São Paulo, domingo, 02 de abril de 2000


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"O Papa de Hitler" faz estudo minucioso e revelador sobre as ligações nebulosas entre o Vaticano e o nazismo durante a Segunda Guerra
O burocrata da fé

Marcelo Coelho da Equipe de Articulistas Esta biografia de Pio 12, cujo papado se estendeu de 1939 a 1958, tem um título bombástico -"O Papa de Hitler"-, mas são raros os trechos em que John Cornwell se permite um tom mais veemente ao relatar as ligações e simpatias entre o Vaticano e o nazismo. É como se o estilo de Pio 12 -cuidadoso, frio, imperturbável- tivesse contaminado um pouco o livro, fundamentado em minuciosa pesquisa e aparentemente muito ponderado na argumentação. Não haveria, talvez, ofensa maior a seu autor do que o parágrafo acima. Cornwell detestaria qualquer aproximação com o fleumático, imóvel e ressequido pontífice. É clara a indignação moral de Cornwell diante das atitudes de Pacelli. Mas, por isso mesmo, a ausência de afoiteza com que acumula evidências contra Pio 12 surge como a principal qualidade deste livro ao mesmo tempo calmo e devastador.

Caminhões de prisioneiros
Cerca de 7.000 mil judeus viviam em Roma quando os alemães invadiram a cidade em 1943. O major Herbert Kappler, da SS, recebeu ordens de deportá-los para campos de concentração. Kappler, assim como o próprio comandante das forças alemãs na Itália, o marechal Kesselring, não se entusiasmou com a idéia. "Não existe questão judaica na Itália", afirmou. Os judeus tiveram de pagar um resgate em ouro. Italianos não-judeus contribuíram com anéis e jóias para que o pagamento se desse no prazo estipulado. Isso não satisfez a cúpula nazista, que enviou um esquadrão especial para prender e matar os judeus de Roma. Esse esquadrão entrou no antigo gueto na manhã de 16 de outubro, prendendo 1.060 pessoas. O papa, diz Cornwell, "foi dos primeiros a tomar conhecimento da onda de prisões". Caminhões abertos, lotados de prisioneiros, passaram diante do Vaticano -parece que os soldados alemães queriam conhecer a praça de São Pedro. Começaram as pressões para que Pio 12 fizesse um protesto. Até o cônsul alemão, Albrecht von Kessel, insistia nesse sentido. Mas o papa ficou em silêncio. Os judeus foram embarcados. Só 15 sobreviveram. A questão é saber o que Pio 12 poderia ter feito. Haveria represálias? O protesto adiantaria alguma coisa? Cornwell analisa vários aspectos do problema. Dificilmente, argumenta, os nazistas iriam se dispor a invadir o Vaticano e sequestrar o papa. É verdade que, em julho daquele ano, Hitler encomendara um plano assim; mas o chefe da polícia alemã na Itália terminou dissuadindo-o da idéia. Temia-se a reação dos italianos. "Até mesmo Hitler", diz Cornwell, "passou a reconhecer o que Pacelli parecia ignorar: a mais vigorosa força política e social na Itália em 1943 era a Igreja Católica, com uma imensa capacidade para promover a não-obediência e a reação geral aos alemães".

Envolvimento temerário
É possível, em todo caso, que Pio 12 ignorasse isso; que seus temores, embora exagerados, fossem sinceros. Mas o livro de Cornwell também traz informações a respeito de um envolvimento "temerário" do papa numa conspiração para depor Hitler, no fim de 1939. "Seu ódio a Hitler era suficiente para que assumisse graves riscos", conclui o autor. Aqui, ficamos um pouco confusos. Pois como intitular de "O Papa de Hitler" um livro que afirma que Pio 12 tinha ódio de Hitler? Passemos a outro aspecto. Teria adiantado alguma coisa o protesto papal em 1943?
Cornwell dá exemplos em que os alemães de fato recuaram diante de pressões religiosas -antes da guerra, o plano nazista de matar deficientes físicos e mentais em nome da eugenia não foi completado devido à reação do clero. Por outro lado, Pio 12 foi enfático ao protestar contra a invasão da Holanda e da Bélgica em 1940. Torna-se difícil, entretanto, comparar situações diversas. Cornwell é bastante escrupuloso ao apresentar seus argumentos. Cita mesmo, mas sem grande ênfase, palavras de líderes judeus elogiando o comportamento do papa. Como ficamos? A polêmica em torno das omissões ou das angústias de Pio 12 a cada momento da guerra não se esgota com este livro; é aliás antiga -Cornwell resume-a no penúltimo capítulo- e se torna mais espinhosa à medida que prossegue o seu processo de canonização.

Fórmulas genéricas
Algumas coisas parecem incontestáveis, contudo, depois deste livro. São claramente insuficientes, vagas e hesitantes as menções de Pio 12 ao Holocausto. Diplomatas ingleses, franceses, americanos e até o embaixador brasileiro, Pinto Accioly, faziam tudo para que o papa condenasse claramente o extermínio dos judeus; Pio 12 chegava, no máximo, a fórmulas genéricas, como lamentar que pessoas fossem mortas devido à sua origem étnica. A primeira parte desta biografia se estende, por outro lado, nas intensas negociações de Hitler com Pacelli antes da guerra. Todo o esforço do então secretário de Pio 11 era conseguir a aprovação de uma concordata entre a Alemanha e o Vaticano. A carreira do futuro papa, aliás, consolidara-se no plano da diplomacia. Neste ponto, e com as mais dramáticas consequências, os planos de Hitler e do Vaticano coincidiam. Pois o que interessava ao papado, diz Cornwell, era minar a autonomia do clero católico em cada país, em favor de uma centralização de poderes nas mãos do papa. Foi assim que, nos primeiros anos do nazismo, a principal força política não-esquerdista de oposição a Hitler foi anulada. A atuação de Pacelli foi determinante para extinguir o partido católico alemão. Qualquer protesto dos padres alemães contra Hitler era desencorajado em nome de uma "despolitização" da Igreja -o que facilitou enormemente as coisas para o nazismo. Num contexto em que católicos eram perseguidos e assassinados no chamado "Triângulo Vermelho" -Rússia, Espanha republicana e México-, Pacelli claramente via Hitler como um mal menor. Com relação a Francisco Franco e ao líder católico croata Ante Pavelic (cujas atrocidades chegaram a horrorizar os alemães), sua atitude era do mais caloroso entusiasmo. A "neutralidade" diplomática de Pio 12 parece, assim, bem suspeita. O retrato feito por Cornwell, se não é conclusivo quanto a atitudes específicas do papa, é entretanto terrível no conjunto. Um hierarca centralizador e burocrático, cujo ascetismo convivia com o gosto da pompa e da cerimônia; um pragmático sem eficácia, considerando-se hábil quando era preciso ser firme e sempre firme quando era preciso ser flexível; pronto para elevar-se a transcendências, quando eram prementes os apelos da realidade, e realista, quando valores transcendentes o apelavam; um solitário, alheio, talvez, ao próprio coração.

Modelo de Igreja
Essa solidão, esse burocratismo de Pio 12 não se resumem a uma questão de personalidade nem ao ambiente conservador da sua família e da sua época de formação. Mais do que fazer o "processo moral" de Pacelli, o livro de Cornwell se dedica a defender um modelo de Igreja descentralizado, aberto a particularidades locais, mais próximo de uma comunidade do que de uma autocracia dogmática. Tanta responsabilidade sobre um homem só -seja ele Pio 12 ou João Paulo 2º- , argumenta Cornwell, só tende a torná-lo bem pouco infalível.



O Papa de Hitler
472 págs., R$ 40,00 de John Cornwell. Tradução de A.B. Pinheiro de Lemos. Ed. Imago (r. Santos Rodrigues 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 0/xx/ 21/502-9092).




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