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ANTROPOFAGIA
O autor do Manifesto de 1928 percebeu o racionalismo antierótico da "sociologia da esmola'
Réquiem a Oswald
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Os comentaristas e estudiosos de
Oswald de Andrade têm sublinhado a aderência maternal em sua
personalidade artística e filosófica. "Sob as Ordens de Mamãe".
Longe de ser uma diatribe sarcástico-humorística, esse título da
memória oswaldiana modernista
é um componente básico em sua
concepção de que a história da colonização é a história da guerra
contra a floresta tropical. O retrato patriarcal e mercantil dessa
guerra remontará às capitanias
hereditárias, cujos reflexos se manifestam atualmente nos projetos
predatórios da Fordlândia, Ludwig-Jari e Carajás. Fruto do encontro da mãe originária da Amazônia com o pai de Minas Gerais,
nasceu Oswald de Andrade em
São Paulo, dez anos antes de findar o século 19.
A indispensável biografia de Maria Eugênia Boaventura, "O Salão
e a Selva", remete à equação antropofágica entre civilização e floresta. Esse livro foi publicado em
1995, um ano depois de o sociólogo antioswaldiano FHC chegar ao
poder em Brasília, coincidindo
com o momento melancólico em
que parece ter acabado o convívio
tanto do salão quanto da selva.
Desde o "Manifesto da Poesia
Pau-Brasil", nos deparamos com
a ênfase na "selva selvagem" e na
floresta. Assim, é mister interpretar seu "primitivismo" e suas
alusões ao período "cabralino"
para além da influência literária
recebida dos vanguardismos europeus, e sim como abordagem
eminentemente antiimperialista e
anticolonialista da natureza brasileira.
Antropofagia é "energeia", ou
seja, energia.
Em vez de antítese "ecologique" entre civilização e floresta, o
barato antropofágico é o uso, a
um só tempo órfico e econômico,
da floresta (papel essencial na
ecosfera) para impedir sua devastação e seu equilíbrio termodinâmico.
Símbolo controlado pelo homem, a floresta tropical é úmida,
com incidência fantástica de sol e
água, tal qual o estilo cosmólogo
dos manifestos "da Poesia
Pau-Brasil" a "Antropófago",
concebidos ambos antes da consagração do petróleo na década de
30. Esses manifestos literários,
trazendo a riqueza solar dos trópicos, são no entanto entusiastas do
homem dormindo, ao contrário
da psicanálise "made in USA" de
Benjamim Franklin, para quem o
homem não ganhava dinheiro
quando dormia.
A matriz da oralidade oswaldiana, tantas vezes refratária à grafoesfera da gramática, deriva desse condicionamento energético da
floresta.
"Filhos do Sol, mãe dos viventes".
A chamada "Revolução Caraíba" -"maior que a Revolução
Francesa"- consiste em criar
não uma civilização nos trópicos
-mas uma civilização dos trópicos. O primeiro projeto é a armadilha dos sucessivos colonialismos
patriarcais; o segundo projeto é a
descolonização sob o signo do
matriarcado. Outra mãe, diferente
da "mãe dos Gracos".
"Gravou-se o açúcar". Intuição
profética do manifesto antropofágico: da cana-de-açúcar resultaria
o álcool, primeiro e até aqui o único combustível alternativo extensivo ao moribundo petróleo, que
deu riqueza aos EUA, assim como
o carvão mineral forrou a Inglaterra, conforme Oswald de Andrade testemunhou a Edgar Cavalheiro em 1944.
Antes de tornar-se marxista na
década de 30, Oswald de Andrade
foi profundamente anticolonialista em seu manifesto antropofágico, atacando o padre Antônio
Vieira, autor do nosso primeiro
empréstimo, portanto o padrinho
da nossa dívida externa: lábia e
grana. Depois o padre Vieira será
elogiado pela expulsão dos holandeses do Brasil.
Descolonizador e atento ao Sol
como doador máximo de energia,
o antropófago Oswald de Andrade
foi preterido, no meio da patota
universitária, pela linha plúmbea
dos "Tristes Tropiques" de Lévi-Strauss, um dos precursores
cosmopolitas do ideário tucano da
década de 90, porque não foi além
das fronteiras do patriarcado.
Oswald de Andrade queria dar
aula de filosofia na USP. Foi impedido por uma razão cordial e iluminista, alienada em relação à potência da floresta e do Sol nos trópicos. Energia versus dinheiro,
"that's the question: tupy or not
tupy".
Natureza, floresta, matriarcado,
educação das crianças. Esta antropofagia contracena com o que de
fato triunfou na realidade: a ideologia fálica cadastrada do "utilitarismo mercenário e mecânico do
Norte". A palavra de ordem política -"a posse contra a propriedade"- revela-nos o que seria
atualmente um Oswald de Andrade sem-terra.
"Tristes funcionários da sociologia", assim ele batizou o pensamento universitário de São Paulo,
de cujos departamentos sairia, decênios mais tarde, o príncipe da
moeda. Oswald de Andrade percebeu o racionalismo antierótico e a
filiação burocrático-institucional
dessa sociologia avessa aos "facies" geográficos dos trópicos:
"sociologia da esmola", que recusa a clorofila e entrega o minério às potências imperialistas, enfim, um pensamento colonizado
pelas multinacionais, "fonâmbulos da pesquisa" e "trapezistas
dos documentos", enclausurados
na glória dos escritórios e institutos doutorais privados, cacificados pela CIA e pelo petróleo das
indústrias automobilísticas.
No episódio da USP, Oswald foi
vitima do moralismo patriarcal
burocrático, sendo punido por ter
vivido com muitas mulheres, inquieto, intelectualmente assistemático, anárquico, frasista. Fato é
que a antropologia está indiscutivelmente vinculada à mulherofilia. À semelhança do sociólogo
Roger Bastide, Oswald de Andrade parece ter deixado menos discípulos-homens do que discípulos-mulheres. O escritor modernista denunciou insistentemente a
presença do machismo patriarcal
na sociedade brasileira: cultura só
para homens. Curiosamente, os literatos brasileiros, com honrosas
exceções, não são chegados numa
mulherofilia; ao contrário, eles
são uns eunucóides carregados de
bonequice e vaidade.
Filho único, mimado por sua
mãe amazonense, afetiva e economicamente generosa com ele,
dando-lhe a maior força para que
se tornasse escritor, Oswald de
Andrade quando adulto retribuiu
em dobro às mulheres com quem
viveu de modo romântico. É enganosa, pois, a aparência de ter sido
um lírico machão, comedor voraz, por causa do lema "bom estômago e pau duro". Na verdade,
desde Pau-Brasil, Oswald de Andrade projetou o útero como metáfora em sua utopia do Estado-mãe e da "polis" matriarcal.
Em Oswald de Andrade a "antropofagia carnal" significa a cópula polimórfica do Sol com a
água. É essa fartura energética que
é geradora do ócio, "a metafísica
do aposentado", conforme informará em "A Crise da Filosofia
Messiânica", livro de reflexão primorosa sobre o "Manifesto Antropófago" de 1928: a devoração
do inimigo ideológico colonizador, não por causa da fome, da gula ou da vingança, mas por imperativo religioso e cerimonial: a incorporação das virtudes do inimigo. Ora, dos melhores inimigos
não se quer apropriar do potencial
vitamínico da carne, segundo o
folclore de Luís da Câmara Cascudo sobre a instituição religiosa da
antropofagia, desde o relato do
"quase-vítima" Hans Staden.
Para Oswald de Andrade, por
meio daquilo que batiza de "sentimento órfico", a função alimentar pesa menos do que a instituição religiosa, o fenômeno sagrado
da antropofagia, a expressão do
"ateísmo com Deus".
O Brasil formado de "raças matriarcais". Absolutamente não
importa se não houve em períodos
pré-cabralinos a experiência do
matriarcado. Esse argumento etnológico carece de relevância,
pois a antropofagia não é senão
uma estratégia de descolonização
cultural e, simultaneamente, afirmação do Novo Mundo: a "esperança de uma vida melhor neste
mundo".
Oswald de Andrade avalia a literatura ocidental sob o ângulo do
século 16 em diante. A marcha das
utopias. Conectando a "nudez da
Descoberta" do Brasil à "geografia do riso" delineado pelos grandes humanistas Rabelais, Cervantes e Erasmo. Nem mesmo a leitura do "romancista" Karl Marx ou
o internacionalismo do "Manifesto Comunista" consegue fazê-lo abandonar a visão socio-mística da antropofagia elaborada durante a década de 20, a
qual será mais tarde retomada, em
alto nível artístico, pelo filme terceiro-mundista "A Idade da Terra", de Glauber Rocha.
De resto, o cineasta considerava
Oswald de Andrade o maior filósofo brasileiro. Glauber Rocha denunciou a trindade machista: pai,
filho, Espírito Santo. "Porra, três
machos!" Oswald de Andrade inventa o conceito de "Terceiro
Mundo" antes do Estado Novo
getuliano de 1937. Para o educador Darcy Ribeiro, a formação do
povo brasileiro é plasmada menos
pelo "membrum virile" do homem branco do que pelo útero
ameraba. A cunhã foi nossa primeira cozinheira. Assim atesta o
material etnológico da antropofagia: quem mata não participa do
banquete. Assassinato ritual, mas
sem clandestinidade.
Oswald de Andrade, marido de
Pagu e companheiro de Luís Carlos Prestes, rejeita o patriarcalismo, mas não embarca no obreirismo economista e burguês do dinheiro.
Destarte, a sociologia uspiana
manteve-se cega ou reticente ao
antropofágico "homem do povo", que nasceu rico e, como diz o
candomblé, cavalo de uma fortuna que será detonada por incapacidade neurótica de lidar com as
coordenadas da economia de
mercado.
Édipo milionário
Excetuando o professor Cruz
Costa, desconheço outro filósofo
na USP com problemas sérios
diante da competição de mercado,
que é o replay do patriarcalismo
de "Casa Grande e Senzala".
Glauber Rocha viu no romance da
fase marxista, pós-30, de Oswald
de Andrade, a representação épica
do "pistoleiro Vargas".
Marxista, Oswald de Andrade
desaprovou a implantação do Estado Novo em 1937, ano em que
foi publicada a sua peça de teatro
"O Rei da Vela", o libelo anticapitalista da moderna literatura
brasileira, que antecipa a trágica
carta-testamento de Getúlio Vargas de 1954. Cumpre no entanto
assinalar que, não obstante o retrato do "risonho paternalismo
de Vargas", Oswald de Andrade
percebeu que o Estado Novo de
1937 havia colocado o Brasil na
marcha da história contemporânea.
A partir de 1947, quando havia
se desligado do PC, elogia o trabalhismo de Getúlio Vargas, nisso
destoando do marxismo dos intelectuais brasileiros, que insistiam
em considerar o ex-ditador um
inimigo do proletariado. Depois
de ter percorrido o país sem filosofia nacional com a revolucionária Coluna Prestes, o Cavaleiro da
Esperança é seduzido pelo marxismo stalinizado da União Soviética.
Embora permanecendo filiado
ao PC até 1945, a atitude antiimperialista e anticolonialista de Oswald de Andrade não foi consequência de seu ingresso no PC em
1930, mas sim o resultado do conhecimento da literatura brasileira, que o fez se tornar um antropófago nacionalista, em cuja obra
encontra-se a denúncia do imperialismo inglês na República Velha e do imperialismo americano a
partir de 1930. "Todas as nossas
reformas, todas as nossas reações
costumam ser feitas dentro do
bonde da civilização importada.
Precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde."
Na "era de Wall Street e Cristo", Oswald de Andrade denuncia
os moços de recado do capital estrangeiro, repudiando o anglicanismo do tecido e do carvão, assim como o imperialismo norte-americano será a teologia do petróleo e do automóvel.
Por coincidência do destino, Getúlio Vargas e Oswald de Andrade
morreram no mesmo ano de 1954.
Quase meio século depois, o Palácio do Planalto confina equivocadamente o nacionalismo a um
quixotismo antropofágico da década de 50, assim como hoje em
dia o príncipe da moeda é o Rei da
Vela no poder.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor
de ciências sociais da Universidade Federal de
Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da
Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.
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