São Paulo, domingo, 01 de outubro de 2000

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MILLÔR

POESIA É UM MILÉSIMO DO QUE SE PUBLICA COMO POESIA

Duas ou três coisas que eu sei dele Yehuda Amichai (o c é mudo e acho que ambos os 'h' são aspirados), um dos maiores poetas de nosso tempo, morreu a semana passada, aos 76 anos de idade, gloriosa, emocional e sentimentalmente bem vividos. Como é praticamente desconhecido no Brasil, sua morte foi registrada apenas em duas ou três notas vindas de agências internacionais. Evito o ridículo de perguntar; e se tivesse morrido o líder da banda de roque do Bum`ps o` Pump`s?
Aqui e ali, nos últimos dez anos, publiquei meia dúzia de poemas de Yehuda. Ele nasceu na Alemanha, em 1924, lutou no exército inglês (1942-46), e serviu na brigada de Palmach, no Negev (1948-49), durante a guerra de formação do país. Apesar de seu visível amor por Israel, o poeta tem visão cosmopolita; dramática e irônica, moderna e ligada aos infinitos tempos do passado. Fala do vasto espectro humano: erotismo, perda, encontro e desencontro, guerra e morte, tudo envolvido na inalterável precariedade da vida em Israel.
Yehuda escreve em hebraico. Estes poemas me chegaram em inglês, na bela tradução de Benjamim e Bárbara Harshaw. Os títulos dos poemas de Yehuda são dados pelas primeiras linhas dos versos.

O RAIO DA BOMBA
O raio da bomba era trinta centímetros
E o raio de seu alcance efetivo sete metros
Contendo quatro mortos e onze feridos.
E ao redor deles, num círculo maior
De dor e tempo, estão espalhados dois hospitais
E um cemitério. Mas a rapariga,
Enterrada no lugar de onde veio,
Há uns cem quilômetros daqui,
Aumenta bem o círculo.
E o homem solitário chorando essa morte
Nas províncias de uma terra do Mediterrâneo,
Inclui no círculo o mundo todo.
E vou omitir o prantear de órfãos
Que alcança o trono de Deus
E vai além, e amplia o círculo
Pro sem fim e pro sem Deus.

NA HISTÓRIA DE NOSSO AMOR
Na história de nosso amor, um foi sempre
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península
Ficará claro pra cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros.

A VIDA JUNTO DA MORTE
A vida junto da morte
Na carcassa de um carro à beira da estrada
Você ouve as gotas de chuva na lata enferrujada
Antes de senti-las cair na pele do rosto.
Cai a chuva, salvação depois da morte.
Ferrugem mais eterna do que sangue,
Mas bonita do que cor de labaredas.
O vento que é tempo, alterna
Com o vento que é lugar.
E Deus
Permanece na terra como um homem que sabe
Que esqueceu alguma coisa
E fica
Até lembrar.
E à noite você pode ouvir
Como maravilhosa melodia,
O homem e a máquina,
No seu lento caminho, do fogo rubro
Para a paz negra
E daí para a história
E daí para a arqueologia,
E daí para um belo estrato de geologia.
Isso também é eternidade

Como o sacrifício humano que virou
Sacrifício animal e depois oração em voz alta
E depois oração dentro do peito
E afinal nem oração.

Homem com mochila
Homem com mochila no mercado, Irmão,
Como você, sou homem burro, homem camelo,
Homem anjo. Sou como você.
Nossos braços são livres como asas.
Comparados conosco, todos os que carregam cestas
São escravos de escravos, sujeitos e humilhados.
Nós trocamos moedas por verduras frescas,
E para o esquecimento de nossas vidas compramos
Frutas e suas memórias, memória de campo e jardim,
Memória de cheiro da terra e do zumbir de abelhas em dia de calor.
Nós vimos uma mulher num vestido leve de verão
Antes de um amor longo e intenso,
Que determinará a sua vida. Ela não sabe ainda.
Nós sabemos. Em nossas costas
Carregamos o fruto da árvore da conhecimento.
Homem com mochila, você vive onde?
Eu sou como você, vivemos nas distâncias
Entre o prêmio e a punição.
E como nós vivemos? E como à noite nós dormimos,
Em que sonhamos? Os que você ama,
Ainda vivem nos mesmos lugares?

Nossas mochilas, como pára-quedas fechados
Em nossas costas, abrem de noite
pra podermos saltar, e pairar
Sobre a fragrância de lembrar e de esquecer.



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