São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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De forma equivocada, "Os Ovários de Mme. Bovary" aplica conceitos da biologia evolutiva a grandes personagens da literatura universal

Os bufões operários

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No domingo passado, Moacyr Scliar, aqui mesmo no Mais!, escrevia: "Propagar genes é, do ponto de vista da espécie, a grande prioridade. Daí a paixão de Romeu por Julieta, daí o ciúme de Otelo, daí o adultério de Madame Bovary: nos personagens literários refletem-se as pulsões evolutivas, garantem David P. Barash e Nanelle Barash em "Os Ovários de Mme. Bovary'".
Como li o livro, achei que poderia acrescentar alguns breves comentários ao resumo de Scliar. O primeiro deles é que o seu autor macho é atualmente professor de psicologia na Universidade de Washington, com mais de uma dúzia de livros no currículo, incluindo um que escreveu com sua mulher, "The Myth of Monogamy" [O Mito da Monogamia]. Já a autora fêmea, estudante de biologia e literatura no Swarthmore College, é sua filha.
Em termos evolutivos, pode-se dizer que David é um macho do tipo "papai", com alta dose de "investimento parental", isto é, de disposição para a proteção familiar.
Acrescente-se a isso o seu prestígio social, advindo da posição de professor de universidade conhecida bem como dos elogios que o livro recebeu até de uma revista científica séria como a "Nature", e é preciso reconhecer que o professor Barash é um tipo sexualmente atraente em termos biológicos: juntar-se a ele é garantia razoável de conseguir empurrar genes para o futuro.
A despeito de tanto sucesso, o professor Barash, talvez incentivado pela filha Nanelle, tem um sonho bizarro: quer ser um crítico literário. Imagina então que as personagens criadas pelos homens não podem ser diferentes daquilo que os homens são por sua própria e imutável natureza genética.

Mesmo DNA
Ou seja, personagens verossímeis obedecem às mesmas leis vitais dos homens que as criam, e, como as leis que verdadeiramente contam são as do DNA -sendo a cultura apenas um punhado de armadilhas ou disfarces de sustentação deles-, as personagens têm de ter a mesma estrutura de DNA dos seus criadores. C.q.d.! Em termos de crítica literária, contudo, o professor Barash mal consegue se distinguir de uma anta.
A razão é simples: personagens literárias não precisam ser verossímeis. Não precisam nem mesmo fazer o serviço básico do homem: comer, defecar, fornicar ou que mais diabos a sua natureza animal exija deles. E também não precisam pensar ou ter a menor coerência.
Aliás, nem precisam ser humanos ou não-humanos. Personagens literárias só têm de funcionar como produção discursiva de determinado efeito cultural, buscado ou não por seu criador. E a verossimilhança do tipo realista, com personagens que se parecem com homens -mas nunca o são, convém não esquecer-, é apenas um dentre tantos outros recursos persuasivos de um escritor.
Aliás, um recurso em desuso na literatura de inovação. O seu apogeu deu-se, há tempos, com o romance romântico-realista do século 19. Assim, uma personagem como Madame Bovary pode dar a impressão de que possui ovários, embora não os tenha e seus órgãos sejam apenas um punhado de frases bem dirigidas a um homem ocidental, com determinada experiência cultural.
Está bem claro, portanto, que tudo o que veio depois do realismo literário do século 19 não existe para os Barash assim como, por ora, tampouco existe a poesia como literatura relevante da narração do processo evolutivo. Mas não digo que no próximo livro, provavelmente em co-autoria com a netinha poetisa, o professor Barash não descubra o DNA escondido sob um verso aleatório de uma máquina dadá.
Apenas mais duas observações. A primeira é a seguinte: na prática, muito aquém de sua pretensão crítica, o livro é apenas uma ilustração de conceitos conhecidos da biologia darwiniana por meio de personagens literárias igualmente conhecidas. O título certo para ele seria: "Bê-á-bá da Biologia Evolutiva por meio de Anedotas Literárias". Fosse esse o título e a intenção, o livro seria até bem engraçado. Não é sem humor tratar Emma Bovary -que, aliás, para o professor Barash, vale tanto quanto Edna Pontellier, a heroína de Kate Chopin em "O Despertar"- como exemplar de urso fêmea casado com urso macho do tipo subordinado. Quer dizer, o que os Barash fizeram realmente foi lançar mão de uma interpretação amena da literatura -que a coloca no mesmo patamar de interesse de um filme como "Bridget Jones", por exemplo- e criar um repertório de casos literários célebres que poderiam ajudar a fixar ou a esclarecer alguns conceitos-chave da biologia evolutiva.
Fizeram com a literatura o que usualmente se faz com os quadrinhos para explicar numa empresa a importância do planejamento estratégico. O uso não é proibido, claro, mas é sempre uma maneira de desperdiçar a chance de levar a literatura a sério. E nesse ponto cabe bem a segunda observação que anunciei: não deixa de ser sintomático perceber que a literatura, mais do que nunca, tem sido entendida e produzida como apenas mais um lugar agradável e inofensivo, como é o da ilustração para neófitos de coisas mais sérias restritas a cientistas ou especialistas de diferentes áreas.
É incrível pensar que, há não muito tempo atrás -tempo quase simultâneo ao atual, se a referência forem os milhões de anos que entram nas contas genéticas-, pensadores sérios temiam a poesia a ponto de desejar expulsar os poetas da República, nunca segura enquanto eles lá existissem! Que bobagem: a evolução fez deles divulgadores e ajudantes de publicitários. Nada resta de seu poder terrível e incontrolável. Na nova República, literatos são apenas bufões operários.


Alcir Pécora é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).

Os Ovários de Mme. Bovary
272 págs., R$ 39,90 de David P. Barash e Nanelle R. Barash. Trad. de Cláudio Figueiredo. Ediouro (r. Nova Jerusalém, 345, Bonsucesso, CEP 21042-230, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 3882-8200).



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