São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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Conversão proibida

"A Crise da Origem" foca as interpretações dos Evangelhos no século 20

NICOLAS WEILL

O processo de adaptação do catolicismo à modernidade vem obedecendo a ritmos tão imperceptíveis que a impressão que se tem é que, nessa área, apenas retrospectivamente é possível dar-se conta do caminho que já foi percorrido.
A contribuição de "La Crise de l'Origine -La Science Catholique des Evangiles et l'Histoire au XXe. Siècle" (A Crise da Origem - A Ciência Católica dos Evangelhos e a História no Século 20), de François Laplanche, consiste, para começar, em traçar todos os desvios do dito caminho, ressaltando a paciente maturação que levou até a revolução que foi o concílio Vaticano 2º.
O livro também mostra que os intelectuais, filósofos ou teólogos não foram os verdadeiros arquitetos dessa modernização. Pelo contrário, ela deve ser atribuída sobretudo ao mundo dos exegetas e, de maneira mais geral, àqueles que, dentro do clero regular, se esforçaram para integrar à doutrina as informações fornecidas por uma ciência das religiões que se encontrava em plena expansão.
Desde os trabalhos dos estudiosos do século 19 -encabeçados pelos de Renan-, o canteiro de obras de fato se encontrava em estado de revolução permanente. Mais recentemente, a decifração dos manuscritos do mar Morto fez com que o cristianismo nascente fosse situado não tanto no terreno das religiões ligadas aos mistérios da Antigüidade helenista quanto no contexto judaico-palestino do tempo de Jesus.

Renúncia ao combate
Para que essa evolução pudesse ser aceitável aos cristãos, ainda seria preciso que os historiadores renunciassem, em favor de um comparatismo melhor localizado, à idéia de combate, segundo a qual a comparação das crenças entre elas deveria necessariamente resultar em uma espécie de culto primeiro ao qual todas elas seriam redutíveis: magia, mistério, xamanismo ou teologia primeira.
Apresentada em todos os seus detalhes por François Laplanche, diretor honorário de pesquisas do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS), essa história é marcada por três textos pontificais que confirmam a reorientação do olhar da igreja sobre suas próprias origens. A encíclica "Pascendi", em 1907, reafirma primeiramente o caráter histórico do texto sagrado e o valor da tradição católica, por meio da atribuição dos textos bíblicos a seus autores designados (Moisés, no caso do Pentateuco).
Em contrapartida, "Divino Afflante Spiritu" (1943) insiste na necessidade de os membros da igreja "respeitarem o trabalho dos exegetas e a autonomia de suas pesquisas, pois as regras de interpretação da igreja dizem respeito apenas à fé e aos costumes". A constituição "Dei Verbum" (1965) terminará por estabelecer a distinção entre a "verdade", vista como a salvação, e a "historicidade dos acontecimentos" relatados nas Escrituras.

Clérigos progressistas
Como se explica tal virada? Pela ação paciente dos clérigos ditos "progressistas", que pensaram que o catolicismo poderia submeter-se à prova da ciência e da razão, sem se perder. Os intelectuais que retornam à fé no espírito da rejeição ou da crítica da modernidade contribuem pouco para esse movimento, que não deixa de perturbar a "base".
Quanto à "exegese espiritual", de um Claudel, por exemplo, pouco sensível às descobertas dos filólogos ou dos arqueólogos, ela não permite responder à questão de fundo que atravessa o livro: existem possibilidades de reconfigurar a posição do crente com relação à Bíblia, ao mesmo tempo permanecendo no interior da tradição?
Laplanche considera que essa tarefa era mais difícil para os católicos do que para os protestantes, na medida em que os primeiros atribuem mais importância que os segundos à existência de uma instituição ao mesmo tempo divina e visível (a igreja), com o peso de seus séculos de história.


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.

La Crise de l'Origine
718 págs., 30, R$ 80 de François Laplanche. Éd. Albin Michel.
Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados na Livraria Francesa (0/ xx/11/ 3231-4555), em São Paulo, ou no site www.alapage.com



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