísticas de Le Courbusier e Gropius
Arquitetura contra a catástrofe

Eis por que a obra dos dois maiores protagonistas da arquitetura moderna européia, Le Corbusier (1887-1965) e Gropius (1883-1969), ataca ainda mais diretamente a situação: na raiz de sua atividade está a consciência de um drama que amadurece, de uma luta da qual não se pode ser apenas os árbitros, mas é moralmente necessário participar. Diferem os pressupostos, diferem os meios, mas o objetivo é um só: ensinar a viver segundo a razão, para que seja evitada uma nova e mais trágica catástrofe. Le Corbusier trabalha numa França que venceu a guerra, mas não resolveu seus problemas; Gropius, numa Alemanha que perdeu a guerra e está igualmente ameaçada pela revolução e pela reação. Le Corbusier tem atrás de si o otimismo social de Jean-Jacques Rousseau e sonha com uma civilização que seja verdadeiramente uma segunda natureza, um estado de perene beatitude, o fim de todos os problemas; Gropius tem atrás de si a dura crítica econômica dos socialistas alemães e projeta uma sociedade que seja capaz de resolver com as próprias forças os próprios problemas, à medida que se vão colocando. Le Corbusier tem um projeto, Gropius tem um método. Le Corbusier faz propaganda, uma ardente, genial, admirável propaganda. Gropius faz teoria e didática, uma rigorosa, persuasiva, mas revolucionária didática.

Cubismo e figurativismo
Le Corbusier aceita sem reservas a experiência formal do cubismo, porque acredita que o cubismo é uma linguagem figurativa internacional e que esta é a condição necessária de um entendimento mais cordial entre os povos; Gropius está convencido de que não basta uma língua, é preciso que surja uma consciência comum, e de que a arquitetura deve ajudar os homens a se colocarem na mesma posição diante do problema da realidade, a alcançarem um mesmo grau de clareza e de racionalidade. Como o cubismo, a arquitetura de Le Corbusier quer renovar a visão do mundo sem comprometer seus valores fundamentais. Evidentemente, os sistemas tradicionais das proporções, em que se concretizava a idéia clássica do belo, exprimiam uma concepção do mundo mais limitada que a atual; mas também a experiência do mundo atual deve poder exprimir-se em sistemas proporcionais, em claras relações de linhas, de volumes e de cores. Ao termo de seu processo, Le Corbusier se encontra numa posição fundamentalmente clássica; é um classicismo sem frisos, ordens, colunas, mas igualmente certo dos valores fundamentais, em certo sentido, igualmente naturalista: o equilíbrio dos volumes, o harmônico desdobrar-se das superfícies, a clareza das linhas simples e das proporções claras, a "beleza" do problema bem colocado são apenas o segredo de um novo acordo entre o homem e o mundo natural. Tudo, para ele, torna-se fácil, lógico, espontâneo: talvez demais. Renascem os problemas: se os novos meios da técnica produtiva podem assegurar o bem-estar e a felicidade universais, por que então as guerras se sucedem às guerras, e aquela técnica produz canhões em vez de casas? (...) O seu ideal urbanístico -utópico acordo entre as duras exigências da civilização moderna e uma natureza idílica, solar, mediterrânea- é a Ville Radieuse, uma espécie de cidade do sol; mas a "Unité d'Habitation", que, após décadas de luta, consegue finalmente realizar em Marselha, é só a comemoração desse ideal, nada mais senão a forma menos inatural e desumana do aglomerado das cidades industriais modernas. O seu ideal é a ordem, mas uma ordem formal, que supera os problemas em vez de enfrentá-los na sua concretude.

Arquitetura para a dignidade
A de Gropius, por seu turno, passada através das experiências amargas do expressionismo e do rigor das primeiras investigações formais abstratas, não é uma arquitetura para uma sociedade que tenha, por mera hipótese, alcançado a harmonia e a felicidade. É uma arquitetura que quer ajudar os homens a defender, num mundo cheio de ameaças, numa sociedade pronta a todas as involuções, o sentido da dignidade e da liberdade humanas; a realizar na relação e na função sociais aquela democracia que Frank Lloyd Wright confia a um sentimento religioso, a uma mística comunhão com a realidade; a construir-se um mundo de vida lúcido, severo, consciente, que iniba a insurgência dos instintos anti-sociais. Se tanto Wright quanto Le Corbusier aspiram, no fundo, a exprimir em formas ainda monumentais os ideais de uma sociedade democrática, Gropius pensa que uma sociedade democrática não pode se exprimir em formas monumentais, porque uma sociedade democrática é uma sociedade funcional, e a monumentalidade é o oposto da função.

Cidade verdadeiramente moderna
A pureza, a nítida perfeição das estruturas, a clareza do desenho construtivo de Gropius não nascem nem da abstrata formulação geométrica de De Stjil nem da satisfação do "problema bem colocado"; nascem da vontade de criar no edifício o instrumento mais apropriado para um conjunto coordenado de funções sociais. O seu ideal urbanístico não é uma cidade de utopia, mas uma cidade verdadeiramente moderna, na qual a função civil é pensada para explicar-se fora de todo princípio de autoridade, e o bem-estar é só a condição e o reflexo de uma condição de dignidade.
A sua obra se desenvolve segundo uma linha reta, coerentíssima; seu objeto é criar tipos arquitetônicos correspondentes às diferentes funções de uma sociedade bem organizada, substituir a mera arquitetura, a monumentalidade, por um "princípio de projetação" que exprima a construtividade interna, o contínuo determinar-se e o inevitável transformar-se das estruturas sociais. E uma vez que esse contínuo construir-se da sociedade não passa finalmente de um contínuo educar-se ou progredir, a função educativa, entendida no seu sentido mais amplo, como suprema função social, torna-se o princípio ativo do urbanismo de Gropius.
A escola é o encaminhamento à atividade produtiva, uma sociedade "in nuce"; a fábrica é o centro da vida social, junto com os locais de trabalho; o teatro não é apenas o lugar do lazer, mas, profundamente reformado nos seus processos, o lugar onde poderão ser reintegradas as faculdade sensoriais e fantásticas frustadas pelo mecanicismo dos processos operativos industriais; a casa, enfim, responde às exigências concretas e não mais às ambições das diferentes classes sociais.


Trecho do ensaio "A Arquitetura Moderna", de "Projeto e Destino".

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