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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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Sai no Brasil o "Curso de Literatura Inglesa", que reúne 25 aulas ministradas pelo escritor argentino na Universidade de Buenos Aires durante o ano de 1966

BORGESPROFESSOR

por Leyla Perrone-Moisés

O curso de literatura inglesa ministrado por Jorge Luis Borges em 1966, na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, parece contradizer determinadas propostas de sua obra teórica e crítica. Como outros escritores-críticos da modernidade, Borges não concebe o passado literário como uma linha traçada em ordem cronológica, mas como um espaço no qual se travam relações cruzadas em várias direções. Mais do que inverter a cronologia, como faz em seu famoso ensaio "Kafka e Seus Precursores" (em "Otras Inquisiciones"), Borges nega a própria temporalidade. Fascinado pela repetição de certos temas e imagens, em obras afastadas no espaço e no tempo, ele avança a hipótese: "Talvez a história universal seja apenas a história de algumas metáforas" ("A Esfera de Pascal", idem). Essas repetições ou coincidências levam-no a defender a impessoalidade do escritor e a conceber uma escrita coletiva da literatura, que seria constituída de um único livro. Ora, alguém que postula a anulação do tempo pelo "eterno retorno" e questiona a particularidade dos autores e das obras parece pouco indicado para lecionar a história literária institucional. Este curso de Borges, reconstituído a partir de gravações, consiste em 25 aulas cuja matéria está disposta em ordem cronológica: do século 11 até o fim do século 19. Entretanto o programa apresenta uma singular repartição de períodos e autores. Borges (1899-1986) se detém, durante várias sessões, em alguns períodos e salta por cima de outros.


Borges se deleita contando pormenores curiosos da vida dos autores e estabelecendo relações causais entre suas personalidades e a temática das obras


Depois de dedicar sete aulas à épica anglo-saxônica do século 11, ele faz um breve resumo do que aconteceu nos sete séculos seguintes. Anomalia que ele mesmo registra: "Vamos abandonar o século 11 para dar um pulo no vazio e chegar ao século 18". Nesse "vazio" desaparecem simplesmente Shakespeare, os "poetas metafísicos" e alguns outros que Borges cultuou em seus escritos. Aliás, ele nunca se refere a suas próprias obras, o que deveria ser um exemplo de elegância para outros escritores professores.

Tom de conversa
Em suas aulas, Borges pratica um comparatismo livre, sem preocupação de erudição escolar, sem referência a fontes e influências. Compara cada autor com outros, próximos ou distantes no espaço e no tempo, independentemente de qualquer causalidade. O termo de comparação é frequentemente um escritor argentino, antigo ou contemporâneo. Os heróis da épica anglo-saxônica são comparados a "cumpadritos", e os cavaleiros da batalha de Maldon (século 10º), a peões dos Pampas. As aulas têm, assim, um tom de conversa, ao longo da qual as associações livres e as digressões proliferam. O professor Borges não faz análises de texto. Sua maneira de tratar um autor consiste, quase sempre, numa introdução biográfica seguida de uma apresentação geral da obra. Quando se trata de poetas, ele pede a um estudante que leia, em voz alta, um poema, parecendo acreditar, como Pound, num ensino por "citações de instâncias concretas" ("ABC da Literatura", ed. Cultrix). O professor Borges dedica um grande espaço à biografia dos escritores, contrariando, por esse aspecto, a tendência antibiográfica da teoria literária daquele momento. Correndo o risco de cair no determinismo condenado pelos teóricos da textualidade, ele se deleita contando pormenores curiosos da vida dos autores e estabelecendo relações causais entre suas personalidades e a temática de suas obras. A feiúra de um escritor, o temperamento irascível da mulher de outro, uma decepção amorosa, um luto servem-lhe muitas vezes para explicar uma obra. Borges dedica duas aulas e meia a um autor menor, William Morris, não porque ele aprecie sua obra, mas porque se interessa pela pessoa do autor, aventureiro e pitoresco. Sua relação com os escritores é de tipo pessoal, o que o leva a desculpar até as fraquezas das obras. Dickens, por exemplo, é apresentado como alguém com cujos "maus hábitos" e "sentimentalismo" ele se resignou, a fim de "ganhar um amigo para a vida toda". Ao introduzir a aula sobre Coleridge, Borges afirma: "Uma das obras mais importantes de um escritor -talvez a mais importante de todas- é a imagem que ele deixa de si mesmo na memória dos homens, para lá das páginas escritas por ele". A impressão deixada por Coleridge em Borges pesa mais em seu julgamento do autor do que os méritos literários de sua obra. Ele afirma tranquilamente que Wordsworth é um poeta superior a Coleridge, mas que ele prefere o último, porque o primeiro foi apenas "um cavalheiro inglês da era vitoriana, parecido com tantos outros", enquanto Coleridge parece um personagem de romance, o próprio arquétipo do homem romântico, "mais que Werther, mais que Chateaubriand, mais que nenhum outro". Mas a razão maior é a seguinte: "Há algo em Coleridge que parece satisfazer a imaginação". Como esse teórico da impessoalidade pode interessar-se tão intensamente pela individualidade dos escritores? Como esse mestre da neutralidade pode afirmar tão descaradamente seu gosto pessoal? Como esse analista sutil das fórmulas estilísticas pode contentar-se, como faz em suas aulas, com resumos dos conteúdos das obras? A resposta a essas perguntas se encontra em certas peculiaridades da poética borgiana que os críticos textuais, desejosos de ver em Borges o exemplo perfeito de seus postulados teóricos, não levaram muito em conta.

Poética da leitura
A poética de Borges, como bem mostrou Emir Rodríguez Monegal, é uma poética da leitura, mais do que uma poética da escritura. Borges não ignora a história, mas a única história que lhe interessa é a da leitura. Desde um ensaio de 1928, demonstrando que a mesma frase poderia ser recebida como um achado ou como uma banalidade, conforme fosse atribuída a um autor chinês, a Ésquilo ou a um literato argentino contemporâneo, até a admirável fábula de "Pierre Menard, Autor do Quixote", Borges sempre considerou que são as diferentes leituras que constituem a história literária.
Mas a leitura não lhe interessava como performance linguística, como prática social ou cultural; ela lhe importava como prática estritamente pessoal. Enquanto o autor deve ser impessoal, para acolher as projeções do leitor, este pode satisfazer, na atividade privada da leitura, seus desejos mais íntimos. A literatura, para Borges, é fonte inesgotável de prazer. Assim, seu curso não é uma história de literatura inglesa, mas uma rememoração prazerosa de suas leituras.

Escada e terraço
De modo geral, as leituras memoráveis datam de sua primeira juventude e, embora ele diga, numa de suas aulas, não ter memória para datas, ele se lembra com incrível precisão das datas em que leu determinadas obras. No ensaio "A Fruição Literária" ("El Idioma de los Argentinos", 1928), ele refere até mesmo os lugares em que as leu: o alto de uma escada, um terraço elevado. Não por acaso, lugares semelhantes àquele de onde se podia ver o "Aleph", isto é, o universo todo, no famoso conto. O que Borges queria formar em suas aulas, como declarou em numerosas entrevistas, era leitores felizes como ele mesmo, mais do que especialistas em literatura inglesa, categoria à qual ele não pretendia pertencer.

A Obra
"Curso de Literatura Inglesa", de Jorge Luis Borges. Ed. Martins Fontes (0/xx/11/ 3241-3677), 448 págs., preço não definido. Organização de Martín Arias e Martín Hadis. Tradução de Eduardo Brandão.

Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Altas Literaturas" e "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).


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