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"O Papa de Hitler" faz estudo minucioso e revelador sobre as ligações nebulosas entre o Vaticano e o nazismo durante a Segunda Guerra
O burocrata da fé
Marcelo Coelho
da Equipe de Articulistas
Esta biografia de Pio 12, cujo papado se estendeu
de 1939 a 1958, tem um título bombástico -"O
Papa de Hitler"-, mas são raros os trechos em
que John Cornwell se permite um tom mais veemente ao relatar as ligações e simpatias entre o Vaticano
e o nazismo. É como se o estilo de Pio 12 -cuidadoso,
frio, imperturbável- tivesse contaminado um pouco o
livro, fundamentado em minuciosa pesquisa e aparentemente muito ponderado na argumentação.
Não haveria, talvez, ofensa maior a seu autor do que o
parágrafo acima. Cornwell detestaria qualquer aproximação com o fleumático, imóvel e ressequido pontífice.
É clara a indignação moral de Cornwell diante das atitudes de Pacelli. Mas, por isso mesmo, a ausência de afoiteza com que acumula evidências contra Pio 12 surge
como a principal qualidade deste livro ao mesmo tempo calmo e devastador.
Caminhões de prisioneiros
Cerca de 7.000 mil
judeus viviam em Roma quando os alemães invadiram
a cidade em 1943. O major Herbert Kappler, da SS, recebeu ordens de deportá-los para campos de concentração. Kappler, assim como o próprio comandante das
forças alemãs na Itália, o marechal Kesselring, não se
entusiasmou com a idéia. "Não existe questão judaica
na Itália", afirmou. Os judeus tiveram de pagar um resgate em ouro. Italianos não-judeus contribuíram com
anéis e jóias para que o pagamento se desse no prazo estipulado. Isso não satisfez a cúpula nazista, que enviou
um esquadrão especial para prender e matar os judeus
de Roma. Esse esquadrão entrou no antigo gueto na
manhã de 16 de outubro, prendendo 1.060 pessoas.
O papa, diz Cornwell, "foi dos primeiros a tomar conhecimento da onda de prisões". Caminhões abertos,
lotados de prisioneiros, passaram diante do Vaticano
-parece que os soldados alemães queriam conhecer a
praça de São Pedro.
Começaram as pressões para que Pio
12 fizesse um protesto. Até o cônsul alemão, Albrecht von Kessel, insistia nesse
sentido. Mas o papa ficou em silêncio. Os
judeus foram embarcados. Só 15 sobreviveram. A questão é saber o que Pio 12 poderia ter feito. Haveria represálias? O
protesto adiantaria alguma coisa? Cornwell analisa vários aspectos do problema.
Dificilmente, argumenta, os nazistas iriam se dispor a
invadir o Vaticano e sequestrar o papa. É verdade que,
em julho daquele ano, Hitler encomendara um plano
assim; mas o chefe da polícia alemã na Itália terminou
dissuadindo-o da idéia. Temia-se a reação dos italianos.
"Até mesmo Hitler", diz Cornwell, "passou a reconhecer o que Pacelli parecia ignorar: a mais vigorosa
força política e social na Itália em 1943 era a Igreja Católica, com uma imensa capacidade para promover a não-obediência e a reação geral aos alemães".
Envolvimento temerário
É possível, em todo caso, que Pio 12 ignorasse isso; que seus temores, embora
exagerados, fossem sinceros. Mas o livro de Cornwell
também traz informações a respeito de um envolvimento "temerário" do papa numa conspiração para depor Hitler, no fim de
1939. "Seu ódio a Hitler era suficiente para que assumisse graves riscos", conclui
o autor. Aqui, ficamos um pouco confusos. Pois como intitular de "O Papa de
Hitler" um livro que afirma que Pio 12 tinha ódio de Hitler? Passemos a outro aspecto. Teria adiantado alguma coisa o
protesto papal em 1943?
Cornwell dá exemplos em que os alemães de fato recuaram diante de pressões religiosas -antes da guerra,
o plano nazista de matar deficientes físicos e mentais
em nome da eugenia não foi completado devido à reação do clero. Por outro lado, Pio 12 foi enfático ao protestar contra a invasão da Holanda e da Bélgica em 1940.
Torna-se difícil, entretanto, comparar situações diversas. Cornwell é bastante escrupuloso ao apresentar
seus argumentos. Cita mesmo, mas sem grande ênfase,
palavras de líderes judeus elogiando o comportamento
do papa. Como ficamos?
A polêmica em torno das omissões ou das angústias
de Pio 12 a cada momento da guerra não se esgota com
este livro; é aliás antiga -Cornwell resume-a no penúltimo capítulo- e se torna mais espinhosa à medida que
prossegue o seu processo de canonização.
Fórmulas genéricas
Algumas coisas parecem incontestáveis, contudo, depois deste livro. São claramente insuficientes, vagas e hesitantes as menções de Pio 12
ao Holocausto. Diplomatas ingleses, franceses, americanos e até o embaixador brasileiro, Pinto Accioly, faziam tudo para que o papa condenasse claramente o extermínio dos judeus; Pio 12 chegava, no máximo, a fórmulas genéricas, como lamentar que pessoas fossem
mortas devido à sua origem étnica.
A primeira parte desta biografia se estende, por outro
lado, nas intensas negociações de Hitler com Pacelli antes da guerra. Todo o esforço do então secretário de Pio
11 era conseguir a aprovação de uma concordata entre a
Alemanha e o Vaticano. A carreira do futuro papa, aliás,
consolidara-se no plano da diplomacia. Neste ponto, e
com as mais dramáticas consequências, os planos de
Hitler e do Vaticano coincidiam.
Pois o que interessava ao papado, diz Cornwell, era
minar a autonomia do clero católico em cada país, em
favor de uma centralização de poderes nas mãos do papa. Foi assim que, nos primeiros anos do nazismo, a
principal força política não-esquerdista de oposição a
Hitler foi anulada. A atuação de Pacelli foi determinante
para extinguir o partido católico alemão. Qualquer protesto dos padres alemães contra Hitler era desencorajado em nome de uma "despolitização" da Igreja -o que
facilitou enormemente as coisas para o nazismo.
Num contexto em que católicos eram perseguidos e
assassinados no chamado "Triângulo Vermelho"
-Rússia, Espanha republicana e México-, Pacelli claramente via Hitler como um mal menor. Com relação a
Francisco Franco e ao líder católico croata Ante Pavelic
(cujas atrocidades chegaram a horrorizar os alemães),
sua atitude era do mais caloroso entusiasmo.
A "neutralidade" diplomática de Pio 12 parece, assim,
bem suspeita. O retrato feito por Cornwell, se não é conclusivo quanto a atitudes específicas do papa, é entretanto terrível no conjunto. Um hierarca centralizador e
burocrático, cujo ascetismo convivia com o gosto da
pompa e da cerimônia; um pragmático sem eficácia,
considerando-se hábil quando era preciso ser firme e
sempre firme quando era preciso ser flexível; pronto
para elevar-se a transcendências, quando eram prementes os apelos da realidade, e realista, quando valores
transcendentes o apelavam; um solitário, alheio, talvez,
ao próprio coração.
Modelo de Igreja
Essa solidão, esse burocratismo
de Pio 12 não se resumem a uma questão de personalidade nem ao ambiente conservador da sua família e da
sua época de formação. Mais do que fazer o "processo
moral" de Pacelli, o livro de Cornwell se dedica a defender um modelo de Igreja descentralizado, aberto a particularidades locais, mais próximo de uma comunidade
do que de uma autocracia dogmática. Tanta responsabilidade sobre um homem só -seja ele Pio 12 ou João
Paulo 2º- , argumenta Cornwell, só tende a torná-lo
bem pouco infalível.
O Papa de Hitler
472 págs., R$ 40,00
de John Cornwell. Tradução de
A.B. Pinheiro de Lemos. Ed.
Imago (r. Santos Rodrigues 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 0/xx/
21/502-9092).
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