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RÉPLICA
A força do estigma
JOSÉ MURILO DE CARVALHO
especial para a Folha
José do Patrocínio tinha um objetivo e uma paixão: a libertação
dos escravos. A esse objetivo e a
essa paixão dedicou sua vida e subordinou suas lealdades políticas.
Republicano, apoiou com entusiasmo Isabel quando a regente
decidiu aderir incondicionalmente à abolição. O apoio lhe custou
caro. Entre a abolição e a proclamação da República, travou luta
sem quartel com os republicanos,
sobretudo os paulistas, que lhe deram o epíteto insultuoso de "último negro vendido". Em represália, chamava-os de "piratas do
barrete frígio", e "neo-republicanos da indenização". Nada lhe
adiantou ter liderado o único movimento civil e popular do 15 de
Novembro, aquele que proclamou
a República no Senado da Câmara
do Rio de Janeiro. Passou o resto
da vida no ostracismo político e
morreu pobre e tuberculoso em
1905.
Em 1991, diante do fato da convocação de um plebiscito sobre a
forma e o sistema de governo,
marcado para dois anos depois,
escrevi um artigo que saiu publicado no "Jornal do Brasil" com o
título "Esse Debate É Real". O artigo fazia um apelo no sentido de
que se aproveitasse o plebiscito
para uma discussão aprofundada
da forma de governo, monarquia
ou República, juntamente com o
debate sobre o sistema presidencial ou parlamentarista.
O argumento justificador do
apelo era simples. Partia da premissa inicial de que um dos graves
problemas do país, se não o mais
grave, era o da desigualdade social. Esse problema, segunda premissa, só poderia ser resolvido se
os conflitos de interesse que necessariamente resultavam da desigualdade pudessem se manifestar
livremente. Ora, prosseguia o argumento, nosso sistema republicano presidencialista é muito vulnerável ao conflito. Qualquer aumento de litígio provoca medo de
desestabilização que, na melhor
das hipóteses, redunda em apelos
em favor de unidade nacional, de
pactos, acordos, arranjos. Na pior
das hipóteses, leva ao uso puro e
simples da violência e da repressão.
A engenharia institucional da
monarquia, que separa o chefe de
Estado do chefe de governo e dá ao
primeiro uma legitimidade simbólica mais poderosa do que a de
um presidente de República parlamentarista, poderia, era a hipótese, dar ao sistema a estabilidade
necessária para suportar sem abalos a liberação dos conflitos. Liberados estes, estariam criadas as
condições políticas favoráveis à
introdução de políticas redutoras
da desigualdade. A idéia inicial
era, portanto, aproveitar o plebiscito para discutir condições institucionais para a abolição de nossa
escravidão do século 20, a escravidão da miséria. Naturalmente, o
exemplo de países como a Inglaterra, a Holanda, a Bélgica, o Japão servia de inspiração para a hipótese.
O apelo, talvez ingênuo, fracassou. O debate não foi aceito nos
termos propostos. Respostas
agressivas e mal-humoradas levaram a discussão para cem anos
atrás, para a história da monarquia brasileira. As reações negativas vieram em sua maioria, mas
não exclusivamente, de São Paulo.
Nas formas benignas ficavam entre a complacência, a ironia e a gozação. Nas formas malignas transformavam-se em acusações de
reacionarismo e restauracionismo. Só faltou me acusarem de
querer restabelecer a escravidão.
O preço a pagar pelo estigma de
monarquista foi suportar a hostilidade de alguns, o constrangimento de outros, sobretudo de amigos, alunos e orientandos, a estranheza de muitos. Além de vetos a
convites para atividades acadêmicas, desconvites, desconfianças.
Apesar do caráter conjuntural
do debate, apesar de nunca mais
ter voltado ao tema, que considerei encerrado com o resultado do
plebiscito, o estigma permaneceu.
Sete anos depois, ele aparece, por
exemplo, na resenha de meu último livro, "Pontos e Bordados",
assinada por Marcelo Coelho e
publicada no Mais!. A resenha, no
geral, é aguda, elogiosa e simpática. Vindo de quem vem, isso me
desvanece. Mas, lá pela metade
dela, surge o desapontamento.
Marcelo Coelho decide fazer um
parêntese para afirmar rotundamente que sou monarquista, embora diga que tal característica
não aparece no livro (na verdade,
foi incluído nele o artigo inicial do
debate, resumido acima). O parêntese dura até o fim da resenha e
gira em torno da ambiguidade que
existiria em meu pensamento por
denunciar sistematicamente a desigualdade, a violência, a ausência
de cidadania e ser, ao mesmo tempo, monarquista.
Aqueles que a divergência, real
ou imaginada, não impediu de ler
minha obra, e Marcelo Coelho parece ser um deles, sabem que, desde a publicação de "Os Bestializados", em 1987, meu tema obsessivo tem sido a denúncia da ausência, entre nós, de duas características básicas da República: a virtude
cívica, apontada por Montesquieu
nas repúblicas antigas, e a igualdade civil, detectada por Tocqueville
na democracia norte-americana.
A crítica persistente a nosso regime republicano se deve simplesmente ao fato de ter ele sido até
hoje uma caricatura de si mesmo,
uma casca institucional sem substância cívica. Ele tem horror a povo, não tolera conflito, sustenta-se
sobre o privilégio e a desigualdade. A crítica é apenas uma busca
da virtude e da igualdade republicanas.
A ambiguidade, pelo menos a
apontada por Marcelo Coelho, só
existe para aqueles que partem da
hipótese de que eu seja monarquista, retrógrado ou liberal. Retrógrado nunca fui. Liberal, por
convicção, também não. Defendi,
para efeitos do plebiscito, a hipótese de que, em nossas circunstâncias, a engenharia institucional da
monarquia representativa, aliada
ao peso simbólico da figural real,
poderiam ser instrumentais para a
extinção da escravidão da desigualdade, portanto para a realização de valores republicanos. A hipótese poderia ser inepta ou utópica, mas nunca portadora de ambiguidade.
Seria presunçoso comparar-me
a Patrocínio. Sua luta foi heróica e
grandiosa, sua figura generosa e
genial, seu destino trágico. Seu
exemplo me veio à memória por
ter ele sentido, com muito mais
intensidade, a força do estigma.
José Murilo de Carvalho é professor titular do
departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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