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De forma equivocada, "Os Ovários de Mme. Bovary" aplica conceitos
da biologia evolutiva a grandes personagens da literatura universal
Os bufões operários
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
No domingo passado,
Moacyr Scliar, aqui mesmo no Mais!, escrevia:
"Propagar genes é, do
ponto de vista da espécie, a grande
prioridade. Daí a paixão de Romeu
por Julieta, daí o ciúme de Otelo, daí
o adultério de Madame Bovary: nos
personagens literários refletem-se as
pulsões evolutivas, garantem David
P. Barash e Nanelle Barash em "Os
Ovários de Mme. Bovary'".
Como li o livro, achei que poderia
acrescentar alguns breves comentários ao resumo de Scliar. O primeiro
deles é que o seu autor macho é
atualmente professor de psicologia
na Universidade de Washington,
com mais de uma dúzia de livros no
currículo, incluindo um que escreveu com sua mulher, "The Myth of
Monogamy" [O Mito da Monogamia]. Já a autora fêmea, estudante de
biologia e literatura no Swarthmore
College, é sua filha.
Em termos evolutivos, pode-se dizer que David é um macho do tipo
"papai", com alta dose de "investimento parental", isto é, de disposição para a proteção familiar.
Acrescente-se a isso o seu prestígio
social, advindo da posição de professor de universidade conhecida bem
como dos elogios que o livro recebeu
até de uma revista científica séria como a "Nature", e é preciso reconhecer que o professor Barash é um tipo
sexualmente atraente em termos
biológicos: juntar-se a ele é garantia
razoável de conseguir empurrar genes para o futuro.
A despeito de tanto sucesso, o professor Barash, talvez incentivado pela filha Nanelle, tem um sonho bizarro: quer ser um crítico literário. Imagina então que as personagens criadas pelos homens não podem ser diferentes daquilo que os homens são
por sua própria e imutável natureza
genética.
Mesmo DNA
Ou seja, personagens verossímeis
obedecem às mesmas leis vitais dos
homens que as criam, e, como as leis
que verdadeiramente contam são as
do DNA -sendo a cultura apenas
um punhado de armadilhas ou disfarces de sustentação deles-, as
personagens têm de ter a mesma estrutura de DNA dos seus criadores.
C.q.d.! Em termos de crítica literária,
contudo, o professor Barash mal
consegue se distinguir de uma anta.
A razão é simples: personagens literárias não precisam ser verossímeis. Não precisam nem mesmo fazer o serviço básico do homem: comer, defecar, fornicar ou que mais
diabos a sua natureza animal exija
deles. E também não precisam pensar ou ter a menor coerência.
Aliás, nem precisam ser humanos
ou não-humanos. Personagens literárias só têm de funcionar como
produção discursiva de determinado efeito cultural, buscado ou não
por seu criador. E a verossimilhança
do tipo realista, com personagens
que se parecem com homens -mas
nunca o são, convém não esquecer-, é apenas um dentre tantos
outros recursos persuasivos de um
escritor.
Aliás, um recurso em desuso na literatura de inovação. O seu apogeu
deu-se, há tempos, com o romance
romântico-realista do século 19. Assim, uma personagem como Madame Bovary pode dar a impressão de
que possui ovários, embora não os
tenha e seus órgãos sejam apenas
um punhado de frases bem dirigidas
a um homem ocidental, com determinada experiência cultural.
Está bem claro, portanto, que tudo
o que veio depois do realismo literário do século 19 não existe para os
Barash assim como, por ora, tampouco existe a poesia como literatura relevante da narração do processo
evolutivo. Mas não digo que no próximo livro, provavelmente em co-autoria com a netinha poetisa, o professor Barash não descubra o DNA
escondido sob um verso aleatório de
uma máquina dadá.
Apenas mais duas observações. A
primeira é a seguinte: na prática,
muito aquém de sua pretensão crítica, o livro é apenas uma ilustração de
conceitos conhecidos da biologia
darwiniana por meio de personagens literárias igualmente conhecidas. O título certo para ele seria: "Bê-á-bá da Biologia Evolutiva por meio
de Anedotas Literárias". Fosse esse o
título e a intenção, o livro seria até
bem engraçado. Não é sem humor
tratar Emma Bovary -que, aliás,
para o professor Barash, vale tanto
quanto Edna Pontellier, a heroína de
Kate Chopin em "O Despertar"-
como exemplar de urso fêmea casado com urso macho do tipo subordinado. Quer dizer, o que os Barash fizeram realmente foi lançar mão de
uma interpretação amena da literatura -que a coloca no mesmo patamar de interesse de um filme como
"Bridget Jones", por exemplo- e
criar um repertório de casos literários célebres que poderiam ajudar a
fixar ou a esclarecer alguns conceitos-chave da biologia evolutiva.
Fizeram com a literatura o que
usualmente se faz com os quadrinhos para explicar numa empresa a
importância do planejamento estratégico. O uso não é proibido, claro,
mas é sempre uma maneira de desperdiçar a chance de levar a literatura a sério. E nesse ponto cabe bem a
segunda observação que anunciei:
não deixa de ser sintomático perceber que a literatura, mais do que
nunca, tem sido entendida e produzida como apenas mais um lugar
agradável e inofensivo, como é o da
ilustração para neófitos de coisas
mais sérias restritas a cientistas ou
especialistas de diferentes áreas.
É incrível pensar que, há não muito tempo atrás -tempo quase simultâneo ao atual, se a referência forem os milhões de anos que entram
nas contas genéticas-, pensadores
sérios temiam a poesia a ponto de
desejar expulsar os poetas da República, nunca segura enquanto eles lá
existissem! Que bobagem: a evolução fez deles divulgadores e ajudantes de publicitários. Nada resta de
seu poder terrível e incontrolável.
Na nova República, literatos são
apenas bufões operários.
Alcir Pécora é professor de teoria literária
da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).
Os Ovários de Mme. Bovary
272 págs., R$ 39,90
de David P. Barash e Nanelle R. Barash. Trad.
de Cláudio Figueiredo. Ediouro (r. Nova Jerusalém, 345, Bonsucesso, CEP 21042-230,
Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 3882-8200).
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