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A anatomia da biografia
por Peter Burke
Um dos gêneros literários mais
populares de hoje é a biografia.
Isso se aplica especialmente ao
mundo de língua inglesa, mas
as listas de livros mais vendidos no Brasil
também revelam grande interesse público pelas biografias, especialmente as de
pessoas do século 20, desde "Chatô" a
Olga Prestes. Não é difícil compreender o
porquê disso. Como sugere a onipresença da fofoca, a maioria de nós acha as vidas de outras pessoas fascinantes. Narrativas são mais fáceis de ler e mais instigantes de acompanhar do que análises
ou mesmo descrições, e as vidas de indivíduos são mais acessíveis para nós do
que as de sociedades ou culturas inteiras,
sendo que seus dramas se desenrolam
numa escala temporal semelhante a de
nossas próprias vidas. Quer sejamos pessoas mais velhas recordando nossa juventude ou pessoas mais jovens tentando imaginar como deve ser a velhice, a
história de uma vida individual é repleta
de interesse humano.
Mesmo assim, algumas culturas (a européia e a chinesa, por exemplo) manifestam mais interesse do que outras pelos relatos de vidas individuais, enquanto diferentes tipos de pessoas apreciam
diferentes tipos de biografia. A hagiografia, por exemplo, possui uma história
longa, quer assuma a forma da vida de
um santo ou da de um herói ou heroína
de outra espécie -estadista, estrela de
cinema, cantor, jogador de futebol-,
cujas conquistas são apresentadas para
que o leitor as admire e, possivelmente,
tente imitar. Mas também existe um
mercado para o tipo oposto de biografia,
a biografia anti-heróica, na qual o autor
demole as pretensões e expõe os pontos
fracos da pessoa sobre a qual escreve. É o
caso da biografia da rainha Vitória escrita por Lytton Strachey, lançada em 1921,
mas traduzida apenas recentemente para o português ["Rainha Vitória", editora Record".
Já houve momentos e lugares em que
governantes e guerreiros foram vistos
como os sujeitos mais apropriados de
biografias, e outros em que a ênfase recaiu sobre indivíduos criativos, como
Michelangelo, Proust ou Beethoven.
Doenças e jantares
O problema
para quem quiser escrever sobre pessoas
como essas é que o mais importante é
sua vida interior, e essa vida interior pode não ter os acontecimentos ou datas
com os quais os biógrafos costumam
contar. A história da vida de Proust, por
exemplo, é uma crônica de acontecimentos triviais, como doenças e jantares, mas
esses acontecimentos formaram a matéria-prima para um grande livro.
Como sugere o último exemplo, a biografia é um gênero que inclui variedades
distintas e que pode ser adaptado a finalidades diferentes. Na verdade, pode-se
sugerir que o próprio gênero da biografia
possui uma biografia própria, tendo assumido formas diferentes ao longo dos
séculos, à medida que os interesses de
leitores e escritores foram se modificando. Uma tendência recente, característica de uma cultura em que a "imagem" de
um indivíduo, instituição, lugar ou produto é levada mais a sério do que nunca,
é prestar atenção não apenas ao que fizeram ou pensaram os protagonistas de
biografias, mas também à maneira como
se apresentavam, àquilo que o crítico
americano Stephen Greenblatt chama de
"automoldagem": autodramatização,
autopromoção ou a tentativa de copiar o
modelo da vida de outra pessoa.
Um estudo recente sobre Cristóvão
Colombo escrito pelo acadêmico Felipe
Fernandez-Armesto, por exemplo, toma
nota da preocupação que Colombo teve
durante toda a vida com a autopromoção e a autodivulgação, descrevendo-o
como "exibicionista mesmo quando se
fazia passar por humilde" e dizendo que
ele representava um papel "extraordinariamente bem escrito". Outro exemplo:
uma biografia recente do poeta irlandês
William Butler Yeats, pelo historiador
Roy Foster, atribui ênfase ao modo como
o poeta se apresentava em público: suas
roupas, especialmente a conhecida capa
preta e o chapéu grande, os gestos teatrais, a preocupação com os seus retratos
reproduzidos nas primeiras páginas de
seus livros, suas autobiografias e o que
um contemporâneo dele descreveu, em
1915, como "a construção de uma lenda
em torno dele mesmo".
Autobiografias e livros de memórias
constituem maneiras especialmente eficazes para as pessoas apresentarem o
que pode se chamar de "a versão autorizada" de suas vidas, fazendo crer que
buscaram determinadas metas sem as
hesitações, os desvios e as confusões que
fazem parte da vida de todas as pessoas.
Publicar cartas é outro meio usado para
o mesmo fim. Cinquenta anos após a invenção da imprensa, Erasmo já pensava
em publicar uma coletânea de suas cartas, algumas das quais ele reviu ou reescreveu para esse fim. Se queremos detalhes sobre a vida de uma pessoa, coletâneas de cartas como essa devem ser vistas com alguma desconfiança, e a mesma coisa se
aplica a autobiografias e
livros de memórias. Mesmo assim, são inestimáveis como documentos
que revelam a auto-imagem da pessoa. Como diz
Foster sobre o relato feito
por Yeats de sua infância e
juventude, ele diz mais sobre o poeta como ele era
em 1914, ano em que o escreveu, do que como era
em sua infância.
Vistos no passado como virtualmente irrelevantes para a história, hoje os impostores são estudados com cuidado
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Nos últimos anos, os historiadores
também vêm manifestando interesse
crescente por pessoas do passado que
podem ser descritas como tendo sido flagradas experimentando identidades diferentes. Essas pessoas incluem membros da burguesia que tentaram se fazer
passar por nobres, cristãos que fizeram
de conta que eram muçulmanos para ganhar acesso ao santuário de Meca e mulheres que se vestiram como homens,
chegando a fazer carreira nos exércitos e
marinhas britânicos, franceses e holandeses. Vistos no passado como virtualmente irrelevantes para a história, hoje
os impostores são estudados com cuidado, como aconteceu no caso do falso
Martin Guerre, um camponês francês do
século 16 que fugiu para servir como soldado e, quando voltou para casa, descobriu que seu lugar na roça e na cama de sua mulher tinha sido tomado por um
amigo dele. A história ficou famosa nos
anos 1980, quando a historiadora americana Natalie Davis ["O Retorno de Martin Guerre], ed. Paz e Terra" e o cineasta
francês Daniel Vigne [Idem, 1982] estavam trabalhando sobre ela ao mesmo
tempo -uma coincidência que revela
alguma coisa sobre as preocupações de
nossa própria cultura.
Uma figura menor do século 18 que se
tornou alvo de atenções desse tipo, embora não seja tão famosa quanto Martin
Guerre, foi George Psalmanazar, um
francês que experimentou diversas profissões antes de ir à Inglaterra e tentar fazer-se passar por natural de Formosa. Ele
publicou uma descrição detalhada da
ilha em 1704 e foi levado a sério pelos
cientistas da Royal Society, até ser desmascarado e denunciado como impostor. Psalmanazar representou muitos papéis. Ele foi japonês, natural de Formosa,
francês, holandês, judeu, estudante, refugiado, soldado, convertido, estudioso e
empresário empreendedor.
Nas últimas décadas, a ascensão da história social às expensas da história política criou, por algum tempo, a impressão
de que a biografia se tornaria um gênero
obsoleto, pelo menos no mundo acadêmico. Mas acabou se descobrindo que o
interesse pela história social incentivou o
surgimento de novas formas de biografia, especialmente duas.
Uma delas é o relato da história de uma
pessoa comum, muitas vezes como meio
de os leitores, em sua imaginação, penetrarem na vida de outra época -se bem
que os biógrafos desse tipo discordem
quanto ao tipo de pessoa mais indicado
para ser escolhido para essa finalidade.
Alguns escolheriam um indivíduo típico
de sua era, enquanto outros preferem o
que se pode chamar de uma pessoa ordinária extraordinária, alguém como Martin Guerre ou Menocchio, o moleiro italiano dotado de idéias religiosas excêntricas que domina o estudo "O Queijo e
os Vermes", de Carlo Ginzburg [Companhia das Letras].
Uma segunda tendência nova tem sido
a criação de biografias escritas coletivamente. Por exemplo, equipes de historiadores estudaram todos os integrantes de
um grupo específico, tal como o dos senadores romanos da Antiguidade ou dos
parlamentares britânicos modernos. As
conclusões muitas vezes são esclarecedoras, mas são difíceis, quando não impossíveis, de comunicar sob uma forma
que possa ser reconhecida como biográfica. Outra possibilidade, explorada recentemente, consiste em focalizar um
pequeno grupo ou rede de amigos ou conhecidos unidos em torno de um empreendimento comum, como, por
exemplo, os chamados "pais fundadores" da República americana -George
Washington, Thomas Jefferson, Benjamin Franklin etc.- ou os membros da
Sociedade Lunar de Birmingham, um
clube britânico do século 18 cujos sócios
incluíam cientistas e empresários e que
foi estudado em "The Lunar Men"
(2002), de Jenny Uglow.
Formas híbridas
É claro que se pode argumentar que essas formas de escrito não constituem biografias, assim como a descrição feita por Peter Ackroyd
de sua história recente de Londres como
sendo uma "biografia" pode ser vista como nada mais do que uma metáfora (como a outrora famosa "biografia" do rio
Nilo escrita por Emil Ludwig). Mas acho
que seria mais esclarecedor tratar essas
afirmações com semi-seriedade e pensar
nos textos acima descritos como sendo
formas híbridas.
Gilberto Freyre certa vez descreveu um
de seus livros como sendo uma "seminovela". De maneira semelhante, o livro de
Ackroyd sobre Londres e o estudo da Sociedade Lunar feita por Uglow podem
ser descritos como "semibiografias". Como acontece muitas vezes na história,
parece que o melhor lugar para fazer descobertas e inovações é na fronteira, incluindo aquela que separa um gênero intelectual ou literário de outro.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "História e Teoria Social" (ed. Unesp) e "O Renascimento
Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.
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