São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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ANTROPOFAGIA
A antropofagia, tema da 24ª Bienal de São Paulo, é uma das imagens centrais da arte deste século
O ritual moderno

NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha

Em seu livro "O Laboratório Central", o poeta cubista Max Jacob, ligado ao círculo de Picasso, o núcleo criador da estética moderna, descreve um estranho ritual antropofágico. Ele e cinco amigos (a célula cubista inicial era composta de exatamente seis artistas), descem das montanhas em direção a uma cabana situada nas areias de uma planície distante. Lá chegando, depois de uma tertúlia terapêutica, se põem "a devorar cadáveres/ com sal com pimenta/ com óleo e o vinagre". Havia porém um dentre eles que era negro, e só esse personagem não participa do festim canibal. Ao contrário, "o negro come apenas flores cozidas/ as quais rega com água benta/ nos seus vasos".
Mais que intrigante, o poema é imensamente sugestivo. Para os europeus, o mais execrável sinal da selvageria era o canibalismo. Nos mapas dos navegadores do Renascimento, os mares desconhecidos eram assinalados por monstros, e as terras inexploradas, por povos canibais. A antropofagia era a marca máxima do horror, o demonismo encarnado e ritualizado.
No poema de Max Jacob, a imagem dos seus amigos envolvidos no mais vil dos atos representa um gesto de ruptura radical com a sua própria cultura. Mas a sugestão é que eles o praticam à européia, com bons modos à mesa, prato, talheres, tempero convencional de salada crua e guardanapo no pescoço. Ao contrário, o único negro dentre eles não só não compartilha do festim macabro como digere dois dos símbolos mais caros à cultura ocidental, as flores ornamentais e a água abençoada pela graça do Deus único. Cada qual, ao mesmo tempo, incorpora, mas também avilta, a cultura do outro.
Nos dois casos o poema aponta para um efeito geral de descontextualização. Ambas as culturas, existindo até então como tradições divorciadas entre si, vêem a sua continuidade interrompida e são repentinamente interseccionadas, deflagrando curto-circuitos culturais em escala mundial. As transformações tecnológicas da passagem do século -eletricidade, derivados de petróleo, veículos automotores, telégrafo, ferrovias intercontinentais, transatlânticos, aviões- equalizaram todos os segmentos do mundo na rede de uma mesma dinâmica histórica. Deixa de fazer sentido a lógica que aponta uns como representando o futuro (o progresso, a civilização, a "vanguarda") e outros simbolizando o passado (os selvagens, os tribalizados, os primitivos). Agora cada qual cumpre um papel diferente e tem uma cartada melhor ou pior nas mãos, mas participam todos do mesmo jogo. A Europa vira canibal, e os "canibais" se modernizam.
O ritual antropófago se torna assim uma das imagens centrais da arte moderna, especialmente cara para a linhagem mais radical da nova estética, representada pelos movimentos conexos do cubismo, dadaísmo e surrealismo. Para esses artistas, ele abria duas dimensões principais.
A primeira, desafiadora, apontava para a negação das fronteiras culturais postas pela política imperial e discriminatória das potências européias, como no poema de Max Jacob. A segunda, metamórfica, assinalava o impulso de, por meio de sua arte, penetrar nas entranhas do mundo moderno, invadindo as veias e capilosidades de suas vias de comunicação, para se transmudar na sua matéria palpitante e intensa, oferecendo-se então para serem consumidos e incorporados pelo novo público das grandes cidades. No primeiro caso eles imolavam a tradição européia e se refestelavam com os espólios. No segundo, se ofereciam eles mesmos para a deglutição das novas metrópoles, pulsantes e vorazes.
Nesse último sentido, um dos artistas que aplicou esse símbolo da devoração humana mais ampla e sistematicamente foi o poeta Apollinaire, amigo e principal colaborador de Picasso nos inícios do cubismo. No seu "Bestiário", ele evoca o ritual antropófago por intermédio do mito de Orfeu. Sendo sacerdote de Dionísio, esse herói termina sendo submetido ao mesmo ato de dilaceração e consumação que seu patrono divino. Apollinaire representa então o artista moderno como o novo Orfeu, que oferece seu coração como isca para capturar a alma fugaz das multidões nas grandes metrópoles.
Mas é sobretudo quando irrompe a Primeira Grande Guerra que a simbologia do canibalismo assume sua plena configuração, confirmando o tom profético dos poetas modernos. A carnificina se difunde por toda a Europa, dragando jovens de todos os recantos para o sacrifício inútil sob o ferro, o fogo e os gases letais da primeira grande conflagração tecnológica.
Nas palavras irônicas de Apollinaire, o continente se entrega à "mais saborosa antropofagia". Ele se refere à guerra como o magnífico "festim do Balthasar canibal". "Quem diria que a essa altura pudéssemos de novo nos converter em antropófagos/ E que se precisasse de tanto fogo para tostar o corpo humano?" Nas páginas de seus poemas da trincheira, a modernidade assume as feições de um grande deus pantagruélico, um gigantesco Cronos blindado, movido à gasolina e eletricidade, que devora seus filhos às centenas de milhares a cada bocada.
Era nesse mesmo espírito e com a mesma ironia que, na Inglaterra, Eliot se referia à eclosão de "um canibalismo muito delicioso". Ele tentou desesperadamente encontrar algum sentido naquele sacrifício vão e maciço. Tantos corpos imolados deveriam ressurgir somados num espírito sublime, uma ressurreição coletiva e simbólica dos que morreram, como os fantasmas que nunca mais deixariam de assombrar o homem moderno, ligando-se a ele como a sua própria sombra. Essa má consciência haveria de acrescentar uma dimensão de agressividade à metáfora da antropofagia, que aparece com toda nitidez no seu texto "Sweeney Agonistes": "SWEENEY - Eu serei o canibal./ DORIS - E eu serei a missionária./ Eu irei te converter!/ SWEENEY - Eu é que irei te converter!/ Num cozido./ Num belíssimo, branquíssimo, cozido de missionário".
Não é de surpreender portanto que, após a guerra, nos anos 20, uma das principais publicações reunindo artistas dadaístas e surrealistas se chamasse justamente "Cannibale". O ato selvagem resumia a plataforma de toda uma geração de renegados. Foi isso que intuiu o dadaísta Francis Picabia, no seu "Manifesto Canibal" de 1920. Foi também o que levou o fotógrafo surrealista Man Ray aos exercícios de solarização, absorvendo modelos francesas em máscaras africanas e vice-versa.
Mas o melhor é o caso do poeta franco-suíço Blaise Cendrars, outro dos fundadores do cubismo. Na sua primeira viagem ao Brasil, em 1924, pediu que lhe mostrassem as fontes matriciais da cultura brasileira. Foi levado para ver o Carnaval no Rio e a Semana Santa em Minas. Ali, em Tiradentes, ocorreu um fato epifânico: encontrou na cadeia um negro que havia cometido um assassinato ritual e devorado o coração da vítima.
Aturdido, Blaise transfigurou o encontro no texto poético "O Elogio da Vida Perigosa". Significativo, ele transformou o assassino num branco, de ascendência holandesa e protestante, que havia matado seu chefe inglês na inauguração da ferrovia em que trabalhava. Por quê? Não seria mais "natural" que o negro devorasse o inglês arrogante? Blaise explicou: não queria associar canibalismo com atavismo, esvaziando o teor histórico do símbolo. E, mais, concluiu a história com o canibal lhe entregando a faca assassina. Na sequência, conta o caso do gaúcho Santiago, que matou 47 e também lhe deu o punhal. Como não lembrar os dois revólveres com que Jarry presenteou seu amigo e confrade anarquista Pablo Picasso?
Quando Tarsila e Oswald se saíram com a estética antropofágica, não estavam apenas atualizando a cultura brasileira. Repunham as palavras do canibal de Tiradentes a Blaise: "Diga a seus amigos, os poetas, que a vida hoje é perigosa. Quem age deve ir às últimas consequências, sem se lamentar".


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura departamento de história da USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole", entre outros.



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