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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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A anatomia da biografia

por Peter Burke

Um dos gêneros literários mais populares de hoje é a biografia. Isso se aplica especialmente ao mundo de língua inglesa, mas as listas de livros mais vendidos no Brasil também revelam grande interesse público pelas biografias, especialmente as de pessoas do século 20, desde "Chatô" a Olga Prestes. Não é difícil compreender o porquê disso. Como sugere a onipresença da fofoca, a maioria de nós acha as vidas de outras pessoas fascinantes. Narrativas são mais fáceis de ler e mais instigantes de acompanhar do que análises ou mesmo descrições, e as vidas de indivíduos são mais acessíveis para nós do que as de sociedades ou culturas inteiras, sendo que seus dramas se desenrolam numa escala temporal semelhante a de nossas próprias vidas. Quer sejamos pessoas mais velhas recordando nossa juventude ou pessoas mais jovens tentando imaginar como deve ser a velhice, a história de uma vida individual é repleta de interesse humano. Mesmo assim, algumas culturas (a européia e a chinesa, por exemplo) manifestam mais interesse do que outras pelos relatos de vidas individuais, enquanto diferentes tipos de pessoas apreciam diferentes tipos de biografia. A hagiografia, por exemplo, possui uma história longa, quer assuma a forma da vida de um santo ou da de um herói ou heroína de outra espécie -estadista, estrela de cinema, cantor, jogador de futebol-, cujas conquistas são apresentadas para que o leitor as admire e, possivelmente, tente imitar. Mas também existe um mercado para o tipo oposto de biografia, a biografia anti-heróica, na qual o autor demole as pretensões e expõe os pontos fracos da pessoa sobre a qual escreve. É o caso da biografia da rainha Vitória escrita por Lytton Strachey, lançada em 1921, mas traduzida apenas recentemente para o português ["Rainha Vitória", editora Record". Já houve momentos e lugares em que governantes e guerreiros foram vistos como os sujeitos mais apropriados de biografias, e outros em que a ênfase recaiu sobre indivíduos criativos, como Michelangelo, Proust ou Beethoven. Doenças e jantares O problema para quem quiser escrever sobre pessoas como essas é que o mais importante é sua vida interior, e essa vida interior pode não ter os acontecimentos ou datas com os quais os biógrafos costumam contar. A história da vida de Proust, por exemplo, é uma crônica de acontecimentos triviais, como doenças e jantares, mas esses acontecimentos formaram a matéria-prima para um grande livro.
Como sugere o último exemplo, a biografia é um gênero que inclui variedades distintas e que pode ser adaptado a finalidades diferentes. Na verdade, pode-se sugerir que o próprio gênero da biografia possui uma biografia própria, tendo assumido formas diferentes ao longo dos séculos, à medida que os interesses de leitores e escritores foram se modificando. Uma tendência recente, característica de uma cultura em que a "imagem" de um indivíduo, instituição, lugar ou produto é levada mais a sério do que nunca, é prestar atenção não apenas ao que fizeram ou pensaram os protagonistas de biografias, mas também à maneira como se apresentavam, àquilo que o crítico americano Stephen Greenblatt chama de "automoldagem": autodramatização, autopromoção ou a tentativa de copiar o modelo da vida de outra pessoa.
Um estudo recente sobre Cristóvão Colombo escrito pelo acadêmico Felipe Fernandez-Armesto, por exemplo, toma nota da preocupação que Colombo teve durante toda a vida com a autopromoção e a autodivulgação, descrevendo-o como "exibicionista mesmo quando se fazia passar por humilde" e dizendo que ele representava um papel "extraordinariamente bem escrito". Outro exemplo: uma biografia recente do poeta irlandês William Butler Yeats, pelo historiador Roy Foster, atribui ênfase ao modo como o poeta se apresentava em público: suas roupas, especialmente a conhecida capa preta e o chapéu grande, os gestos teatrais, a preocupação com os seus retratos reproduzidos nas primeiras páginas de seus livros, suas autobiografias e o que um contemporâneo dele descreveu, em 1915, como "a construção de uma lenda em torno dele mesmo".
Autobiografias e livros de memórias constituem maneiras especialmente eficazes para as pessoas apresentarem o que pode se chamar de "a versão autorizada" de suas vidas, fazendo crer que buscaram determinadas metas sem as hesitações, os desvios e as confusões que fazem parte da vida de todas as pessoas. Publicar cartas é outro meio usado para o mesmo fim. Cinquenta anos após a invenção da imprensa, Erasmo já pensava em publicar uma coletânea de suas cartas, algumas das quais ele reviu ou reescreveu para esse fim. Se queremos detalhes sobre a vida de uma pessoa, coletâneas de cartas como essa devem ser vistas com alguma desconfiança, e a mesma coisa se aplica a autobiografias e livros de memórias. Mesmo assim, são inestimáveis como documentos que revelam a auto-imagem da pessoa. Como diz Foster sobre o relato feito por Yeats de sua infância e juventude, ele diz mais sobre o poeta como ele era em 1914, ano em que o escreveu, do que como era em sua infância.


Vistos no passado como virtualmente irrelevantes para a história, hoje os impostores são estudados com cuidado


Nos últimos anos, os historiadores também vêm manifestando interesse crescente por pessoas do passado que podem ser descritas como tendo sido flagradas experimentando identidades diferentes. Essas pessoas incluem membros da burguesia que tentaram se fazer passar por nobres, cristãos que fizeram de conta que eram muçulmanos para ganhar acesso ao santuário de Meca e mulheres que se vestiram como homens, chegando a fazer carreira nos exércitos e marinhas britânicos, franceses e holandeses. Vistos no passado como virtualmente irrelevantes para a história, hoje os impostores são estudados com cuidado, como aconteceu no caso do falso Martin Guerre, um camponês francês do século 16 que fugiu para servir como soldado e, quando voltou para casa, descobriu que seu lugar na roça e na cama de sua mulher tinha sido tomado por um amigo dele. A história ficou famosa nos anos 1980, quando a historiadora americana Natalie Davis ["O Retorno de Martin Guerre], ed. Paz e Terra" e o cineasta francês Daniel Vigne [Idem, 1982] estavam trabalhando sobre ela ao mesmo tempo -uma coincidência que revela alguma coisa sobre as preocupações de nossa própria cultura. Uma figura menor do século 18 que se tornou alvo de atenções desse tipo, embora não seja tão famosa quanto Martin Guerre, foi George Psalmanazar, um francês que experimentou diversas profissões antes de ir à Inglaterra e tentar fazer-se passar por natural de Formosa. Ele publicou uma descrição detalhada da ilha em 1704 e foi levado a sério pelos cientistas da Royal Society, até ser desmascarado e denunciado como impostor. Psalmanazar representou muitos papéis. Ele foi japonês, natural de Formosa, francês, holandês, judeu, estudante, refugiado, soldado, convertido, estudioso e empresário empreendedor. Nas últimas décadas, a ascensão da história social às expensas da história política criou, por algum tempo, a impressão de que a biografia se tornaria um gênero obsoleto, pelo menos no mundo acadêmico. Mas acabou se descobrindo que o interesse pela história social incentivou o surgimento de novas formas de biografia, especialmente duas. Uma delas é o relato da história de uma pessoa comum, muitas vezes como meio de os leitores, em sua imaginação, penetrarem na vida de outra época -se bem que os biógrafos desse tipo discordem quanto ao tipo de pessoa mais indicado para ser escolhido para essa finalidade. Alguns escolheriam um indivíduo típico de sua era, enquanto outros preferem o que se pode chamar de uma pessoa ordinária extraordinária, alguém como Martin Guerre ou Menocchio, o moleiro italiano dotado de idéias religiosas excêntricas que domina o estudo "O Queijo e os Vermes", de Carlo Ginzburg [Companhia das Letras]. Uma segunda tendência nova tem sido a criação de biografias escritas coletivamente. Por exemplo, equipes de historiadores estudaram todos os integrantes de um grupo específico, tal como o dos senadores romanos da Antiguidade ou dos parlamentares britânicos modernos. As conclusões muitas vezes são esclarecedoras, mas são difíceis, quando não impossíveis, de comunicar sob uma forma que possa ser reconhecida como biográfica. Outra possibilidade, explorada recentemente, consiste em focalizar um pequeno grupo ou rede de amigos ou conhecidos unidos em torno de um empreendimento comum, como, por exemplo, os chamados "pais fundadores" da República americana -George Washington, Thomas Jefferson, Benjamin Franklin etc.- ou os membros da Sociedade Lunar de Birmingham, um clube britânico do século 18 cujos sócios incluíam cientistas e empresários e que foi estudado em "The Lunar Men" (2002), de Jenny Uglow.

Formas híbridas
É claro que se pode argumentar que essas formas de escrito não constituem biografias, assim como a descrição feita por Peter Ackroyd de sua história recente de Londres como sendo uma "biografia" pode ser vista como nada mais do que uma metáfora (como a outrora famosa "biografia" do rio Nilo escrita por Emil Ludwig). Mas acho que seria mais esclarecedor tratar essas afirmações com semi-seriedade e pensar nos textos acima descritos como sendo formas híbridas.
Gilberto Freyre certa vez descreveu um de seus livros como sendo uma "seminovela". De maneira semelhante, o livro de Ackroyd sobre Londres e o estudo da Sociedade Lunar feita por Uglow podem ser descritos como "semibiografias". Como acontece muitas vezes na história, parece que o melhor lugar para fazer descobertas e inovações é na fronteira, incluindo aquela que separa um gênero intelectual ou literário de outro.

Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social" (ed. Unesp) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.


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