São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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RÉPLICA

A força do estigma

JOSÉ MURILO DE CARVALHO


especial para a Folha

José do Patrocínio tinha um objetivo e uma paixão: a libertação dos escravos. A esse objetivo e a essa paixão dedicou sua vida e subordinou suas lealdades políticas. Republicano, apoiou com entusiasmo Isabel quando a regente decidiu aderir incondicionalmente à abolição. O apoio lhe custou caro. Entre a abolição e a proclamação da República, travou luta sem quartel com os republicanos, sobretudo os paulistas, que lhe deram o epíteto insultuoso de "último negro vendido". Em represália, chamava-os de "piratas do barrete frígio", e "neo-republicanos da indenização". Nada lhe adiantou ter liderado o único movimento civil e popular do 15 de Novembro, aquele que proclamou a República no Senado da Câmara do Rio de Janeiro. Passou o resto da vida no ostracismo político e morreu pobre e tuberculoso em 1905.
Em 1991, diante do fato da convocação de um plebiscito sobre a forma e o sistema de governo, marcado para dois anos depois, escrevi um artigo que saiu publicado no "Jornal do Brasil" com o título "Esse Debate É Real". O artigo fazia um apelo no sentido de que se aproveitasse o plebiscito para uma discussão aprofundada da forma de governo, monarquia ou República, juntamente com o debate sobre o sistema presidencial ou parlamentarista.
O argumento justificador do apelo era simples. Partia da premissa inicial de que um dos graves problemas do país, se não o mais grave, era o da desigualdade social. Esse problema, segunda premissa, só poderia ser resolvido se os conflitos de interesse que necessariamente resultavam da desigualdade pudessem se manifestar livremente. Ora, prosseguia o argumento, nosso sistema republicano presidencialista é muito vulnerável ao conflito. Qualquer aumento de litígio provoca medo de desestabilização que, na melhor das hipóteses, redunda em apelos em favor de unidade nacional, de pactos, acordos, arranjos. Na pior das hipóteses, leva ao uso puro e simples da violência e da repressão.
A engenharia institucional da monarquia, que separa o chefe de Estado do chefe de governo e dá ao primeiro uma legitimidade simbólica mais poderosa do que a de um presidente de República parlamentarista, poderia, era a hipótese, dar ao sistema a estabilidade necessária para suportar sem abalos a liberação dos conflitos. Liberados estes, estariam criadas as condições políticas favoráveis à introdução de políticas redutoras da desigualdade. A idéia inicial era, portanto, aproveitar o plebiscito para discutir condições institucionais para a abolição de nossa escravidão do século 20, a escravidão da miséria. Naturalmente, o exemplo de países como a Inglaterra, a Holanda, a Bélgica, o Japão servia de inspiração para a hipótese.
O apelo, talvez ingênuo, fracassou. O debate não foi aceito nos termos propostos. Respostas agressivas e mal-humoradas levaram a discussão para cem anos atrás, para a história da monarquia brasileira. As reações negativas vieram em sua maioria, mas não exclusivamente, de São Paulo. Nas formas benignas ficavam entre a complacência, a ironia e a gozação. Nas formas malignas transformavam-se em acusações de reacionarismo e restauracionismo. Só faltou me acusarem de querer restabelecer a escravidão. O preço a pagar pelo estigma de monarquista foi suportar a hostilidade de alguns, o constrangimento de outros, sobretudo de amigos, alunos e orientandos, a estranheza de muitos. Além de vetos a convites para atividades acadêmicas, desconvites, desconfianças.
Apesar do caráter conjuntural do debate, apesar de nunca mais ter voltado ao tema, que considerei encerrado com o resultado do plebiscito, o estigma permaneceu. Sete anos depois, ele aparece, por exemplo, na resenha de meu último livro, "Pontos e Bordados", assinada por Marcelo Coelho e publicada no Mais!. A resenha, no geral, é aguda, elogiosa e simpática. Vindo de quem vem, isso me desvanece. Mas, lá pela metade dela, surge o desapontamento. Marcelo Coelho decide fazer um parêntese para afirmar rotundamente que sou monarquista, embora diga que tal característica não aparece no livro (na verdade, foi incluído nele o artigo inicial do debate, resumido acima). O parêntese dura até o fim da resenha e gira em torno da ambiguidade que existiria em meu pensamento por denunciar sistematicamente a desigualdade, a violência, a ausência de cidadania e ser, ao mesmo tempo, monarquista.
Aqueles que a divergência, real ou imaginada, não impediu de ler minha obra, e Marcelo Coelho parece ser um deles, sabem que, desde a publicação de "Os Bestializados", em 1987, meu tema obsessivo tem sido a denúncia da ausência, entre nós, de duas características básicas da República: a virtude cívica, apontada por Montesquieu nas repúblicas antigas, e a igualdade civil, detectada por Tocqueville na democracia norte-americana. A crítica persistente a nosso regime republicano se deve simplesmente ao fato de ter ele sido até hoje uma caricatura de si mesmo, uma casca institucional sem substância cívica. Ele tem horror a povo, não tolera conflito, sustenta-se sobre o privilégio e a desigualdade. A crítica é apenas uma busca da virtude e da igualdade republicanas.
A ambiguidade, pelo menos a apontada por Marcelo Coelho, só existe para aqueles que partem da hipótese de que eu seja monarquista, retrógrado ou liberal. Retrógrado nunca fui. Liberal, por convicção, também não. Defendi, para efeitos do plebiscito, a hipótese de que, em nossas circunstâncias, a engenharia institucional da monarquia representativa, aliada ao peso simbólico da figural real, poderiam ser instrumentais para a extinção da escravidão da desigualdade, portanto para a realização de valores republicanos. A hipótese poderia ser inepta ou utópica, mas nunca portadora de ambiguidade.
Seria presunçoso comparar-me a Patrocínio. Sua luta foi heróica e grandiosa, sua figura generosa e genial, seu destino trágico. Seu exemplo me veio à memória por ter ele sentido, com muito mais intensidade, a força do estigma.


José Murilo de Carvalho é professor titular do departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro.



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