São Paulo, domingo, 02 de abril de 2000


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Seres em situação-limite povoam o clássico "Crônica da Casa Assassinada", de Lúcio Cardoso
A tormenta da existência

Luís Bueno
especial para a Folha

Qual seria a imagem padrão de um escritor católico nascido no início do século? Talvez um camarada de terno preto, sério, moralista, compenetrado, meio fora do mundo. Pois Lúcio Cardoso (1912-1968) é um escritor católico e nada tem a ver com essa imagem. Sua obra vasta e múltipla -ele foi romancista, poeta, dramaturgo, cineasta- dá forma a uma maneira extremamente complexa de ver o mundo a partir do catolicismo. Para ele, o homem se define tanto por sua relação espiritual com Deus quanto pela integridade de sua condição humana. A forma como define sua identidade sexual num trecho de seu "Diário" é bem capaz de causar escândalo até hoje e basta para que se perceba tal complexidade de visão, que não pode ser conformista, auto-satisfeita: "Deus me deu todos os sexos". Essa necessidade de ter tudo em máximo grau se concretiza numa arte marcada pela luta. De um lado, seus personagens vivem sempre atormentados, mergulhados em situações extremas -adultério, suicídio, incesto, assassinato. De outro, sua escrita febril passa por cima das convenções literárias da verossimilhança e lança mão de uma força verbal que empresta da poesia recursos que uma visão mais rígida considera bastardos na prosa -bom exemplo é a repetição de palavras, que alguns críticos usaram para concluir que era má literatura a de Lúcio Cardoso. Em alguns de seus livros há um excesso de confiança no inusitado das situações e na força verbal. Em "A Luz no Subsolo" (1936) quase não há ação, e cada frase dita pelos personagens motivava páginas de reflexões -no final das contas, o que importa para um autor cuja visão de mundo atribui menor sentido aos acontecimentos em si do que aos efeitos que provocam nas pessoas. Na "Crônica da Casa Assassinada" (1959) vai bem mais adiante. Como em toda obra-prima, nota-se aqui a invenção de um jeito de contar nascido junto com a história a ser contada. A opção por pulverizar a narrativa, que se apresenta sob a forma de fragmentos narrados por diferentes personagens, cria uma estrutura em que naturalmente o acontecimento nunca seja visto em si mesmo, mas refletido pelo espírito de alguém. Isso resulta num equilíbrio maior, pois tira do vigor poético a responsabilidade pela força da narrativa e permite uma depuração na prosa sempre intensa de Lúcio Cardoso. Isso não significa que seja um romance apaziguado. A uma certa altura um dos personagens-narradores, o padre Justino, chega a formular a idéia de que é na certeza que o demônio se manifesta -só na luta a redenção é possível.

Calma enganosa
De fato, era enganosa a calma em que viviam os Meneses, uma tradicional e decadente família do interior de Minas Gerais. Sob o comando de Demétrio, o mais velho dos irmãos, tudo na casa era controlado para demonstrar distanciamento e dignidade. Todos os que moravam ali -Valdo e Timóteo, irmãos de Demétrio, e Ana, sua mulher- pareciam viver em sossego. Tudo vira de ponta-cabeça com a chegada de Nina, com quem Valdo se casara no Rio de Janeiro. Sua beleza e seu enorme desejo de viver vão atingir a todos. Demétrio se apaixona secretamente, Ana compreende que não vive propriamente e Timóteo pensa que surgiu alguém para ajudá-lo na revelação da verdade sobre a família. É que ele, um espírito nada convencional, se fechara no quarto, vestido e enfeitado com as roupas e as jóias da mãe morta, desejando acabar com a falsa vida dos Meneses.
Os acontecimentos se precipitarão até a verdadeira extinção da família -o assassinato da casa-, mas não há vitória para ninguém, nem para Nina, que, depois de uma relação incestuosa com seu filho André, se consome numa lenta morte por câncer. Até mesmo Timóteo, no auge do triunfo com a desagregação da família, percebe seu erro: "A verdade sem a caridade é ação cega e sem controle". Não há vitória na solidão. Na "Crônica", palavras gastas por certo discurso piedoso -como caridade, verdade, esperança e fé- ganham sentido decisivo. Lúcio Cardoso quer fazer do leitor um interlocutor ativo, que experimente, pela via da leitura, uma luta constante. Não é à toa que as soluções folhetinescas são largamente empregadas na "Crônica": revelações bombásticas, reviravoltas na trama, reconhecimentos inesperados e toda a parafernália narrativa que joga o leitor de um lado para o outro, obrigando o leitor a reavaliar e remontar tudo aquilo várias vezes. E de novo a multiplicidade de vozes amplia o efeito desses recursos, já que toda revelação pode ser falsa, e toda reviravolta, aparente.
A crítica já apontou vários pequenos problemas de verossimilhança no romance e há mesmo quem julgue que o capítulo final, que contém as maiores revelações, compromete a coerência do todo. Ora, isso não é verdade. Em primeiro lugar porque, é sempre bom insistir, estamos diante de uma história sem acontecimentos, apenas com seus reflexos, que podem ser enganadores. Depois, a emoção experimentada durante a leitura não pode ser destruída. Coerente ou não, ela fez parte desse jogo literário e nada pode diminuí-la. É que a literatura de Lúcio Cardoso se constrói, acima de tudo, como literatura. Nela, até os elementos mais artificiais ou antiquados -o próprio folhetim, bem fora de moda- servem a uma arte que não pode ser de outra época que não a nossa, em que a obra ganha autonomia, criando um espaço próprio na experiência de quem a lê.
Sérgio Buarque de Holanda, com seu senso crítico aberto e preciso, percebeu isso em 1941, ao dizer sobre Lúcio: "Ele não pretendeu copiar a realidade, que só toca sua imaginação pelas situações extremas e excepcionais. E por isso é tão absurdo querer julgar sua obra, admirável em tantos aspectos, segundo critérios ajustados às formas tradicionais do romance, do romance realista, como condenar essa imaginação que não é matinal nem risonha".
Assim como Cornélio Penna, escritor da família espiritual do autor da "Crônica da Casa Assassinada", teve algumas de suas obras reeditadas depois de décadas, talvez tenha chegado a hora de recolocar a obra de Lúcio em circulação. Não é justo que as novas gerações de leitores percam a possibilidade dessa descoberta.



Crônica da Casa Assassinada
518 págs., R$ 40,00 de Lúcio Cardoso. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/ 21/585-2047).



Luís Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.

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