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ANTROPOFAGIA
A antropofagia, tema da 24ª Bienal de São Paulo, é uma das imagens centrais
da arte deste século
O ritual moderno
NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha
Em seu livro "O Laboratório
Central", o poeta cubista Max Jacob, ligado ao círculo de Picasso, o
núcleo criador da estética moderna, descreve um estranho ritual
antropofágico. Ele e cinco amigos
(a célula cubista inicial era composta de exatamente seis artistas),
descem das montanhas em direção a uma cabana situada nas
areias de uma planície distante. Lá
chegando, depois de uma tertúlia
terapêutica, se põem "a devorar
cadáveres/ com sal com pimenta/
com óleo e o vinagre". Havia porém um dentre eles que era negro,
e só esse personagem não participa do festim canibal. Ao contrário,
"o negro come apenas flores cozidas/ as quais rega com água benta/
nos seus vasos".
Mais que intrigante, o poema é
imensamente sugestivo. Para os
europeus, o mais execrável sinal
da selvageria era o canibalismo.
Nos mapas dos navegadores do
Renascimento, os mares desconhecidos eram assinalados por
monstros, e as terras inexploradas, por povos canibais. A antropofagia era a marca máxima do
horror, o demonismo encarnado e
ritualizado.
No poema de Max Jacob, a imagem dos seus amigos envolvidos
no mais vil dos atos representa um
gesto de ruptura radical com a sua
própria cultura. Mas a sugestão é
que eles o praticam à européia,
com bons modos à mesa, prato,
talheres, tempero convencional de
salada crua e guardanapo no pescoço. Ao contrário, o único negro
dentre eles não só não compartilha do festim macabro como digere dois dos símbolos mais caros à
cultura ocidental, as flores ornamentais e a água abençoada pela
graça do Deus único. Cada qual,
ao mesmo tempo, incorpora, mas
também avilta, a cultura do outro.
Nos dois casos o poema aponta
para um efeito geral de descontextualização. Ambas as culturas,
existindo até então como tradições
divorciadas entre si, vêem a sua
continuidade interrompida e são
repentinamente interseccionadas,
deflagrando curto-circuitos culturais em escala mundial. As transformações tecnológicas da passagem do século -eletricidade, derivados de petróleo, veículos automotores, telégrafo, ferrovias intercontinentais, transatlânticos,
aviões- equalizaram todos os
segmentos do mundo na rede de
uma mesma dinâmica histórica.
Deixa de fazer sentido a lógica que
aponta uns como representando o
futuro (o progresso, a civilização,
a "vanguarda") e outros simbolizando o passado (os selvagens, os
tribalizados, os primitivos). Agora
cada qual cumpre um papel diferente e tem uma cartada melhor
ou pior nas mãos, mas participam
todos do mesmo jogo. A Europa
vira canibal, e os "canibais" se
modernizam.
O ritual antropófago se torna assim uma das imagens centrais da
arte moderna, especialmente cara
para a linhagem mais radical da
nova estética, representada pelos
movimentos conexos do cubismo,
dadaísmo e surrealismo. Para esses artistas, ele abria duas dimensões principais.
A primeira, desafiadora, apontava para a negação das fronteiras
culturais postas pela política imperial e discriminatória das potências européias, como no poema de
Max Jacob. A segunda, metamórfica, assinalava o impulso de, por
meio de sua arte, penetrar nas entranhas do mundo moderno, invadindo as veias e capilosidades de
suas vias de comunicação, para se
transmudar na sua matéria palpitante e intensa, oferecendo-se então para serem consumidos e incorporados pelo novo público das
grandes cidades. No primeiro caso
eles imolavam a tradição européia
e se refestelavam com os espólios.
No segundo, se ofereciam eles
mesmos para a deglutição das novas metrópoles, pulsantes e vorazes.
Nesse último sentido, um dos artistas que aplicou esse símbolo da
devoração humana mais ampla e
sistematicamente foi o poeta
Apollinaire, amigo e principal colaborador de Picasso nos inícios
do cubismo. No seu "Bestiário",
ele evoca o ritual antropófago por
intermédio do mito de Orfeu. Sendo sacerdote de Dionísio, esse herói termina sendo submetido ao
mesmo ato de dilaceração e consumação que seu patrono divino.
Apollinaire representa então o artista moderno como o novo Orfeu,
que oferece seu coração como isca
para capturar a alma fugaz das
multidões nas grandes metrópoles.
Mas é sobretudo quando irrompe a Primeira Grande Guerra que a
simbologia do canibalismo assume sua plena configuração, confirmando o tom profético dos poetas modernos. A carnificina se difunde por toda a Europa, dragando jovens de todos os recantos para o sacrifício inútil sob o ferro, o
fogo e os gases letais da primeira
grande conflagração tecnológica.
Nas palavras irônicas de Apollinaire, o continente se entrega à
"mais saborosa antropofagia".
Ele se refere à guerra como o magnífico "festim do Balthasar canibal". "Quem diria que a essa altura pudéssemos de novo nos converter em antropófagos/ E que se
precisasse de tanto fogo para tostar o corpo humano?" Nas páginas de seus poemas da trincheira,
a modernidade assume as feições
de um grande deus pantagruélico,
um gigantesco Cronos blindado,
movido à gasolina e eletricidade,
que devora seus filhos às centenas
de milhares a cada bocada.
Era nesse mesmo espírito e com
a mesma ironia que, na Inglaterra,
Eliot se referia à eclosão de "um
canibalismo muito delicioso". Ele
tentou desesperadamente encontrar algum sentido naquele sacrifício vão e maciço. Tantos corpos
imolados deveriam ressurgir somados num espírito sublime, uma
ressurreição coletiva e simbólica
dos que morreram, como os fantasmas que nunca mais deixariam
de assombrar o homem moderno,
ligando-se a ele como a sua própria sombra. Essa má consciência
haveria de acrescentar uma dimensão de agressividade à metáfora da antropofagia, que aparece
com toda nitidez no seu texto
"Sweeney Agonistes": "SWEENEY - Eu serei o canibal./ DORIS -
E eu serei a missionária./ Eu irei te
converter!/ SWEENEY - Eu é que
irei te converter!/ Num cozido./
Num belíssimo, branquíssimo,
cozido de missionário".
Não é de surpreender portanto
que, após a guerra, nos anos 20,
uma das principais publicações
reunindo artistas dadaístas e surrealistas se chamasse justamente
"Cannibale". O ato selvagem resumia a plataforma de toda uma
geração de renegados. Foi isso que
intuiu o dadaísta Francis Picabia,
no seu "Manifesto Canibal" de
1920. Foi também o que levou o
fotógrafo surrealista Man Ray aos
exercícios de solarização, absorvendo modelos francesas em máscaras africanas e vice-versa.
Mas o melhor é o caso do poeta
franco-suíço Blaise Cendrars, outro dos fundadores do cubismo.
Na sua primeira viagem ao Brasil,
em 1924, pediu que lhe mostrassem as fontes matriciais da cultura
brasileira. Foi levado para ver o
Carnaval no Rio e a Semana Santa
em Minas. Ali, em Tiradentes,
ocorreu um fato epifânico: encontrou na cadeia um negro que havia
cometido um assassinato ritual e
devorado o coração da vítima.
Aturdido, Blaise transfigurou o
encontro no texto poético "O Elogio da Vida Perigosa". Significativo, ele transformou o assassino
num branco, de ascendência holandesa e protestante, que havia
matado seu chefe inglês na inauguração da ferrovia em que trabalhava. Por quê? Não seria mais
"natural" que o negro devorasse
o inglês arrogante? Blaise explicou: não queria associar canibalismo com atavismo, esvaziando o
teor histórico do símbolo. E, mais,
concluiu a história com o canibal
lhe entregando a faca assassina. Na
sequência, conta o caso do gaúcho
Santiago, que matou 47 e também
lhe deu o punhal. Como não lembrar os dois revólveres com que
Jarry presenteou seu amigo e confrade anarquista Pablo Picasso?
Quando Tarsila e Oswald se saíram com a estética antropofágica,
não estavam apenas atualizando a
cultura brasileira. Repunham as
palavras do canibal de Tiradentes
a Blaise: "Diga a seus amigos, os
poetas, que a vida hoje é perigosa.
Quem age deve ir às últimas consequências, sem se lamentar".
Nicolau Sevcenko é professor de história da
cultura departamento de história da USP e autor
de "Orfeu Extático na Metrópole", entre outros.
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