São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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ANTROPOFAGIA
O autor do Manifesto de 1928 percebeu o racionalismo antierótico da "sociologia da esmola'
Réquiem a Oswald

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Os comentaristas e estudiosos de Oswald de Andrade têm sublinhado a aderência maternal em sua personalidade artística e filosófica. "Sob as Ordens de Mamãe". Longe de ser uma diatribe sarcástico-humorística, esse título da memória oswaldiana modernista é um componente básico em sua concepção de que a história da colonização é a história da guerra contra a floresta tropical. O retrato patriarcal e mercantil dessa guerra remontará às capitanias hereditárias, cujos reflexos se manifestam atualmente nos projetos predatórios da Fordlândia, Ludwig-Jari e Carajás. Fruto do encontro da mãe originária da Amazônia com o pai de Minas Gerais, nasceu Oswald de Andrade em São Paulo, dez anos antes de findar o século 19.
A indispensável biografia de Maria Eugênia Boaventura, "O Salão e a Selva", remete à equação antropofágica entre civilização e floresta. Esse livro foi publicado em 1995, um ano depois de o sociólogo antioswaldiano FHC chegar ao poder em Brasília, coincidindo com o momento melancólico em que parece ter acabado o convívio tanto do salão quanto da selva. Desde o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", nos deparamos com a ênfase na "selva selvagem" e na floresta. Assim, é mister interpretar seu "primitivismo" e suas alusões ao período "cabralino" para além da influência literária recebida dos vanguardismos europeus, e sim como abordagem eminentemente antiimperialista e anticolonialista da natureza brasileira.
Antropofagia é "energeia", ou seja, energia.
Em vez de antítese "ecologique" entre civilização e floresta, o barato antropofágico é o uso, a um só tempo órfico e econômico, da floresta (papel essencial na ecosfera) para impedir sua devastação e seu equilíbrio termodinâmico.
Símbolo controlado pelo homem, a floresta tropical é úmida, com incidência fantástica de sol e água, tal qual o estilo cosmólogo dos manifestos "da Poesia Pau-Brasil" a "Antropófago", concebidos ambos antes da consagração do petróleo na década de 30. Esses manifestos literários, trazendo a riqueza solar dos trópicos, são no entanto entusiastas do homem dormindo, ao contrário da psicanálise "made in USA" de Benjamim Franklin, para quem o homem não ganhava dinheiro quando dormia.
A matriz da oralidade oswaldiana, tantas vezes refratária à grafoesfera da gramática, deriva desse condicionamento energético da floresta.
"Filhos do Sol, mãe dos viventes".
A chamada "Revolução Caraíba" -"maior que a Revolução Francesa"- consiste em criar não uma civilização nos trópicos -mas uma civilização dos trópicos. O primeiro projeto é a armadilha dos sucessivos colonialismos patriarcais; o segundo projeto é a descolonização sob o signo do matriarcado. Outra mãe, diferente da "mãe dos Gracos".
"Gravou-se o açúcar". Intuição profética do manifesto antropofágico: da cana-de-açúcar resultaria o álcool, primeiro e até aqui o único combustível alternativo extensivo ao moribundo petróleo, que deu riqueza aos EUA, assim como o carvão mineral forrou a Inglaterra, conforme Oswald de Andrade testemunhou a Edgar Cavalheiro em 1944.
Antes de tornar-se marxista na década de 30, Oswald de Andrade foi profundamente anticolonialista em seu manifesto antropofágico, atacando o padre Antônio Vieira, autor do nosso primeiro empréstimo, portanto o padrinho da nossa dívida externa: lábia e grana. Depois o padre Vieira será elogiado pela expulsão dos holandeses do Brasil.
Descolonizador e atento ao Sol como doador máximo de energia, o antropófago Oswald de Andrade foi preterido, no meio da patota universitária, pela linha plúmbea dos "Tristes Tropiques" de Lévi-Strauss, um dos precursores cosmopolitas do ideário tucano da década de 90, porque não foi além das fronteiras do patriarcado.
Oswald de Andrade queria dar aula de filosofia na USP. Foi impedido por uma razão cordial e iluminista, alienada em relação à potência da floresta e do Sol nos trópicos. Energia versus dinheiro, "that's the question: tupy or not tupy".
Natureza, floresta, matriarcado, educação das crianças. Esta antropofagia contracena com o que de fato triunfou na realidade: a ideologia fálica cadastrada do "utilitarismo mercenário e mecânico do Norte". A palavra de ordem política -"a posse contra a propriedade"- revela-nos o que seria atualmente um Oswald de Andrade sem-terra.
"Tristes funcionários da sociologia", assim ele batizou o pensamento universitário de São Paulo, de cujos departamentos sairia, decênios mais tarde, o príncipe da moeda. Oswald de Andrade percebeu o racionalismo antierótico e a filiação burocrático-institucional dessa sociologia avessa aos "facies" geográficos dos trópicos: "sociologia da esmola", que recusa a clorofila e entrega o minério às potências imperialistas, enfim, um pensamento colonizado pelas multinacionais, "fonâmbulos da pesquisa" e "trapezistas dos documentos", enclausurados na glória dos escritórios e institutos doutorais privados, cacificados pela CIA e pelo petróleo das indústrias automobilísticas.
No episódio da USP, Oswald foi vitima do moralismo patriarcal burocrático, sendo punido por ter vivido com muitas mulheres, inquieto, intelectualmente assistemático, anárquico, frasista. Fato é que a antropologia está indiscutivelmente vinculada à mulherofilia. À semelhança do sociólogo Roger Bastide, Oswald de Andrade parece ter deixado menos discípulos-homens do que discípulos-mulheres. O escritor modernista denunciou insistentemente a presença do machismo patriarcal na sociedade brasileira: cultura só para homens. Curiosamente, os literatos brasileiros, com honrosas exceções, não são chegados numa mulherofilia; ao contrário, eles são uns eunucóides carregados de bonequice e vaidade.
Filho único, mimado por sua mãe amazonense, afetiva e economicamente generosa com ele, dando-lhe a maior força para que se tornasse escritor, Oswald de Andrade quando adulto retribuiu em dobro às mulheres com quem viveu de modo romântico. É enganosa, pois, a aparência de ter sido um lírico machão, comedor voraz, por causa do lema "bom estômago e pau duro". Na verdade, desde Pau-Brasil, Oswald de Andrade projetou o útero como metáfora em sua utopia do Estado-mãe e da "polis" matriarcal.
Em Oswald de Andrade a "antropofagia carnal" significa a cópula polimórfica do Sol com a água. É essa fartura energética que é geradora do ócio, "a metafísica do aposentado", conforme informará em "A Crise da Filosofia Messiânica", livro de reflexão primorosa sobre o "Manifesto Antropófago" de 1928: a devoração do inimigo ideológico colonizador, não por causa da fome, da gula ou da vingança, mas por imperativo religioso e cerimonial: a incorporação das virtudes do inimigo. Ora, dos melhores inimigos não se quer apropriar do potencial vitamínico da carne, segundo o folclore de Luís da Câmara Cascudo sobre a instituição religiosa da antropofagia, desde o relato do "quase-vítima" Hans Staden.
Para Oswald de Andrade, por meio daquilo que batiza de "sentimento órfico", a função alimentar pesa menos do que a instituição religiosa, o fenômeno sagrado da antropofagia, a expressão do "ateísmo com Deus".
O Brasil formado de "raças matriarcais". Absolutamente não importa se não houve em períodos pré-cabralinos a experiência do matriarcado. Esse argumento etnológico carece de relevância, pois a antropofagia não é senão uma estratégia de descolonização cultural e, simultaneamente, afirmação do Novo Mundo: a "esperança de uma vida melhor neste mundo".
Oswald de Andrade avalia a literatura ocidental sob o ângulo do século 16 em diante. A marcha das utopias. Conectando a "nudez da Descoberta" do Brasil à "geografia do riso" delineado pelos grandes humanistas Rabelais, Cervantes e Erasmo. Nem mesmo a leitura do "romancista" Karl Marx ou o internacionalismo do "Manifesto Comunista" consegue fazê-lo abandonar a visão socio-mística da antropofagia elaborada durante a década de 20, a qual será mais tarde retomada, em alto nível artístico, pelo filme terceiro-mundista "A Idade da Terra", de Glauber Rocha.
De resto, o cineasta considerava Oswald de Andrade o maior filósofo brasileiro. Glauber Rocha denunciou a trindade machista: pai, filho, Espírito Santo. "Porra, três machos!" Oswald de Andrade inventa o conceito de "Terceiro Mundo" antes do Estado Novo getuliano de 1937. Para o educador Darcy Ribeiro, a formação do povo brasileiro é plasmada menos pelo "membrum virile" do homem branco do que pelo útero ameraba. A cunhã foi nossa primeira cozinheira. Assim atesta o material etnológico da antropofagia: quem mata não participa do banquete. Assassinato ritual, mas sem clandestinidade.
Oswald de Andrade, marido de Pagu e companheiro de Luís Carlos Prestes, rejeita o patriarcalismo, mas não embarca no obreirismo economista e burguês do dinheiro.
Destarte, a sociologia uspiana manteve-se cega ou reticente ao antropofágico "homem do povo", que nasceu rico e, como diz o candomblé, cavalo de uma fortuna que será detonada por incapacidade neurótica de lidar com as coordenadas da economia de mercado.

Édipo milionário
Excetuando o professor Cruz Costa, desconheço outro filósofo na USP com problemas sérios diante da competição de mercado, que é o replay do patriarcalismo de "Casa Grande e Senzala". Glauber Rocha viu no romance da fase marxista, pós-30, de Oswald de Andrade, a representação épica do "pistoleiro Vargas".
Marxista, Oswald de Andrade desaprovou a implantação do Estado Novo em 1937, ano em que foi publicada a sua peça de teatro "O Rei da Vela", o libelo anticapitalista da moderna literatura brasileira, que antecipa a trágica carta-testamento de Getúlio Vargas de 1954. Cumpre no entanto assinalar que, não obstante o retrato do "risonho paternalismo de Vargas", Oswald de Andrade percebeu que o Estado Novo de 1937 havia colocado o Brasil na marcha da história contemporânea.
A partir de 1947, quando havia se desligado do PC, elogia o trabalhismo de Getúlio Vargas, nisso destoando do marxismo dos intelectuais brasileiros, que insistiam em considerar o ex-ditador um inimigo do proletariado. Depois de ter percorrido o país sem filosofia nacional com a revolucionária Coluna Prestes, o Cavaleiro da Esperança é seduzido pelo marxismo stalinizado da União Soviética.
Embora permanecendo filiado ao PC até 1945, a atitude antiimperialista e anticolonialista de Oswald de Andrade não foi consequência de seu ingresso no PC em 1930, mas sim o resultado do conhecimento da literatura brasileira, que o fez se tornar um antropófago nacionalista, em cuja obra encontra-se a denúncia do imperialismo inglês na República Velha e do imperialismo americano a partir de 1930. "Todas as nossas reformas, todas as nossas reações costumam ser feitas dentro do bonde da civilização importada. Precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde."
Na "era de Wall Street e Cristo", Oswald de Andrade denuncia os moços de recado do capital estrangeiro, repudiando o anglicanismo do tecido e do carvão, assim como o imperialismo norte-americano será a teologia do petróleo e do automóvel.
Por coincidência do destino, Getúlio Vargas e Oswald de Andrade morreram no mesmo ano de 1954. Quase meio século depois, o Palácio do Planalto confina equivocadamente o nacionalismo a um quixotismo antropofágico da década de 50, assim como hoje em dia o príncipe da moeda é o Rei da Vela no poder.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.



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