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+ brasil 500 d.C.
O vocabulário de "Sexo" é intencionalmente pobre, os
personagens, rasos, as expressões, semelhantes às das
vozes que, televisivamente, martelam nossos ouvidos
A literatura como risco
Luiz Costa Lima
É possível a um relato novelesco tematizar a idiotice contemporânea
sem se converter ele mesmo em
idiotice? Mantida ao final da leitura do segundo livro de André Sant'Anna,
"Sexo" (Sette Letras), a pergunta supõe
que saibamos sua resposta: não. "Sexo" é
uma denúncia feroz, mas eficiente, realizada ao nível mesmo da linguagem, da
imbecilização róseo-eletrônica com que
se encerra o milênio.
Mas que se entende por realização ao
nível da linguagem? Embora creia sabê-lo, nada me garante que saiba dizê-lo.
Começo, pois, pelo título deste artigo. Ao
chamá-lo a literatura como risco, afirmo
que tratarei de uma experiência literária
de extrema ousadia. Devo acrescentar:
sua ousadia começa por aparentemente
nada dever ao que se reconhece como literário. Uma amostra de seu começo:
"As caixas de som, No TETO DO ELEVADOR, emitiam a música de Ray Conniff. O negro, diante da porta pantográfica, fedia. A gorda, que pisava no calcanhar do negro, fedia. O
negro fedia a suor. A gorda fedia a perfume Avon.
O ascensorista, de bigode,
cochilava. O Executivo de
óculos Ray-Ban" etc. O
vocabulário é intencionalmente pobre,
as frases, intencionalmente lineares, os
personagens, rasos, as expressões, semelhantes às das vozes que, cotidiana e televisivamente, martelam nossos ouvidos.
Cada história leva a alguma cama.
Lentes gigantescas
Como o leitor
não considerará "Sexo" equivalente a
um dos tantos pornôs apreciados pelas
editoras? Sim, é possível. E não fará mal
algum que o engano de leitores aumente
sua vendagem: para ser eficaz, a crítica à
sociedade de mercado há de passar pelo
mercado. Se esse mergulho no inferno é
pouco provável para o ensaio e altamente improvável para o ensaio teórico, é
passível de suceder na prosa novelesca. A
plasticidade da literatura permite que ela
assuma usos não literários. Mas como a
literatura não se descaracterizaria se, de
início, "Sexo" renuncia à identificação literária? Sumariamente, porque a linguagem banalizada é sujeita a lentes que a
agigantam.
Essas lentes têm a propriedade de converter o que refinadamente se chama(va)
"topoi" em inequívocos clichês. Os clichês acompanham o corte transversal na
sociedade. A maneira mais direta de verificá-lo consiste em alinhar os tipos que
seriam os personagens. O negro que fede
e a loura que fede a perfume barato pertencem a escalões baixos da sociedade,
assim como as secretárias louras e bronzeadas estão em escalão intermédio, diferentemente daquele em que se encontra o jovem casal meio hippie, por sua
vez não idêntico ao do executivo de óculos Ray-Ban, dos executivos de gravatas
com tal ou qual combinação de cores,
daquele outro, descontraído, que usa
roupas jovens e tem um carro importado. Estes se integram em escalão elevado,
mas não tão elevado como o diretor de
uma multi ou o negro "pop star", que,
"naturalmente", não fede.
Não há novidade em nada disso: em
cada escalão, reconhece-se a classificação das agências de publicidade classes
C, B, B+, A. Cada um usa clichês, faz piadas, frequenta lugares e aspira parceiros
sexuais e "climas" diferenciados. Nossa
sociedade é tão visivelmente desigual
que não se poderia dizer que há aqui alguma descoberta. Onde pois estaria a
lente de aumento e porque os tipos são
verdadeiros clones? Por efeito de um duplo dispositivo: quer os tipos tenham ou
não tenham nome próprio, seguem sempre um figurino. Os clichês se congelam
em padrões. Assim o jovem descontraído não dirigirá seu importado para o
mesmo tipo de motel que a loura gorda; e
o negro que fede nem sequer pensará em
alugar um quarto de motel. Obedecer a
um padrão, tanto mais rígido porque
não imposto, significa não ter nome.
O nome próprio é um mero cacoete. A
identidade é a do segmento social em
que cada um está. Claro que, desigual, a
sociedade não é imóvel. O negro que não
fede, que é um astro pop, que fuma a maconha superior que cultivara em sua própria fazenda, já fora um borracheiro que
fedia. Em troca, o adolescente que cultiva
gostos não estandardizados apenas se
prepara para sua breve integração. A este
dispositivo se agrega um segundo: cada
tipo acumula progressivamente novos
clichês, que passam a fazer parte de sua
designação, de modo que a referência a
cada um supõe a repetição da carga acumulada.
O dispositivo vai além da designação
dos clones e se expande ao nível das frases ou mesmo dos períodos. Passam assim a haver verdadeiros clones-gêmeos,
como os dois jovens executivos, cuja "individualidade" se limita à diferença das
cores de suas gravatas listradas, que têm
noivas igualmente louras, que preferem
os mesmos filmes, que lêem os mesmos
artigos da mesma revista etc. Os clones-gêmeos são induzidos aos mesmos erros,
que levam suas noivas a romperem com
eles e, finalmente, a se casarem cada uma
com o ex-parceiro da outra.
O que chamamos de dois dispositivos
não atualiza o que, no vocabulário nobre-clássico, se chamava paródia? Sem
dúvida. Só que a paródia é aqui tão gigantescamente ostensiva que o nome se
torna impróprio. Precisamos de uma expressão direta para o universo cru. "Sexo" é o pôster sem retoques, cuja ampliação revela os grãos de uma sociedade imbecilizante. Mas a imbecilização por si
não é capaz de manter uma sociedade. É
preciso que essa tenha um eixo que, imbecilizante, não se confunda com o seu
produto. Que eixo, pois, tem a sociedade,
cujo microcosmo serve de matéria para
"Sexo"?
Seu título já o diz. O que antes se chamaria erotismo se converte em culto, industrialmente estimulado, do pau e da
vagina. Essa ossatura é tão una que dela
não escapa nem o quarentão de Ray-Ban, nem o psicanalista que, enquanto lê
Freud, pensa na jovem vendedora da butique de roupas jovens. Mas um elemento não afina com a ossatura, e a dela é potencialmente desagregadora: os clones
dos escalões mais baixos são atraídos pelo sagrado que não está nas cogitações
dos demais. A igreja a que aderem os domestica, ensinando-lhes bons modos e
não condenando a sexualidade livre entre os fiéis. Assim fazendo, seus "bispos"
favorecem a ordem social, não são incomodados e asseguram seu bem-estar.
Por que então pensar que tal religioso é
potencialmente desagregador?
A afirmação remete à teoria do sagrado
que René Girard desenvolvera em "La
Violence et le Sacré". Girard tomava como ponto de partida o que chamava o
"desejo mimético" -em vez de o desejo
ser definido pela atração por um objeto,
ele se configuraria em razão da existência
de um rival, no desejo. O rival é, ao mesmo tempo, admirado e odiado. Na medida em que esse mecanismo se estende
pela sociedade, ela é ameaçada por uma
violência indiscriminada. As sociedades
arcaicas teriam aprendido a conjurá-la
por meio da escolha de uma vítima expiatória, sobre a qual se concentraria toda a violência da sociedade.
O sacrifício da vítima, de sua parte, era
justificado em razão de um sagrado, cuja
sede de sangue seria aplacada pela imolação da vítima. Em suma, o sacrifício
constituiria a "boa violência", aquela que
simultaneamente eliminaria a violência
indiscriminada e satisfaria o deus que a instilara
nas criaturas. Aqui está a
questão. A sociedade contemporânea elege como
vítima por excelência o
pobre feio e velho. Em vez, contudo, de
ser ela uma vítima que condensa e neutraliza a violência indiscriminada, ela assume o caráter de o excluído.
No vocabulário corriqueiro, é um "loser", o perdedor, a que se contrapõe a escala dos vencedores. Por isso mesmo, o
"sagrado" contemporâneo interessa
apenas aos excluídos. É certo que seus
administradores procuram um "re-ligare" que favoreça a ordem social. E esta
aceita a nova "religião" enquanto ela desarma os perdedores. De qualquer modo, os vencedores ignoram tal sagrado e
adoram apenas o sexo indiscriminado.
Em termos de Girard, vivemos o momento avançado da "crise sacrificial",
aquele em que a violência indiscriminada ou já explodiu ou está em vias de explodir. Seria esse o germe da fratura contra a sociedade imbecilizante? Ao se ampliar em pôster gigantesco, "Sexo" converte o pornô em denúncia.
Luiz Costa Lima é crítico, professor da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica-RJ e autor de "Vida e Mimesis". Ele escreve
mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.".
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