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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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"Panegírico" de Debord é autobiografia escrita de forma alegórica e alusiva

Orgulho e ruína da revolução

Sérgio Telles
especial para a Folha

Se alguém que até então nunca ouviu falar de Guy Debord ler esse pequeno livro, ficará perplexo. Quem será esse homem que se tem em tão alta conta a ponto de escrever um panegírico para si mesmo? Aliás, o que é mesmo um "panegírico"? Para que não pairem dúvidas, o autor abre o livro com uma transcrição do "Littré", o mais famoso lexicólogo francês: "Panegírico significa mais que elogio. O elogio contém, sem dúvida, o louvor do personagem, mas não exclui uma ponta de crítica, uma certa censura. O panegírico não comporta nem censura nem crítica". E é "sem censura ou crítica" que Debord (1931-1994) vai discorrer sobre sua vida e o que, nela, mais amou. A crer em suas palavras, muito terá amado a revolução, as batalhas heróicas travadas em nome dos mais altos ideais. Como Debord evita falar diretamente dos fatos históricos vividos, resulta um texto muito peculiar, estruturado de modo oblíquo, indireto, alusivo, inteiramente apoiado numa longa sequência de citações que giram em torno das grandes lutas, dos maiores estrategistas, dos memorialistas das decisivas batalhas, além de reflexões filosóficas sobre a vida, realizadas por escritores significativos. O texto prova que Debord não faz uma bravata quando diz ter "capacidade de fazer maravilhas com a escrita". Apesar de negá-lo ("Talvez alguém se espante por eu parecer implicitamente me comparar, aqui e ali, a respeito de algum pormenor, a tal ou qual grande espírito do passado ou simplesmente a personalidades historicamente notáveis. Cometerá um erro."), fica claro que Debord se identifica com esses grandes personagens e seus atos. É assim que ele se apresenta e é dessa forma que quer ser visto. É sua maneira de dizer que nada renega de sua vida, que nela nada merece "censura ou crítica", que se orgulha de sua atuação política revolucionária, bem como de sua preocupação em refletir sobre a mesma, realizando uma produção teórica do mais alto nível, da qual não está ausente um cuidado literário. É uma forma de refutar sua "mauvaise reputation", que o fez alvo da infamante suspeita de envolvimento na morte de seu editor, Gerard Lebovici, assassinado com um tiro, num estacionamento de Paris, em 8 de março de 1984, crime ainda hoje não solucionado. É por isso que, em seu texto de magras páginas, deparamos com Homero, Gourgaud, Clausewitz, Sterne, Li Po, Lacenaire, Jacque Arago, Shakespeare, Lautréamont, Tucídides, Mallarmé, Gondi, Aristófanes, Marlowe, Villon, Regnier de Montigny, Omar Khayam, Arquíloco, Tocqueville, Baltazar Gracián, Heráclito, Maquiavel, Vauvenargues, Guichardin, Isnard, Louis Chevalier, Chateaubriand, Musset, Pascal, Malevitch, Goya, Thomas de Quincey, Charles d'Orleans, Saint Simon, Stendhal, Cervantes, Dante, Westerman, Montaigne, Pierre Mac Orlan, Heródoto, Leônidas, Masséna, Howitt, Calderón de la Barca. Serenidade e tumulto A linguagem escolhida por Debord faz jus a tão ilustre companhia. De fato, tem efeito estético a contraposição da distante serenidade de sua escrita, vazada num rigoroso corte clássico, com a turbulência e o tumulto de seu tema -o fragor das guerras e revoluções, o rumor próprio da história nos momentos em que é escrita com sangue.
É verdade que às vezes o tom se eleva, alcançando um registro mais agudo. Como um tribuno perorando contra a iniquidade dos poderosos e a corrupção dos costumes, sua fala anuncia o fim dos tempos. Diz ele: "Bem mais tarde, quando a maré de destruições, poluições, falsificações se estendeu por toda a superfície do planeta, ao mesmo tempo em que nele penetrava profundamente, eu pude voltar às ruínas que subsistiram de Paris, pois, então, não havia restado nada de melhor em outra parte. Em um mundo unificado, não é possível exilar-se".
Nesses momentos, pensamos que Debord se deixou levar pelo romantismo e exagero. Com alívio, lembramos que Paris continua de pé. Mas, num momento segundo, entendemos a metáfora e caem as vendas com as quais nos protegemos de ver o descalabro da desrazão dos poderosos do mundo.
"Panegírico" é uma autobiografia sui generis, na medida em se estrutura de forma alegórica e alusiva, sem preocupação com o detalhamento dos fatos vividos. Debord menciona, de passagem, sua atuação em Maio de 1968 e o contato com a repressão em vários países europeus. Em nenhum momento menciona seu livro "A Sociedade do Espetáculo" (ed. Contraponto) -trabalho seminal sobre o moderno capitalismo, o imperialismo cultural, a sociedade do consumo e o papel da mídia nas relações sociais. Ali se vê o impasse do homem pós-moderno, exposto à ideologia do consumo ou ao consumo da ideologia. Em ambos os casos, alienado e distante de seu desejo.
Duas ocorrências ao fechar o livro. Primeiro, uma vaga melancolia. Sim, é verdade que "somos urdidos do estofo com que se fazem os sonhos", como lembra Debord citando Shakespeare. E é doloroso ver como continua distante o sonho por uma sociedade mais justa e como tem ele custado tantas guerras e revoluções, derramado tanto sangue.
Segundo, a constatação da passagem do tempo, que traz novos fatos históricos. Morto tão recentemente, Debord não viu a explosão da internet, um libertário meio de comunicação que o encantaria, por se constituir num desafio fortíssimo à onipotência e onipresença da grande mídia. Ainda nessa linha, uma questão: como veria Debord o acontecimento de 11 de setembro e os demais atentados em seu rastilho? Provariam eles que a revolução é ainda possível ou que é ela algo obsoleto? As grandes mudanças políticas e sociais serão realizadas pelos pobres ou são os ricos que têm de entender que, para sua própria sobrevivência e segurança, não é conveniente a manutenção da miséria e da ignorância no mundo?


Sérgio Telles é psicanalista e escritor, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e autor de "Peixe de Bicicleta" (Editora da Universidade Federal de São Carlos).


Panegírico
80 págs., R$ 17,00 de Guy Debord. Trad. Edison Cardone. Editora Conrad (r. Simão Dias da Fonseca, 93, CEP 01539-020, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/3346 6088).


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