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Seres em situação-limite povoam o clássico "Crônica da Casa Assassinada", de Lúcio Cardoso
A tormenta da existência
Luís Bueno
especial para a Folha
Qual seria a imagem padrão de um
escritor católico nascido no início
do século? Talvez um camarada de terno
preto, sério, moralista, compenetrado,
meio fora do mundo. Pois Lúcio Cardoso (1912-1968) é um escritor católico e
nada tem a ver com essa imagem. Sua
obra vasta e múltipla -ele foi romancista, poeta, dramaturgo, cineasta- dá forma a uma maneira extremamente complexa de ver o mundo a partir do catolicismo. Para ele, o homem se define tanto
por sua relação espiritual com Deus
quanto pela integridade de sua condição
humana. A forma como define sua identidade sexual num trecho de seu "Diário" é bem capaz de causar escândalo até
hoje e basta para que se perceba tal complexidade de visão, que não pode ser
conformista, auto-satisfeita: "Deus me
deu todos os sexos".
Essa necessidade de ter tudo em máximo grau se concretiza numa arte marcada pela luta. De um lado, seus personagens vivem sempre atormentados, mergulhados em situações extremas -adultério, suicídio, incesto, assassinato. De
outro, sua escrita febril passa por cima
das convenções literárias da verossimilhança e lança mão de uma força verbal
que empresta da poesia recursos que
uma visão mais rígida considera bastardos na prosa -bom exemplo é a repetição de palavras, que alguns críticos usaram para concluir que era má literatura a
de Lúcio Cardoso. Em alguns de seus livros há um excesso de confiança no inusitado das situações e na força verbal. Em
"A Luz no Subsolo" (1936) quase não há
ação, e cada frase dita pelos personagens
motivava páginas de reflexões -no final
das contas, o que importa para um autor
cuja visão de mundo atribui menor sentido aos acontecimentos em si do que aos
efeitos que provocam nas pessoas.
Na "Crônica da Casa
Assassinada" (1959) vai
bem mais adiante. Como
em toda obra-prima, nota-se aqui a invenção de
um jeito de contar nascido junto com a história a
ser contada. A opção por
pulverizar a narrativa, que
se apresenta sob a forma de fragmentos
narrados por diferentes personagens,
cria uma estrutura em que naturalmente
o acontecimento nunca seja visto em si
mesmo, mas refletido pelo espírito de alguém. Isso resulta num equilíbrio maior,
pois tira do vigor poético a responsabilidade pela força da narrativa e permite
uma depuração na prosa sempre intensa
de Lúcio Cardoso. Isso não significa que
seja um romance apaziguado. A uma
certa altura um dos personagens-narradores, o padre Justino, chega a formular
a idéia de que é na certeza que o demônio
se manifesta -só na luta a redenção é
possível.
Calma enganosa
De fato, era enganosa a calma em que viviam os Meneses,
uma tradicional e decadente família do
interior de Minas Gerais. Sob o comando
de Demétrio, o mais velho dos irmãos,
tudo na casa era controlado para demonstrar distanciamento e dignidade.
Todos os que moravam ali -Valdo e Timóteo, irmãos de Demétrio, e Ana, sua
mulher- pareciam viver em sossego.
Tudo vira de ponta-cabeça com a chegada de Nina, com quem Valdo se casara
no Rio de Janeiro. Sua beleza e seu enorme desejo de viver vão atingir a todos.
Demétrio se apaixona secretamente,
Ana compreende que não vive propriamente e Timóteo pensa que surgiu alguém para ajudá-lo na revelação da verdade sobre a família. É que ele, um espírito nada convencional, se fechara no
quarto, vestido e enfeitado com as roupas e as jóias da mãe morta, desejando
acabar com a falsa vida dos Meneses.
Os acontecimentos se precipitarão até
a verdadeira extinção da família -o assassinato da casa-, mas não há vitória
para ninguém, nem para Nina, que, depois de uma relação incestuosa com seu
filho André, se consome numa lenta
morte por câncer. Até mesmo Timóteo,
no auge do triunfo com a desagregação
da família, percebe seu erro: "A verdade
sem a caridade é ação cega
e sem controle". Não há
vitória na solidão. Na
"Crônica", palavras gastas
por certo discurso piedoso -como caridade, verdade, esperança e fé- ganham sentido decisivo.
Lúcio Cardoso quer fazer
do leitor um interlocutor ativo, que experimente, pela via da leitura, uma luta
constante. Não é à toa que as soluções folhetinescas são largamente empregadas
na "Crônica": revelações bombásticas,
reviravoltas na trama, reconhecimentos
inesperados e toda a parafernália narrativa que joga o leitor de um lado para o
outro, obrigando o leitor a reavaliar e remontar tudo aquilo várias vezes. E de novo a multiplicidade de vozes amplia o
efeito desses recursos, já que toda revelação pode ser falsa, e toda reviravolta,
aparente.
A crítica já apontou vários pequenos
problemas de verossimilhança no romance e há mesmo quem julgue que o
capítulo final, que contém as maiores revelações, compromete a coerência do todo. Ora, isso não é verdade. Em primeiro
lugar porque, é sempre bom insistir, estamos diante de uma história sem acontecimentos, apenas com seus reflexos,
que podem ser enganadores. Depois, a
emoção experimentada durante a leitura
não pode ser destruída. Coerente ou não,
ela fez parte desse jogo literário e nada
pode diminuí-la. É que a literatura de Lúcio Cardoso se constrói, acima de tudo,
como literatura. Nela, até os elementos
mais artificiais ou antiquados -o próprio folhetim, bem fora de moda- servem a uma arte que não pode ser de outra época que não a nossa, em que a obra
ganha autonomia, criando um espaço
próprio na experiência de quem a lê.
Sérgio Buarque de Holanda, com seu
senso crítico aberto e preciso, percebeu
isso em 1941, ao dizer sobre Lúcio: "Ele
não pretendeu copiar a realidade, que só
toca sua imaginação pelas situações extremas e excepcionais. E por isso é tão
absurdo querer julgar sua obra, admirável em tantos aspectos, segundo critérios
ajustados às formas tradicionais do romance, do romance realista, como condenar essa imaginação que não é matinal
nem risonha".
Assim como Cornélio Penna, escritor
da família espiritual do autor da "Crônica da Casa Assassinada", teve algumas de
suas obras reeditadas depois de décadas,
talvez tenha chegado a hora de recolocar
a obra de Lúcio em circulação. Não é justo que as novas gerações de leitores percam a possibilidade dessa descoberta.
Crônica da Casa Assassinada
518 págs., R$ 40,00
de Lúcio Cardoso. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171,
CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/
21/585-2047).
Luís Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.
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