São Paulo, Domingo, 02 de Janeiro de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ última palavra
Para o sociólogo inglês Anthony Giddens, os jovens querem ser desassociados da idéia de que estão numa fase passageira e buscam firmar uma identidade cultural própria
A longevidade da adolescência

Sylvia Colombo
em Londres

"Mas...você não vai me perguntar nada sobre a Terceira Via?", estranhou o sociólogo britânico Anthony Giddens no final da entrevista que concedeu à Folha, em agosto de 99, na sede da London School of Economics (da qual é o diretor), em Londres.
Giddens é um dos mentores da ideologia política por trás do governo do primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair. A Terceira Via, como foi chamada, fez com que Giddens ficasse internacionalmente conhecido como "guru" de um ideário que propõe a reformulação do papel da esquerda à luz da social-democracia.
Seu trabalho, porém, é bem mais abrangente. O sociólogo tem uma obra ampla que analisa as transformações das relações sociais, políticas e econômicas no mundo globalizado.
A Folha procurou Giddens para falar sobre as mudanças no processo de envelhecimento na atual sociedade globalizada e como o novo papel do adolescente está alterando a relação entre as gerações. Para Giddens, a adolescência busca se firmar, hoje em dia, não mais como fase passageira, e sim como uma etapa da vida humana com identidade cultural própria.
Giddens considera também que a mídia e a indústria do entretenimento tem papel importante na formação desta identidade.

Segundo o o historiador Phillipe Ariés, o conceito de infância nasceu num contexto histórico específico, respondendo a uma necessidade de classificação de uma fase do crescimento. Como o sr. vê as mudanças do conceito de adolescência?
A definição que temos do adolescente está relacionada com a definição que temos da infância e da fase adulta. Se os conceitos de criança e de adolescente estão mudando por razões históricas, é porque ambos são invenções históricas. Com o nascimento da definição da criança, tivemos a formulação de uma idéia sobre um tipo específico de infância, a infância tardia, o adolescente.
Quais são as transformações do papel social do adolescente, com o passar do tempo?
Nos países ocidentais, a afirmação do adolescente correu paralelamente ao declínio das taxas de nascimento. Isso porque, quando se tem muitas crianças, o comportamento dos adultos em relação a elas é diferente. Simplificando, se há muitas crianças e a morte no começo da vida é comum, devido a doenças e condições precárias de saúde, a vida desses pequenos seres humanos é banalizada, em termos gerais, pela sociedade. Quando passa a ocorrer menos nascimentos e há maior qualidade de vida, os jovens tornam-se uma possibilidade de investimento concreto para a sociedade, porque se sabe que irão viver e trabalhar mais.
Isso refletiu uma mudança no conceito de família também?
Sim, o nascimento do conceito de adolescente está vinculado à idéia de família com poucos filhos. Seu crescimento é acompanhado mais de perto, o que faz com que se percebam as diferenças de comportamento entre uma criança e uma criança quase adulta. Eis que temos o adolescente.
Então, o surgimento do conceito de adolescente tem a ver com o apogeu da vida urbana e burguesa?
Sim. Foi sendo criada uma necessidade de proteção dos adolescentes e das crianças. Hoje em dia, um crime contra uma criança, um jovem, é inaceitável, mas não era assim no passado. Não havia leis que os protegessem sequer do abuso dos pais. A particularização do crescimento, a classificação do adolescente, resultou na criação de leis para protegê-los.
Como o sr. vê as transformações nas relações entre adolescente e trabalho?
O trabalho redefine o conceito de criança e de adolescente onde quer que seja, pois diz respeito a conceder responsabilidade dentro da sociedade. Na Inglaterra medieval as crianças eram mandadas a trabalhar, como ocorre hoje em países de Terceiro Mundo, como o Brasil. O trabalho pode dar autoridade ao adolescente, em sociedades que os valorizam por seu papel na coletividade, ou pode abandoná-los às más condições de trabalho, com a justificativa de não serem adultos "de verdade", o que costuma acontecer no Terceiro Mundo.
O sr. não considera que as crianças de hoje estariam agindo como os adolescentes de ontem? Acredita que os adolescentes percebam isso?
Percebem, inconscientemente. É por isso que, ainda que inconscientemente, eles buscam dar à sua cultura, um caráter permanente. Os adolescentes querem ser desassociados da idéia de que estão numa fase passageira e indefinida.
O sr. não concorda que os adolescentes estejam mais integrados à ordem capitalista por serem mais flexíveis e voláteis, como é a própria sociedade capitalista?
Não. Acho que a adolescência busca uma identidade sólida dentro das transformações ocasionadas pelo processo de globalização. As transformações que aconteciam com um indivíduo na adolescência foram transferidas para a infância. A exposição à mídia, as mudanças físicas, as primeiras questões sobre sexo, o desenvolvimento da relação com o corpo acontecem hoje na infância. Assim, quando adolescente, o indivíduo já não tem o mesmo tipo de dúvida que tinha no passado.
Com que o sr. acha que eles estão preocupados hoje?
É um fato curioso, mas os adolescentes de hoje, diferentemente dos gerados pela contracultura, estão menos preocupados com política e luta de classes e mais interessados em questões como direitos humanos, ecologia e direitos sexuais; enfim, valores mais universais do que os de antes.
O sr. concorda que os meios de comunicação de massa, o mercado de cultura pop e do entretenimento, perceberam a potencialidade do filão que é o adolescente mais do que os acadêmicos tiveram como interpretar o aumento da importância desta fase da vida humana?
Em parte é verdade. O impacto da comunicação de massa é muito forte. Antes, os adolescentes flutuavam entre dois tipos de cultura, agora têm uma própria, e ela é alimentada pela mídia, num processo em que a comunicação globalizada e a Internet são fatores importantes. Isso tem um lado positivo, que é o de colocar os jovens em contato com outras culturas. Por outro lado, acho que o culto ao corpo celebrado pela mídia tem causado disfunções.
Por exemplo?
Fiquei impressionado com o aumento do número de casos de anorexia na Europa. Meninas, crianças que, obcecadas pela idéia de ficarem magras como as modelos, deixam de comer numa fase importante do crescimento. É um exemplo de como as transformações sociológicas interferem nas fisiológicas e vice-versa.
O sr. acha que a mudança na postura e no papel do adolescente nestes tempos está propiciando transformações nas outras fases da vida humana também?
Sim, a natureza do crescimento humano está mudando e o que temos é a liberalização dos dogmas que regram cada fase do crescimento humano. Acho que a transformação da velhice terá grandes consequências na forma como a sociedade se estrutura. Antes a doença e a morte vinham mais cedo. Hoje se faz muito mais coisas na última fase da vida. Temos idosos entrando e saindo de relacionamentos, dirigindo, indo a bares. Enfim, temos mais idosos -e idosos ainda mais idosos do que antes- ativos. A indústria do entretenimento, que hoje focaliza o adolescente, deve descobrir isso em breve, pois o potencial consumidor desse grupo está crescendo.


Texto Anterior: José Simão: Buemba! Já tô com saudades de 99!
Próximo Texto: + crônica - Paulo Mendes Campos: O amor acaba
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.