São Paulo, domingo, 1 de novembro de 1998

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LIVROS
Coletânea "O Cinema Brasileiro" traz críticas da Folha em edição bilíngue
Dos filmes destes solo

da Redação

Leia, a seguir, um trecho do prefácio escrito por Amir Labaki para a antologia "O Cinema Brasileiro", por ele organizada.
A edição, bilíngue (português/inglês), chega às livrarias neste mês e traz uma seleção de críticas representativas da produção cinematográfica nacional feitas após 1960 por jornalistas e articulistas da Folha. Ela também será distribuída em Nova York, durante o festival de 59 longas brasileiros no MoMA (Museu de Arte Moderna), que acontece entre 13 de novembro e 22 de janeiro.

AMIR LABAKI

Entre os triunfos internacionais de "O Pagador de Promessas" (Palma de Ouro, Cannes-62) e "Central do Brasil" (Urso de Ouro, Berlim-98), transcorreram alguns dos capítulos mais brilhantes da história do cinema brasileiro. Curiosamente, ambos filmes impuseram-se como marcos de movimentos com os quais estabeleceram relações atípicas.
"O Pagador de Promessas", rodado por Anselmo Duarte a partir da engajada peça de Dias Gomes, sinaliza o amadurecimento de uma cinematografia em plena ebulição pré-Cinema Novo, apesar de Duarte e seus filmes jamais participarem do movimento. Por sua vez, com "Central do Brasil" Walter Salles completa a longa transição geracional em favor dos jovens realizadores que protagonizam hoje a retomada da produção. Contudo, mesmo egresso como muitos deles do curta-metragem e do documentarismo, Salles é um caso especial e único, pela antiguidade de sua estréia (1991) e pela variedade de sua obra ficcional. Além disso, seu filme anuncia os novos tempos ao mesmo tempo que realiza, em seu arco de influências, a súmula improvável entre o auge do Cinema Novo ("Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Os Fuzis" e "Vidas Secas") e o melhor dos anos Embrafilme ("Bye Bye Brasil", "Iracema", "Pixote, A Lei do Mais Fraco").
"O Pagador de Promessas", assim como "Central do Brasil", é um dos tantos marcos inaugurais desse cinema brasileiro que tem por história uma crônica de surtos e colapsos. Jamais a produção solidificou bases industriais. Anselmo Duarte e Walter Salles são, assim, tão pioneiros quanto Affonso Segretto, Mário Peixoto, Humberto Mauro, Alberto Cavalcanti, Nélson Pereira dos Santos, Roberto Santos e Glauber Rocha.
O cinema desembarcou no Brasil apenas sete meses depois da projeção inaugural parisiense dos irmãos Lumière. A primeira projeção pública aconteceu no Rio de Janeiro em 8 de julho de 1896, através de um "omniográfo". Debates sobre a honra da primeira filmagem até hoje se mantêm, mas convencionou-se datá-la em 19 de junho de 1898, quando o imigrante italiano Afonso Segreto rodou, chegando ao Rio por mar, "Fortalezas e Navios de Guerra na Baía de Guanabara".
Os primeiros dez anos limitam-se em geral aos registros documentais. O grande momento da era muda acontece entre 1908 e 1911, passando à história como a belle époque do cinema brasileiro. É o período do primeiro ciclo de filmes de ficção, estando a produção escorada por um sólido circuito de distribuição e exibição.
O primeiro grande colapso acontece entre 1911 e 1912, como que prenunciando a conquista do mercado pelas produções internacionais, americanas à frente. Até o fim da era muda o centro de produção transferiu-se para São Paulo (Gilberto Rossi, José Medina), vivendo-se ainda intenso período de ciclos regionais (Amazonas, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul).
Quatro nomes se destacariam. No Rio, em meados dos anos 10, estreava o eclético Luiz de Barros, que desenvolveu uma das mais prolíficas carreiras no cinema brasileiro. Na década seguinte, Adhemar Gonzaga partia do jornalismo (a revista "Cinearte") para se tornar um dos mais completos homens de cinema surgidos no país, fundando em 1930 o primeiro grande estúdio nacional, a Cinédia.
Na pequena Cataguases mineira, vinculada à já decadente economia cafeeira, surgia no final dos anos 20 o primeiro grande cineasta nacional, Humberto Mauro, sob a forte influência inicial das aventuras de Henry King e dos melodramas de Griffith. Pouco depois, já no ocaso da era muda, a produção experimental brasileira conhecia seu primeiro grande marco com "Limite" (1930), rodado por um jovem de 18 anos, Mário Peixoto.
O advento do cinema sonoro detona o longo ciclo de comédias musicais populares, que passam à história como chanchadas. A Cinédia de Gonzaga cumpre papel pioneiro, perdendo a hegemonia nos anos 40 para os estúdios da Atlântida.
A simplicidade das tramas e o caráter "clownesco" do humor de Grande Otelo e Oscarito estigmatizou as chanchadas como um cinema vulgar e comercial. Visando lançar as bases de uma produção "artística" em bases industriais, surgia na São Paulo da virada dos anos 40-50 a Companhia Vera Cruz, liderada por Alberto Cavalcanti e moldada na Cinecittà italiana.
A ênfase fixava-se então na abordagem de temas nacionais filmados a partir de sólidos valores de produção. Os elevados custos produtivos jamais encontraram o alicerce de um sistema eficiente de distribuição e exibição. A história de Vera Cruz já era a crônica de uma falência anunciada quando "O Cangaceiro", de Lima Barreto, tornou-se em 1954 o primeiro grande sucesso internacional do cinema brasileiro, arrebatando dois prêmios no festival de Cannes.
A aposta no modelo industrial dos estúdios é substituída a partir de meados dos anos 50 pela crença na produção independente de filmes de orçamentos modestos. A influência do neo-realismo italiano fez-se sentir, no eixo Rio-São Paulo, em filmes como "Agulha no Palheiro" (1953) de Alex Viany, "Rio 40 Graus" (1955) de Nelson Pereira dos Santos, "A Estrada" (1957) de Oswaldo Sampaio e "O Grande Momento" (1958) de Roberto Santos.
Os ecos dessa produção mais ligeira e barata, rodada ao ar livre por equipes compactas, chegaram ao Nordeste, estimulando sobretudo na Bahia o desenvolvimento de um novo ciclo cinematográfico ("Redenção", "A Grande Feira", "Bahia de Todos os Santos"). Um dos jovens então estreantes chamava-se Glauber Rocha.
Glauber não demorou a estabelecer laços com profissionais experientes, como o fotógrafo e produtor Luiz Carlos Barreto e o diretor Nelson Pereira dos Santos, assim como com uma nova geração de cineastas de esquerda do Rio de Janeiro (Arnaldo Jabor, Carlos Diegues, David Neves, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Ruy Guerra, entre outros). Formava-se, assim, no início dos anos 60, o núcleo central do movimento batizado de "Cinema Novo". O lema passava a ser "uma câmera na mão, uma idéia na cabeça": filmagens ao ar livre (neo-realismo), com equipamentos leves ("Nouvelle Vague"), abordando histórias e personagens brasileiros.
Num desses paradoxos de que se constrói a história, o triunfo em Cannes-62 de um ex-ator da combatida Vera Cruz tornado diretor (Anselmo Duarte) abre as portas para a consagração internacional dos primeiros filmes cinemanovistas. Não eram filmes quaisquer: quase simultaneamente, em 1963 e 1964, ficavam prontos os títulos da "trilogia do sertão" -"Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, "Os Fuzis", de Ruy Guerra, "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos. A miséria, a fome, a opressão e a religiosidade do Nordeste brasileiro chegavam às telas em narrativas cinematográficas de rara originalidade e contundência.



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